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2013-02-26

Salmos do Prisioneiro II - Jaime de Magalhães Lima

II

Quando a saudade me repete as horas de infância e candidez, há longos anos já contadas e passadas, e sempre tão presentes, renovadas na obsessão de sonhos procurando um reino de pureza onde não chegue o desengano amargo deste mundo que nos perturba a fé e o pensamento, renascem aos meus olhos claramente quantas sombras então me protegiam, quantas árvores então foram afago do despertar das minhas ilusões e das alegrias em que me sorriam. Todas as vejo e todas me repetem a sua formosura e o seu encanto, tais quais nessa alvorada me encontraram, amando-as com um amor que só cresceu, intemerato, isento, incorruptível, sofrendo vária sorte sem mudança, a sorte mais contrária e a mais benigna. Em todos os meus passos me seguiu: foi amparo na dor e acompanhou-me no mais rude trabalho, e no repouso, e na alegria de descuidados dias de ventura.

Aquelas mesmas árvores que amei e o acaso funesto destruiu para consumarem um heróico holocausto de bondade, essas mesmas eu vejo na lembrança, serenas e viçosas como as vi quando o meu coração as descobriu.

Lá ao fundo da encosta, onde a floresta acaba e vem o prado, ainda vejo, do alto do casal que me agasalhava, toda a espessura do pinheiro manso, a marcar o extremo do valado, cerrada e firme, quási insensível ao vento tormentoso dos invernos, e tão estreitamente unida e igual que pareciam tomadas de amizade as hastes apertadas para viverem seu diferente viver em uma só vida, a cumprirem fielmente um juramento, para afrontarem juntas o rigor e para juntas se erguerem em exaltação - comunidade mística de afecto, religioso côro de louvor, a entoarem seus hinos recitados, em severa harmonia, por um só breviário.

E à tarde, quando o sol decaía e as formas se afundavam no crepúsculo, e de manhã, quando rompia a luz além dos montes e a custo ia acordando o salgueiral, a várzea e as amieiras, e ainda quando ela em nuvens se perdia e melancolicamente transformava em palidez e sombra o meio dia, sempre dos ramos do pinheiro vinha uma emanação doirada resplendente, como se o sol ali pousasse sempre, jámais o abandonasse à escuridão, e o defendesse, para que por sua vez a árvore nos desse, perpetuamente, aquela mesma luz que o sol lhe dava e nunca se apagava nos seus ramos.

A pobreza dos homens há muito arrancou já daquela terra, que esplendidamente engrandecia, o pinheiro rebusto a cuja sombra a minha mocidade, cativada de todo o seu podêr e magestade, muitas vezes pediu que lhe dissesse o segredo da sua aspiração e o mistério da sua formosura. Há muito é cinza e pó e ao pó volveu, sacrificado a chamas piedosas. Mas a perene claridade dos seus ramos que, constante, o doirava em doce esmalte, ou o sol brilhasse alto ou se ocultasse, esse sonhar do sol que ali pousava e nunca se extinguia, êsse não se apagou nem dissipou e êsse me prende ainda e me fascina. Vive nos céus onde as estrelas vivem; de lá nos ilumina e guia em nossa estrada; perpassa etéreo em toda a imensidade repetindo-me os salmos que eu ouvi aos ramos do pinheiro murmurando sua ardente oração à luz do sol.
 

Jaime de Magalhães Lima (Aveiro, Vera Cruz, 15 de outubro de 1859 — Aveiro, Eixo, 26 de fevereiro de 1936)


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