Luís de Montalvor faleceu há 64 anos
Erram no oiro da tarde as sombras destas ninfas
E até onde irá o aroma dos seus gestos
que sei tentam prender meus olhos que, funestos,
sonham um esplendor fatal de pedrarias?
Tarde de tentação! Que estranhas melodias
inquietam o céu de um rumor ignorado?
Seringe! Tua flauta arrosa de encantado
e sangue de Ilusão esta tarde em demência
que a legenda recorda; e da imortal essência
do sonho esta hora antiga exuma o velho idílio.
Há mãos de festa e sonho em meu deserto exílio!
A Beleza é para mim ó ninfas! o Segredo
com que Deus me vestiu de Lindo!... Ai , tenho medo
de morrer o que sou às mãos desse desejo
das ninfas; mas está a sombra que não vejo
depois e antes de mim e, se afundo o olhar na ânsia
de me ver, só me vejo ao colo da Distância!
Deixai dormir um pouco o céu nos olhos meus,
eu não os quero abrir antes que os feche, - Deus! -
Ninfas vós penteais o pavor à janela
da minha alma através a hora sombria e bela.
Coroas não serão sobre mim as de flores
que desfolhais, mas brancos braços de amores
que abrem noturnamente e num país sem dia...
Sois o sonho de mim ao colo da Alegria!
in Orpheu 2
Luís de Montalvor, pseudónimo de Luís da Silva Ramos, nasceu em S. Vicente, Cabo Verde a 31 de Janeiro de 1891 e faleceu em Lisboa a 2 de Março de 1947.
Ler do mesmo autor, neste blog: Tarde; Infante - I, Baker
Há duas espécies de poetas — os que pensam o que sentem, e os que sentem o que pensam.
A terceira espécie apenas pensa ou sente, e não escreve versos, sendo por isso que não existe.
Aos poetas que pensam o que sentem chamamos românticos; aos poetas que sentem o que pensam chamamos clássicos. A definição inversa é igualmente aceitável.
Em Luís de Montalvor (Luís da Silva Ramos), autor de um livro de POEMAS a aparecer em breve, a sensibilidade se confunde com a inteligência — como em Mallarmé, porém diferentemente — para formar uma terceira faculdade da alma, infiel às definições. Tanto podemos dizer que ele pensa o que sente, como que sente o que pensa. Realiza, como nenhum outro poeta vivo, nosso ou estranho, a harmonia entre o que a razão nega e o que a sensibilidade desconhece. O resultado — poemas subtis, irreais, quase todos admiráveis — pode confundir os que esperam encontrar na originalidade um velho conhecimento, e no imprevisto o que já sabiam. Mas para os que esperam o que nunca chega, e por isso o alcançam, a surpresa dos seus versos é a surpresa da própria inteligência em se encontrar sempre diferente de si mesma, e em verificar sempre de novo que cada homem é, em sua essência, um conceito do universo diferente de todos os outros. E como, visto que tudo é essencialmente subjectivo, um conceito do universo é ele mesmo o próprio universo, cada homem é essencialmente criador. Resta que saiba que o é, e que saiba mostrar que o sabe: é a essa expressão, quando profunda, que chamamos poesia.
Não nos ilude Luís de Montalvor na expressão essencial dos seus versos: vive num mundo seu, como todos nós; mas vive com vida num mundo seu, ao passo que a maioria, em verso ou prosa, morre o universo que involuntariamente cria.
Palavras estranhas, porém verdadeiras. Como poderiam ser verdadeiras se não fossem estranhas?
1927
Textos de Crítica e de Intervenção.Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.
(transcrito daqui)
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