RETRATO - Vasco de Lima Couto
Fui só eu que estraguei as alvoradas
- presas suaves nos plúmbeos céus!,
e dei água aos ribeiros da minha alma
e fiz preces de amor e sangue, a Deus...
Fui só eu que, sabendo da tormenta
que o vento da nortada me dizia,
puz meus lábios no sonho incompleto
e rasguei o meu corpo na poesia.
Vieram dar-me abraços e contentes
viram que me afundava sem remédio
- nem um grito subia do horizonte
há mil anos deitado sobre o tédio!
Quando chamaram por mim do imenso rio
que a noite veste para se entreter
vi que os barcos andavam cheios de almas
buscando sonhos para não sofrer.
Cantavam doidas como a dor e a morte
parando, a espaços, para ver montanhas
e eram luzes mordidas pelas sombras,
corajosas, infelizes - mas tamanhas!
Eu fugi de as ouvir (que ardentes vozes...)
de navegar nas mesmas ansiedades
e fui sozinho semear as luas
e a natureza inculta das idades.
Parti, negando à vida o seu direito,
recalcando os meus sonhos e os meus medos...
sei agora que matei o meu destino
e quebrei o futuro nos meus dedos.
Vasco de Lima Couto (Porto, 26 de Novembro de 1923 - Lisboa, 10 de Março de 1980)
Do mesmo autor ler (e ouvir) no Nothingandall:
Noite na voz de António Mourão
Pomba Branca na voz de Max e no duo Paulo de Carvalho + Dulce Pontes
Disse-te Adeus e Morri - na voz de Amália
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