Confissão - Guilherme de Faria
Noite… Vejo, na sombra, os astros a fulgir…
— Alma da luz, imersa em funda escuridão,
Oh noite, vem ouvir
A minha confissão!
Tu és a treva eterna e misteriosa,
E eu sou a luz jamais amanhecida:
Sombra de horror, sonâmbula e saudosa
Da luz duma outra vida.
Pelas sombras do mundo me disperso,
Vejo em todas as sombras o meu ser,
E sinto, em cada grito, a dor dum universo,
E sinto, em minha dor, mil almas a sofrer!
Oh, triste confissão
De lágrimas e dor,
De gritos e de horror,
De humana contrição!
Oh sombra de alma, aurora anoitecida,
Acaso a tua luz, um dia, amanheceu?
E enquanto eu ando a errar, perdido pela vida,
Não serás, luz de amor, o sol dum novo céu?
Eu quis lutar, sofrer, sonhar a vida inteira!
E choro, sem viver, a mágoa de existir…
— És a irmã da minha alma, oh pobre, erma roseira
Que Deus soube criar, mas não deixou florir!
Sombra de amor, de sonho e desventura,
Oh noite, vem ouvir a minha confissão,
Que, para além da vida eternamente escura,
— Sonho eterno de luz — há gritos de ambição!
Quero viver, viver!
Oh fria luz do luar,
Rasga a treva noturna do meu ser,
E deixa-me sonhar…
— Quero ser a canção dos astros e dos céus,
E sentir, na minha alma, a luz de Deus!
E em sonhos de quimérica harmonia,
Ser a voz da humildade, a melodia
Das fontes, a cantar…
Ser lágrima de luz em pétalas de flor,
Ser nuvem, a sonhar, perdida no sol-pôr,
Ao longe, sobre o mar…
E sendo sombra, humana escuridão,
Quero ascender em frémitos de chama,
E ser vida de eterna redenção,
Ser a bênção de amor que o sol derrama!
Ser a névoa dum sonho, a errar, longe de tudo…
Ser a voz da oração, a ânsia dum voo…
— Mas eu quero viver, quero ser tudo,
Só não quero, Senhor!, ser o que sou!
Guilherme de Faria nasceu em Guimarães em 6 de outubro de 1907, e faleceu em Lisboa a 4 de janeiro de 1929
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