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2018-01-31

Cadáver de Virgem - Luís Delfino

A Morte da Virgem, 1606, Michelangelo Caravaggio
óleo sobre tela, 369x245 cm, Paris, Museu do Louvre

Estava num caixão como num leito,
palidamente fria e adormecida;
as mãos cruzadas sobre o casto peito
e em cada olhar sem luz um sol sem vida.

Pés atados com fita em nó perfeito,
de roupas alvas de cetim vestida;
o torso duro, rígido, direito;
a face calma, lânguida, abatida...

O diadema das virgens sobre a testa;
níveo lírio entre as mãos, toda enfeitada,
mas como noiva que cansou da festa...

Por seis cavalos brancos arrancada,
onde vais tu dormir a longa sesta,
na mole cama em que te vi deitada?

LUÍS DELFINO dos Santos nasceu em Desterro, hoje Florianópolis (SC), a 25 de agosto de 1834 e morreu no Rio a 31 de janeiro de 1910. Diplomado em Medicina pela faculdade do Rio, chegou a ser senador da República por Santa Catarina, em 1891. Era liberal e abolicionista. A sua obra poética vai do Romantismo ao Simbolismo, passando pelo Parnasianismo, embora, no fundo, tenha sido sempre um romântico. Desdenhoso da glória, nunca publicou qualquer livro e foi o filho quem procedeu à recolha póstuma por jornais e revistas (uma dezena de vols.). O seu soneto pode ser comparado ao equivalente do português António Feijó: «Pálida e loira...».

Soneto e Nota biobliográfica extraídos de «A Circulatura do Quadrado - Alguns dos Mais Belos Sonetos de Poetas cuja Mátria é a Língua Portuguesa. Introdução, coordenação e notas de António Ruivo Mouzinho. Edições Unicepe - Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto, 2004.


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2018-01-29

Som e Cor - Gomes Leal

O vermelho deve ser como o som duma trombeta
(Um cego)


Alucina-me a cor! - A rosa é como a Lira,
a Lira pelo tempo há muito engrinaldada,
e é já velha a união, a núpcia sagrada,
entre a cor que nos prende e a nota que suspira.

Se a terra, às vezes, brota a flor, que não inspira,
a teatral camélia, a branca enfastiada,
muitas vezes, no ar, perpassa a nota alada
como a perdida cor dalguma flor, que expira...

Há plantas ideais de um cântico divino,
irmãs do oboé, gémeas do violino,
há gemidos no azul, gritos no carmesim...

A magnólia é uma harpa etérea e perfumada
e o cacto, a larga flor, vermelha, ensanguentada,
tem notas marciais: soa como um clarim!

António Gomes Leal (n. em Lisboa a 6 se junho de 1848; m. 29 de janeiro de 1921)

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2018-01-25

IX - Afonso Lopes Vieira


Leve, leve, o luar da neve
goteja em perlas leitosas,
o luar da neve é tão leve
que ameiga o seio das rosas.
E as gotas finas da etérea
chuva, caindo do ar,
matam a sede sidéria
das coisas que embebe o luar.
A luz, oh sol, com que alagas,
abre feridas, e a lua
vem pôr no lume das chagas
o beijo da pele nua.

(País Lilás, Desterro Azul, 1922)
in Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Sec. XXI, Porto Editora

Afonso Lopes Vieira (n. em Cortes (Leiria) a 26 de janeiro de 1878 e faleceu em Lisboa a 25 de janeiro de 1946).

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2018-01-24

No Bazar - António Manuel Couto Viana

Mercado de Iao Hon. Macau, Junho de 2008 - foto daqui

Mergulho-me na vida, na voz deste bazar,
Com lojas, tendas, vendedores de rua:
É um rio de rumor e cor, tentacular,
Que flui, reflui e, de repente, estua.

Afoga-me o fascínio da faiança, do jade,
Dos electrônicos subtis, sofisticados,
Dos adivinhos da felicidade
Com óculos severos de letrados.

Aqui, na margem de um afluente,
Junto de velhos móveis, de ferragens, de moedas,
De um deus irado, de outro sorridente,
Ambos sujos de pó, nuns farrapos de sedas.

De um disco fatigado de rock, da legenda
Que eu não decifro, com provérbios chins,
Senta-se atento à mão que, ávida, se estenda,
homem dos tintins.

(Viu ele um português, pertinaz e sem pressa,
De olhar estranho, magro, a longa barba preta,
Descobrir, entre o inútil, o valor de uma peça,
Com ciência de sábio e arte de poeta ?)

Além, fumega e aromatiza o gosto
A tenda dos petiscos. Tentação!
Como tudo apetece, quando exposto!
Mas, comê-lo… Não sei se sim se não.

Mais além, Hóng-Kông, no templo do Bazar,
Um bom mercado ao mercador promete
Se ele, submisso, lhe vem pôr no altar
A tangerina, a flor, e lhe acende um pivete.

Entro no Loc-Koc, "casa de tomar chá".
No alvor das madrugadas,
É uma gaiola imensa, durante o iam-chá
Sorvido entre gorgeios e asas excitadas.

Lá fora, o riquexó, hoje triciclo, rasa
A multidão: persegue uma nesga de espaço,
Levando a rapariga a caminho de casa,
Com os sacos das compras no regaço.

E, ao ritmo da rua e da emoção,
Os meus olhos descobrem, deslumbrados,
Navegando ao pulsar do coração,
Um navio vermelho de caracteres doirados!


António Manuel Couto Viana nasceu em Viana do Castelo a 24 de janeiro de 1923, Lisboa, 8 de junho de 2010)

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2018-01-23

ANSIEDADE - Edson Guedes de Morais


É urgente
que uma alegria qualquer
me aconteça.

É urgente que alguma coisa pura,
palavra ou gesto,
limpe meus olhos
desta tristeza.

Ter pena de mim mesmo
já não consola...

É preciso que alguma coisa boa
me aconteça,
sobre para mim
que há tanto tempo espero.

É preciso que alguma coisa boa
me aconteça,
para que esta ternura pela vida
não se perca
à falta de uns cabelos
para as minhas mãos.

Edson Guedes de Morais nasceu em Campina Grande, Paraíba, a 23 de janeiro de 1930.

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