Poema do Amor - António Gedeão
Este é o poema do amor.
Do amor tal qual se fala, do amor sem mestre.
Do amor.
Do amor.
Do amor.
Este é o poema do amor.
Do amor das fachadas dos prédios e dos recipientes do lixo.
Do amor das galinhas, dos gatos e dos cães, e de toda a espécie de bicho.
Do amor.
Do amor.
Do amor.
Este é o poema do amor.
Do amor das soleiras das portas
e das varandas que estão por cima dos números das portas,
com begónias e avencas plantadas em tachos e em terrinas.
Do amor das janelas sem cortinas
ou de cortinas sujas e tortas.
Este é o poema do amor.
Do amor das pedras brancas do passeio
com pedrinhas pretas a enfeitá-lo para os olhos se entreterem,
e as ervas teimosas a descerem de permeio
e os homens de cócoras a raparem-nas e elas por outro lado a crescerem.
Do amor das cadeiras cá fora em redor das mesas
com as chávenas de café em cima e o toldo de riscas encarnadas.
Do amor das lojas abertas, com muitos fregueses e freguesas
a entrarem e a saírem e as pessoas todas muito malcriadas.
Este é o poema do amor.
Do amor do sol e do luar,
do frio e do calor,
das árvores e do mar,
da brisa e da tormenta,
da chuva violenta,
da luz e da cor.
Do amor do ar que circula
e varre os caminhos
e faz remoinhos
e bate no rosto e fere e estimula.
Do amor de ser distraído e pisar as pessoas graves,
do amor sem amar nem lei nem compromisso,
do amor de olhar de lado como fazem as aves,
do amor de ir, e voltar, e tornar a ir, e ninguém ter nada com isso.
Do amor de tudo quanto é livre, de tudo quanto mexe e esbraceja,
que salta, que voa, que vibra e lateja.
Das fitas ao vento,
dos barcos pintados,
das frutas, dos cromos, das caixas de tinta, dos supermercados.
Este é o poema do amor.
O poema que o poeta propositadamente escreveu
só para falar de amor,
de amor,
de amor,
de amor,
para repetir muitas vezes amor,
amor,
amor,
amor.
Para que um dia,quando o Cérebro Electrónico
contar as palavras que o poeta escreveu,
tantos que,
tantos se,
tantos lhe,
tantos tu,
tantos ela,
tantos eu,
conclua que a palavra que o poeta mais vezes escreveu
foi amor,
amor,
amor.
Este é o poema do amor.
António Gedeão (pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho n. 24 Nov 1906; m. 19 Fev 1997)
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