O Hissope Poema Herói-Cómico - Do Canto Terceiro (extracto) - António Dinis da Cruz e Silva
Já na soberba mesa cem terrinas,
O vapor mais suave derramando,
A insaciável gula provocavam,
Quando chegam ao cheiro os convidados,
Que, feitos os devidos comprimentos,
Sem distinção, em torno, se assentaram.
Começam a chover logo os manjares,
Cem perdizes, cem pombos vêm voando,
Cem espécies de molhos, cem de assados,
Grandes tortas, timbales, pastéis, cremes
Cobrem com simetria a grande mesa:
A cabeça não falta da vitela,
Nem do gordo animal a curta perna,
Cozida em branco leite, ou doce vinho;
Mil frutas, mil corbelhas, mil compotas
A terceira coberta logo adornam;
E em dourados cristais, ó loução Baco,
De tuas plantas brilha o roxo sumo.
Entretanto na porta do palácio,
A cem pobres o bicho da cozinha,
Por ordem do pastor caritativo,
Um caldeirão de caldo repartia.
[...]
O bom cónego, vendo os grossos tomos;
De prazer, em si próprio, não cabia:
Julgando, pelo vulto dos volumes,
Que seria qualquer autor de arromba;
E, sem demora, ordena lhe tragam,
Para um voto lançar, que semelhante
Nas decisões da Rota não se encontre;
Papel de Holanda, penas, e tinteiro;
E para que completo em tudo fosse,
A Roda da Fortuna, e Cristais d’alma
Trazer manda também, fazendo conta
De em partes lhe cerzir alguns pedaços,
Que encantado o deixaram quando os lera.
Isto ordenado, para a banca chega,
O lenço tira, o grosso monco assoa,
Toma tabaco, escarra, os livros abre,
E a folhear começa. Porém, vendo
Que nada entende do que está escrito,
Para a ceia se chega, e enchendo a pança,
Se foi a repousar no brando leito.
[...]
Extraído de Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI
Porto Editora
António Diniz da Cruz e Silva (n. Lisboa 1731 – m. Rio de Janeiro, 5 Outubro de 1799)
Ler do mesmo autor, neste blog:
Soneto IV
Soneto LXXIV
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