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2011-12-11

As Claras Imagens - Manuel Gusmão

Supõe aquele homem sentado na redonda brancura
de um pátio em que o sol chove as paredes transparentes.
Ele olha a tremenda e maligna glória do dia: sim,
sou uma pedra de sob o sol, mas uma pedra cheia de noite.
Então, as máquinas de cena apagam toda a luz e acendem
uma imagem semovente e fixa do universo;

da noite do universo;

o homem, esse, é aqui um velho braço de mar; uma bicicleta
incompleta em que o vento inventa a música agreste
e frágil; um rádio antigo continuando a soar enquanto
vai caindo pelos degraus da última casa. Este homem
é um cão cego; uma repetição inútil; uma cadeira
baloiçando vazia ao pé de um candeeiro cuja luz decai.

A última irmã (na ordem da invenção)
trouxe uma cadeira para o pátio com a palmeira
inventada ao centro e pensa para ele:
Dizemos que as nuvens do outono se despedem
por música
da glória do oiro incendiado alto.
Vivemos tempos que não merecíamos. Há muito
que te pressentia assim: um homem afogado e
depositado na praia. Um homem a quem secaram
toda a música. Mas porquê tão cedo?
Porquê das claras imagens tão cedo te perdeste?
Respiras demasiado alto, oiço o teu esforço
e é contra esse som que te digo: Diz-me
o que queres. Se quiseres virei sentar-me
aqui mesmo, de frente para ti. Como agora.
Sim, fico,
ficarei à espera de te ver a entrar nela.
Estarei cá -
demasiado tarde mas um pouco antes -
virei a tempo de te ver entrar
na tua morte.
Guardarei em mim a tua figura vacilante firme
a desaparecer entrando nela.
Guardarei essas imagens e esquecê-las-ei tão fundo
quanto puder, até as ter no cinema do sangue, nas
mãos que te inventaram, até as ter em dedos.
E mais tarde voltarei então ao lugar da tua ausência
e sílaba por sílaba cantarei por ti
cantarei em direcção a ti
as claras imagens em que morrias.
E escreverei no piano
das águas
as provas de que viveste, de que estiveste vivo
um dia.


"Migrações do Fogo",2004

Manuel Gusmão nasceu em Évora a 11 de Dezembro de 1945


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