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2010-08-17

Os Ombros Suportam o Mundo - Carlos Drummond de Andrade

Os ombros suportam o mundo
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


in Poesia Brasileira do Século XX, dos Modernistas à Actualidade, selecção, introdução e notas de Jorge Henrique Bastos

Carlos Drummond de Andrade (n. Itabira, 31 de Outubro de 1902 — m. Rio de Janeiro, 17 de Agosto de 1987).

Ler do mesmo autor neste blog:
Além da Terra, além do Céu, Quero; O amor antigo; Indagação; Amar; A Língua lambe; Quarto em Desordem; A Falta de Érico; A Hora do Cansaço


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