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2011-11-24

Poema da Eterna Presença - António Gedeão

Estou, nesta noite cálida, deliciadamente estendido sobre a relva,
de olhos postos no céu, e reparo, com alegria,
que as dimensões do infinito não me perturbam.
(O infinito!
Essa incomensurável distância de meio metro
que vai desde o meu cérebro aos dedos com que escrevo!)

O que me perturba é que o todo possa caber na parte,
que o tridimensional caiba no dimensional, e não o esgote.

O que me perturba é que tudo caiba dentro de mim,
de mim, pobre de mim, que sou parte do todo.
E em mim continuaria a caber se me cortassem braços e pernas
porque eu não sou braço nem sou perna.

Se eu tivesse a memória das pedras
que logo entram em queda assim que se largam no espaço
sem que nunca nenhuma se tivesse esquecido de cair;
se eu tivesse a memória da luz
que mal começa, na sua origem, logo se propaga,
sem que nenhuma se esquecesse de propagar;
os meus olhos reviveriam os dinossáurios que caminharam sobre a Terra,
os meus ouvidos lembrar-se-iam dos rugidos dos oceanos que engoliram continentes,
a minha pele lembrar-se-ia da temperatura das geleiras que galgaram sobre a Terra.

Mas não esqueci tudo.
Guardei a memória da treva, do medo espavorido
do homem da caverna
que me fazia gritar quando era menino e me apagavam a luz;
guardei a memória da fome;
da fome de todos os bichos de todas as eras,
que me fez estender os lábios sôfregos para mamar quando cheguei ao mundo;
guardei a memória do amor,
dessa segunda fome de todos os bichos de todas as eras,
que me fez desejar a mulher do próximo e do distante;
guardei a memória do infinito,
daquele tempo sem tempo, origem de todos os tempos,
em que assisti, disperso, fragmentado, pulverizado,
à formação do Universo.

Tudo se passou defronte de partes de mim.
E aqui estou eu feito carne para o demonstrar,
porque os átomos da minha carne não foram fabricados de propósito para mim.
Já cá estavam.
Estão.
E estarão.


in Obra Completa de António Gedeão, Relógio D´Água Editores

António Gedeão (pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho, n. em Lisboa a 24 Nov 1906; m. 19 Fev 1997)

Ler do mesmo autor:
Impressão Digital
Poema do Amor
Poema das Coisas Belas
Poema das Coisas
Poema do Gato
A um ti que eu inventei
Tempo de Poesia
Tudo é foi
Lição sobre a água
Poema da auto-estrada
Rosa branca ao peito
Pedra filosofal
Lágrima de preta
Minha Aldeia


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