Purinha - António Nobre
O Espirito, a Nuvem, a Sombra, a Quimera,
Que (aonde ainda não sei) neste Mundo me espera;
Aquela que, um dia, mais leve que a bruma,
Toda cheia de véus, como uma Espuma,
O Senhor Padre me dará pra mim
E a seus pés me dirá, toda corada: Sim!
Ha-de ser alta como a Torre de David,
Magrinha como um choupo onde se enlaça a vide
E seu cabelo em cachos, cachos de uvas,
E negro como a capa das viúvas...
(À maneira o trará das virgens de Belém
Que a Nossa Senhora ficava tão bem!)
E será uma espada a sua mão,
E branca como a neve do Marão,
E seus dedos serão como punhais,
Fusos de prata onde fiarei meus ais!
E os seus seios serão como dois ninhos,
E seus sonhos serão os passarinhos,
E será sua boca uma romã,
Seus olhos duas Estrelinhas da Manhã!
Seu corpo ligeiro, tão leve, tão leve,
Como um sonho, como a neve,
Que hei-de supor estar a ver, ao vê-la,
Cabrinhas montesas da Serra da Estrela...
E há-de ser natural como as ervas dos montes
E as rolas das serras e as águas das fontes...
E há-de ser boa, excepcional, quase divina.
Mais pura, mais simples, que moça e menina.
Deus, pela voz dos rouxinóis há-de gabá-la
E os rios ao passar hão-de cantá-la.
Seu virgem coração há-de ser tão branquinho,
Que não há neste, mundo a que igualá-lo: o linho
Que, em roca de cristal, fiava a minha Avó
Parecerá de crepe, e a neve... far-me-á dó,
Mais a farinha do moleiro e a violeta,
E a lua para mim será como uma Preta!
Mas em que Pátria, em que Nação é que me espera
Esta Torre, esta Lua, esta Quimera?
Fui ter com minha fada e disse-lhe: «Madrinha!
Onde haverá na Terra assim uma Rainha?»
E a minha fada, com sua vara de encantar,
Um reino me apontou, lá baixo, ao pé do mar...
Meninas, lindas meninas!
Qual de vós é o meu ideal?
Meninas, lindas meninas
Do Reino de Portugal!
E no dia do meu recebimento!
Manhã cedo, com luar ainda no Firmamento,
Quando ainda no céu não bole uma asa,
A minha Noiva sairá de casa
Maila sua Mãe, mailos seus Irmãos.
E há-de sorrir, e hão-de tremer-lhe as mãos...
E a sua Ama há-de segui-la até à porta,
E ficará, coitada! como morta!
E há-de ser triste vê-la, ao longe, ainda... olhando,
Com o avental seus olhos enxugando...
E hão-de cercá-la sete Madrinhas,
Que hão-de ser sete virgens pobrezinhas,
Todas contentes por estrear vestido novo!
E, ao vê-las, suas mães sorrirão d'entre o Povo...
E o povo da freguesia
Esperará mais eu, no adro de Santa Iria.
E hão-de mirar-me com seu ar curioso,
E hão-de cercar-me, n'um silêncio respeitoso.
E eu hei-de falar-lhes das colheitas, da chuva,
E dir-me-ão que «já vai pintando a uva...»
E animados então (o Povo é uma criança!)
Porque o Sr. Doutor lhes deu confiança,
«Que Deus o ajude» dirá um, e o Regedor:
«Vá coa graça de Nosso Senhor!»
E eu hei-de agradecer, sorrir, gostar.
Mas o Anjo, no entanto, não deve tardar...
E d'entre o grupo exclamará um Velho, então:
«Já nasce o dia!» eu olharei... mas não:
É a minha Noiva que parece dia,
Luzente como a cal de Santa Iria!
E ao vê-la tão branca, de branco vestida,
Ao longe, ao longe, hei-de cuidar ver uma Ermida!
E dirá o Pastor, com espanto tamanho,
Que é uma Ovelha que fugiu do seu rebanho!
E o João Maluco dirá que é o Luar de Janeiro!
E o Pescador explicará ao bom Moleiro
Que é talqualzinha a sua Lancha pelo Mar!
E o Moleiro dirá que é o seu Moinho a andar!
Que assim já foram as velhinhas cismarão,
E as netas, coitadas! que, um dia, o serão...
Mas o Anjo assomará, à porta da capela,
E eu branco e trémulo hei-de ir ter com ela.
E a estrela deitar-me-á a benção dos seus olhos
E uma aldeã deitar-lhe-á violetas, aos molhos!
E a Bem-Amada entrar na igreja há-de...
E há-de casar-nos o Sr. Abade.
E, em seguida, será a nossa boda,
E festas haverá, na aldeia toda.
E as mais raparigas do sitio, solteiras,
Hão-de bailar bailados sobre as eiras,
Com trinta moedas de oiro sobre o peito!
E cantigas dirão a seu respeito.
E a Noiva em glória, perpassando nas janelas,
Sorrirá com simplicidade para elas.
E a noite, pouco e pouco, descerá...
E tudo acabará.
E depois e depois, o Anjo há-de se ir deitar,
E a sua Mãe há-de abraçar... E hão-de chorar!
E a sua alcova deitará sobre o jardim,
Onde uma fonte correrá, entre alecrim:
E, ao ouvi-la cantar, deitadinha na cama,
O Anjo adormecerá, cuidando que é a sua ama...
Mas qual a vila, qual a aldeia, qual a serra
Que este Palácio de Ventura encerra?
Fui ter com minha fada e disse-lhe: «Madrinha!
Acaso nunca te mentiu tua varinha?»
E a minha fada com sua vara de condão
Nos ares escreveu com três estrelas: «Não!»
Meninas, lindas meninas!
Qual de vós é o meu ideal?
Meninas! lindas meninas
Do Reino de Portugal!
O nosso lar!
Minha Madrinha! ajuda-me a sonhar!
Que a nossa casa se erga dentre uma eminência,
Que seja tal qual uma residência,
Alegre, branca, rústica, por fora.
Que digam: «É o Sr. Abade que ali mora»
Mas no interior ela há-de ser sombria,
Como eu com esta melancolia:
E salas escuras, chorando saudades...
E velhos os móveis, de antigas idades...
(E, assim, me iluda e, assim, cuide viver
Noutro século em que eu deveria nascer.)
E nas paredes telas de Parentes...
E janelas abertas sobre os poentes...
(E a Quimera lerá o seu livro de rezas...)
E cravos vermelhos por cima das mesas...
E o relógio dará as horas devagar,
Como as palpitações de quem se vai finar...
E, dia inteiro, neste claustro e solidão,
Passarei a esquecer, ao canto do fogão;
E a cismar e a cismar sem que me veja alguém
Na Dor, na Vida, em Deus, nos mistérios do Além?
E eu o Astrólogo, o Bruxo, o Aflito, o Médio,
Rogarei aos Espíritos remédio
E um bom Espírito virá tratar do Doente
E há-de tremer de susto a outra gente.
E a Noite descerá, pouco e pouco, no entanto,
E a Noite embrulhará o Aflito no seu manto!
Mas a Purinha, então, vindo da rua,
Toda de branco surgirá, como uma Lua!
E, então, acordarei meu Deus de França!
E pela mão me levará, como uma criança.
E eu pálido! e eu tremendo! e o Anjo pelo caminho,
«Não te afflijas...» dirá, baixinho...
E, assim, será piedosa para os mais:
E há-de entrar na miséria dos casais,
Nos montes mais altos, nos sítios mais ermos,
E será a Saúde dos Enfermos!
E quando pela estrada encontrar um velhinho
Todo suado, carregadinho,
(Louvado seja Nosso Senhor!)
Há-de tirar seu lenço e ir enxugar-lhe o suor!
E às aves, em prisão, abrirá as gaiolas.
E, aos sábados, o dia das esmolas,
A Santa descerá ao patamar da escada,
(Envolta, sem saber, numa capa estrelada),
Esmolas, distribuindo a este e àquele: e aos ceguinhos
E mais aos aleijadinhos,
Mais aos que botam sangue pela boca,
Mais aos que vêm cantar, numa rabeca rouca,
Amores, Naufrágios e A Nau Catrineta,
Mais aos Aflitos que andam no Planeta,
Mais às viúvas dos Degredados...
E tudo seja pelos meus pecados!
E há-de coser (serão os remendos de flores)
As velas rotas dos pescadores
E a luz do seu olhar benzerá essas velas
E nunca mais hão-de rasgar-lhas as procelas!
E acenderá os círios ao Senhor,
(Que sejam como ela no talhe e na cor!)
Quando houver temporal... e eu virei prà sacada
Ver os relâmpagos, ouvir a trovoada!
E nisto só resumir-se-á a sua vida:
Vestir os Nus, aos Pobres dar guarida,
Falar à alma que na angústia se consome,
Dar de comer a quem tem fome,
E, lá, do Alto, Jesus dirá aos homens: «Vede...»
Dar de beber a quem tem sede...
E eu hei-de em minhas obras imitá-la
E amá-la como à Virgem e adorá-la.
E a Virgem há-de encher com a mesma paixão
As marés-vazas deste pobre coração
Que tanto teve e que hoje nada tem,
Nem mesmo aquilo que vós tendes, Mãe.
E será a Mamã que me há-de vir criar,
Admirável Joaninha d'Arc,
Meu novo berço duma Vida nova!
E há-de ir comigo para a mesma cova,
Pois que no dia em que eu morrer
Veneno tomará, numa colher...
Mas em que sítio, aonde? aonde é que se esconde
Esta Bandeira, esta India, este Castelo, aonde? aonde?
Fui ter com minha Fada, e disse-lhe: «Madrinha!
Mas pode haver, assim, na Terra uma Purinha?»
E a minha fada com sua vara de marfim
Nos ares escreveu com três estrelas: Sim...
Meninas, lindas meninas!
Qual de vós é o meu ideal?
Meninas, lindas meninas
Do Reino de Portugal!
in 366 poemas que falam de amor, uma antologia organizada por Vasco da Graça Moura, Quetzal Editores
António Pereira Nobre (nasceu no Porto a 16 de Agosto de 1867 e foi vítima de tuberculose pulmonar, na Foz do Douro, Porto a 18 de Março de 1900).
Ler do mesmo autor, neste blog:
À Luz de Lua
Ao Cair das Folhas
Virgens que passais
Carta ao Oceano
A Leão XIII
Ladainha
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