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2011-10-17

Poema Dum Funcionário Cansado - António Ramos Rosa

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo
e as casas engolem-nos
sumimo-nos,
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só


(O Grito Claro, 1958)
in Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, Porto Editora

António Víctor Ramos Rosa (nasceu em Faro a 17 de Outubro de 1924)

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Este Viver Comum
Vertentes;
Não posso adiar o amor...


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