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2020-02-25

Eu, que sou feio...- Cesário Verde


Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso.
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura.
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,
Eu que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

«Ela aí vem!» disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez não o suspeites!-
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

José Joaquim Cesário Verde (Lisboa, Madalena, 25 de fevereiro de 1855 — Lisboa, Lumiar, 19 de julho de 1886)

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2020-02-22

Nos teus gestos... - Joaquim Pessoa


Nos teus gestos há animais em liberdade
e o brilho doce que só têm as cerejas.
É neles que adormeço, e dos teus dedos
retiro a luz azul dos arquipélagos.

Os teus gestos são letras, sílabas, poemas.
Os teus gestos são páginas inteiras. São
a tua boca a namorar na minha boca,
o cio dos séculos a saudar o tempo.

São os teus gestos que me acordam. Gestos
que vestem o silêncio fundo das ravinas
e assinalam a água dos desertos.

Os teus gestos são música. São lume.
São a respiração do teu olhar. A seara
de espigas que ondula no meu corpo.


Joaquim Maria Pessoa nasceu no Barreiro a 22 de Fevereiro de 1948

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2020-02-17

O BARÃO E O DOUTOR - Xavier de Novais (que nasceu faz hoje 200 anos)

B. – Senhor Doutor, dá licença? –
D. – Não sei quem é que está aí! –
B. – Seu criado – eu vou entrando…
D. – Oh! Vossência por aqui!

A Senhora Baronesa
Como passa? – Tem saúde?…
Quis ir ontem visitá-la…
Tive que fazer, não pude.

B. – Eu le digo… vai andando;
Mas sempre com suas teimas,
Não quer tomar o remédio
Que le deu pras almorreimas!

Tem-se queixado do Omnibus,
Anda muito incomodada;
Mas tem lá seus carrapichos,
E então, não quer tomar nada.

D. – Pois, Senhor, queira Vossência
Ver se pode resolvê-la
A entregar-se à Medicina,
Que eu amanhã irei vê-la.

Vá-lhe dando alguns passeios,
Roubando-a à meditação;
Que é sempre, nessas moléstias,
Proveitosa a distração.

B. – Ai… bô… bô!… alguns passeios!…
Ela em casa nunca está;
Não há por i uma festa
Onde eu com ela não vá!

Já foi à Foz ver o hydroppico,
E onte fomos ó triato;
E por sinal, que chegamos
No fim do purmeiro acto.

A propósto, meu amigo,
Que me diz à Companhia?
Aquela Lucrécia Borges
Foi bem… apois não iria?

Olhe qu’aquele… o… Finório,
Qu’é cunhado da Jordana,
Canta bem… é bô maritmo,
E nunca… nunca se engana!

E o outro tenor baixito,
Chamo-le o basso profundo,
Tamém é bô … e bem mostra
Que tem pratega do mundo.

E a Jordana! Isso é que canta
Com’eu inda não ouvi!
Não sei por que esses janotas
Dão mais palmas à Ponti!

D. – A Ponti é como artista
Cousa muito sup’rior,
B. – O quê?… melhor qu’a Jordana?…
Nada… nada… não senhor!

A Ponti, não gosto dela;
– Não digo qu’é mau contralto;
Mas é muito presumida…
A outra canta mais alto.

Não faz uns tais gargarejos;
Mas quem sabe o que ela foi?…
Tem um cantar grosso e forte,
Qu’as vezes parece um boi!

Quando, há dias, dava palmas
À Ponti, certo magote,
Enfim – pequenas misérias –
Disse eu lá do cambarote.

É gente que não entende,
Gosta duma bacatela;
A Ponti se é boa dama,
Eu não engraço com ela!

Diga-me – que livro é esse,
Que lia quando eu cheguei?
D. – Era o Hahnemann. – B. – Conheço,
Grande poeta… bem sei!

O Senhor Doutor se lesse
A Fremosa Mangalona,
Havia de gostar muito;
Olhe que é muito ratona!

E quando quiser bons livros
Faça favor d’ir por lá:
Também tenho o Calros Mano…
Eu l’os mandarei pra cá.

D. – São bons livros – eu conheço-o;
Fico obrigado a Vossência;
Mas o tempo que me resta
Emprego-o só na ciência.

B. – Na ciência?… e é bô livro?
E quantos balumes tem?…
Ah!… já sei… eu ‘stava tolo…
São quatro… tenho-os tamém!

Olhe que eu sou dado às letras,
E gosto de me istruir:
Pois de falar?… quando falo
Todos gostam de m’ouvir.

Mas passemos a oitra coisa:
Estes retratos quem são?
Vamos cá dar volta à sala,
E faça-me a explicação.

Daquele estão-me a dar ares;
Não será um meu besinho?
D. – É Lamennais. – B. É o mesmo,
Já lhe merquei muito binho.

Ora diga-me – e aquele
Que tem anéis no cabelo?
Aquele home é estrangeiro,
Que eu não me lembro de vê-lo.

D. – De certo não, que é antigo,
Já não é dos tempos seus;
Nem é possível, Vossência
Ter visto o Rei dos Judeus.

B. – O Rei dos Judeus! – É este? –
Oh que soberbo tratante!
Não sei como quer em casa
Um retrato semelhante!…

Eu cá sou escrupuloso
Nisto de religião:
O Rei dos Judeus! – Arruda!
E na casa dum cristão!…

Este sim… não é o Bispo?…
O D. Jiromeno? … é…
Morreu… coitado… era um home
Em que eu tinha muita fé.

E por via das exéquias…
Por se meter a pregar,
É que se foi… que era rijo,
Inda podia durar.

D. – Eu não sei que lhe viesse
Daí, moléstia de morte!
Com o estudo… a vigília…
Podia bem, que era forte!

B. – Mas olhe cá, meu amigo,
Aqui pra nós: – qu’ é vigília?…
D. – Falta de sono. – B. – Isso, isso…
Tudo por causa da Emília…

Um home que tem idade
E quer fazer de rapaz,
Metido nesses excessos,
Não sabe a asneira que faz!

Enfim, Doutor, vou-me à praça,
Que deve agora estar cheia:
– Até à noite, qu’ habemos
De bêr-nos na Sumboleia.

in A vespa do Parnaso, 1854

Faustino Xavier de Novais nasceu a 17 de fevereiro de 1820, no Porto, e faleceu a 16 de agosto de 1869, no Rio de Janeiro, Brasil.

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