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2009-05-01

Cintra - Mário Beirão

Palácio da Pena, Sintra, Portugal
Palácio da Pena em Sintra imagem daqui

A Teixeira de Pascoaes

Oh Pena, altar de nuvens sobre a Serra,
Paço de sombras reaes, feito em granito
E seculos de Azul,--olhando a Terra
Das janelas que ogivam o Infinito!

Oh vôo das florestas que se esfólham,
Tontas de ceus, fragancia!
Oh tardas sombras rôxas da Distancia!
Ruinas--noite donde as aguias ólham!

Oh cedros esmanchando as ramarias,
Afofando penumbras!
Crepusculos longinquos de arcarias!
Agua que, ao pôr-do-sol, és múrmura e deslumbras,
Que deslumbras meus olhos, meus ouvidos,
E, incerta de gemidos,
Vaes esculpindo a diafanos lavôres
As pedras onde o sol desmaia e verte côres!

Oh paizagem do Ceu! Cintra! Visão suprema!
Architectura dos accordes dum poëma!
Em ti as mãos do Vento em furia batalharam!
O Genio e a Lenda para alem te perpetuaram!

Oh Graça que desceste á Terra por encanto,
Granitos que, ao luar, sois brancos alabastros,
Ramos verdes, á noite, onde estremecem astros,
Meu canto vem de vós, é para vós meu canto!

Fraguedos, serrania,
Do alto de vós olhando,
Tolhidos de invernia,
Alados de neblinas!
Nos longes acenaes, noctivagos, em bando,
Franjas, espuma vaga de cortinas,
Aereas e nevadas,
Farrapos onde a Noite esconde as madrugadas...

Oh figuras dum drama subterraneo,
Gelidas do pavor das sombras que repassam!
Fragas, espectros vãos, que a um rasgo momentaneo,
O vento esculpe e os raios despedaçam!

E ao longe o Mar é um canto de epopeia
Memorando naufragios...

Profundo ferve, anceia,
Livido estagna, e sonha, e pára no caminho!
Eis que numa revolta, amargo de presagios,
Lavra de espuma e som visões em desalinho,
Rasga o pano da Noite e, monstro de aguas, uiva,
E tomba doido a rir, sobre os areaes, exhausto...

A areia escalda ao sol... Ignea de sede ruiva,
Mina-se de agua e Azul, absorve o mar num hausto!

Oh Cintra, rente ao Ceu, o Mar te afaga,
Floresces em murmurio, em halitos de vaga...

De ti eu dominei, varei os horisontes,
Estou cansado já, fui Jupiter na Terra!
Nas tuas fontes,
Onde um crepusculo erra
E o ar é de abandono,
Que eu fosse o musgo em sombra verdecendo,
A voz de longe e Outomno,
Baixinho fenecendo...

Fosse a humildade!
Os humidos recantos
Onde a sombra se esquece, incerta de saudade,
E a chuva cae em prantos...

Fosse o tronco musgoso, enverrugado,
Onde--lembrança eterna,
Um coração se vê de setas trespassado!

Fosse a Elegia do Ar quando o Ar inverna,
Rumôres de agua, queixas...

...Mansa, como rezando,
"--Porque me deixas!"
Como que a Sombra diz no seu silencio frio
Á fonte de esquecida memorando,
Lucilante de lagrimas a fio...

Ah, pudesse eu viver pela espessura
Dos bosques rumorosos,
Ás horas em que a Sombra as coisas transfigura!
Ser o Outomno, o crepusculo, a harmonia
Das aves cuja voz é um halito de luz
De poentes que morrem de saudosos!
Vestir os troncos nus,
Chorar melancholia...

Á tarde quando a luz penumbras vem rezando
A Fórma é Apparição,
Ha lagrimas de Azul as almas orvalhando,
A Côr é emanação...

Tudo se transfigura:
Ha paizagens, scenarios pela Altura!

Eu deixo de existir
Para mais dentro em mim viver, sentir...

É a hora transcendente
Em que o Passado surge evocador do escuro,
E, soffrego, o Presente
Dissolve a nevoa do Futuro.

Oh Pena ao alto erguida,
Recortada na sombra--aza de aguia perdida,
Nas rochas esfarpando-se!
Nuvem numa outra nuvem evolando-se...

Oh Cintra, ao poente, a fumos de viuvez,
Subindo num adeus,
Chymerica de longe a Terra já não vês:
É uma ancia de Infinito a que te abraza,
Oh verde forma de aza
Com fremitos de ceus!

Oh Cintra és já distancia
Na communhão dos astros!
Teus granitos transformam-se: alabastros,
De brancos a rezar... Ideal sonancia!

E, eu que vivi em ti, rezo comtigo,
Eu, o incerto, miserrimo mendigo,
Trago nos olhos tristes pedrarias,
Astros radiando pallidos fulgores,
Desmaios de harmonias,
No concerto mais intimo das côres.

E a Noite escuta, empallidece,
Um murmurio de voz esvoaça numa prece:

Flébil, o ar magoando,
Idillios suspirando,
Duma estrella que nasce ao por-do-sol
O canto chóra... lagrimas sem fim!

A alma dum rouxinol
Sonha com Bernardim.

E desfez-se, apagou-se
Em ondas de saudade--o olor mais doce...

Subito, heroico de saudades,
Um canto accorda, funde o bronze das Edades!

Oh canto pela noite, em prantos marulhado,
Memoria em cujo olor ha mortas primaveras,
Pelos astros, o Espaço cadenciado,
Ungido pela benção das Esferas,
Falas da minha raça, dos profetas
Invectivando o Mar,
De moiros pela areia, cujas setas
Eram menos mortiferas que o olhar!

Oh rithmo das oitavas
Nas veias do meu sangue a tumultuar!
Oh lyra de Camões, accordes de ondas bravas!

E, bronzea a voz sucumbe: os ceus ficam arfando,
Reboando, echoando...

Mas a candura, a graça do sorriso,
De quem vive a morrer,
E tem no olhar de magoa o Paraiso,
E Deus no coração sem o saber,
Desfólham-se num halito de outomno
Pelos ceus, pelas almas de abandono...

Oh moreno cantor a ouvir de bruços,
Das gothicas ogivas merencoreas,
Musgosas de saudade,
Echos duma outra Edade,
Vozes de viola zoando moribundas,
Morrendo gemebundas;
Crepusculo de som, penumbra de memorias...

Oh Lusiada absorto
Na chymera do Alem! Infante é tudo morto,
De que serve esperar!

Falas de longe: a Morte diz á Vida
A sua grande, eterna despedida...

Em ti, meu pallido Anto,
Ha mortos a falar!

Oh moribunda voz em lagrimas de canto...

E eis-me perdido e só, como um ceguinho,
Tacteio ceus de extactica harmonia,
E vejo Deus em mim a ungir-me de carinho,
E sou onda de luz em melodia...

Morri para viver alem da Morte:
Meu negro olhar agora é azul-celeste,
Oiço na minha lyra o meu transporte,
Senhor! Bemdita a morte que me deste!

Oh floresta! Oh granitos revestidos
De auroras e crepusculos e Lenda:
Que o som da minha lyra a vós ascenda!
Vossa esculptura de intima harmonia
Seja accordes em echos desferidos,
Eternidade, Azul, melancholia...

Quero inclinar a fronte,
Quero dormir ouvindo de Alem-Mundo
Meu carme gemebundo
Rasgando nuvens, ceus, aladamente,
E, baixinho, humanissimo, contente,
Humedecendo resequida fonte...

E eis-me esculpindo formas de florestas,
Eis-me gravando a som um tronco esqualido,
Abrindo nas prisões esguias frestas,
Por onde o luar se escôa muito pallido...
Eis-me gravado a som, eis-me esculpindo
Oh Cintra o teu perfume pelo Outomno...
Eis-me sagrado e lindo,
Rasgando a luz a noite do meu somno...
E vivo a Eternidade no meu canto!
Attonito de mim, revolvo mundos,
Sou magico de encanto,
Érro pelos abysmos mais profundos,
E trago auroras rutilas nos olhos
E harmoniso de paz os horisontes!

Sou melodia humida do mar
Rezada nos escolhos...

E, ao vir do Outomno, incerto de distancia,
Saudoso olôr memóra a minha infancia,
Vou ausente de mim por mim a andar...

Tudo o que eu fui acórda! É agua viva...

Cintra, vagueio em ti! Nas tuas fontes
Minha saudade em lagrimas deriva,
E o Outomno é o meu fantasma a recordar!

Ancêde. Outubro de 1912

Mário Pires Gomes Beirão (n. em Beja a 1 Mai 1890; m. em Lisboa a 19 Fev. 1965)

Ler do mesmo poeta, neste blog: Adeus; Ausencia


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