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2010-06-18

O Acalentar Da Neta - Xácara - António Feliciano de Castilho

Dorme, dorme, minha neta,
Senão não sou tua amiga;
Dorme que eu te embállo o berço,
E te canto uma cantiga.

Vai a bella Dona Auzenda
Caminho de Palestina,
Leva traje de romeiro,
Com seu bordão e esclavina.
Dona Auzenda, Dona Auzenda,
Em sabendo que és fugida,
Tua mãe cairá morta,
E tuas irmans sem vida.
Pouco importa a Dona Auzenda
Quem na Hespanha morra ou viva,
Vai em busca de sua alma
Que em Palestina é cativa.
De lá lhe vieram cartas,
E uma carta lhe dizia:
"Teu amigo Dona Auzenda
"Chora de noite e de dia.
"As cadêas não lhe pezam,
"Pezas-lhes tu, porque scisma
"Que ha de morrer sem mais ver-te,
"Nem ver-te quer na mourisma."


Dorme, dorme, minha neta,
E tu fuzo, fia, fia:
Eu canto á minha candêa,
Ao pé da Virgem Maria.

Vendeu joias e arrecadas,
Comprou bordão e esclavina,
E trajada de romeiro
Já demanda a Palestina.
Vai pedindo pelas portas,
Por sóes e chuva caminha,
Trabalhos não a quebrantam,
Com elles vai mais azinha.
Uma tarde, era sol posto,
Quando avistou uma ermida,
Era de Nossa Senhora,
Mãe dos homens se appellida.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu, fuzo, fia, fia:
Eu canto á minha candêa,
Mercê da Virgem Maria.

Os sóccos descalça á porta,
E ajoelha com fé viva,
Pedindo lhe restitua
Sua alma que jaz cativa.
Os olhos da Virgem Sancta
Deram mostras de afligida,
Ergueu-se um vento da serra
Que toda tremeu a ermida.
Coitada de Dona Auzenda,
Mais triste sáe do que vinha:
Cerrou-se-lhe logo a noite,
E ella nos bosques sósinha !
Queria andar, e não pôde
Que o grande escuro a tolhia,
Necessitava encostar-se.
Tinha medo, e não dormia
N'uma raiz pousa a face,
O corpo em folhas reclina,
Com suas penas conversa,
Coitada da peregrina.
Perdi a terra e o palácio,
Perdi a mãe que lá tinha,
Perco-me agora a mim mesma,
E o que procurando vinha.
D. Giraldo, D. Giraldo,
Só a fé não é perdida.
Pois tu sabes que eu te adoro,
E eu sei como sou querida.
Peço ao meu anjo da guarda,
Se hei-de aqui ficar perdida,
Que vá levar-te por sonhos
Esta minha despedida.
Assim dizia a formosa
Dona Auzenda de Molina,
E ao dizer anjo da guarda,
Lembrou-lhe a irman pequeninha.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu, fuzo, fia, fia:
Eu canto á minha candêa,
Eu sou da Virgem Maria.

Então dos olhos cançados
Lhe borbotou a dor viva,
E ouviu folhas abanadas,
E viu uma luz esquiva.
Logo para aquella parte,
Porque o pavor a conquista,
Em joelhos com mãos postas
De relance estende a vista.
E viu uma sombra grande,
Que mui devagar caminha;
Quiz rezar, benzeu se errado,
Não deu Co'a Salve Rainha.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu fuzo, fia, fia :
Eu canto á minha candêa,
Guarde-me a Virgem Maria.

O andar do fantasma branco
Nenhum ruído fazia,
Parou, e poz nella os olhos
Mas eram terra, não via.
Estendeu-lhe os braços longos,
E com uma voz, como briza,
Lhe diz = "Eu sou D. Giraldo,
"Que em mim já se não divisa.
"Tu buscavas o cativo,
"Eu procuro a peregrina,
"Tua alma quer Deus que esteja
"Com meu corpo em Palestina.
"Os nossos anjos da guarda
"Deram palavras sem língua,
"Que á meia noite aqui mesmo
"Findaria a nossa mingua.
Deus, á alma envia um corpo,
E ao corpo uma alma envia ..."
Já estas finaes palavras
Dona Auzenda não ouvia.

Dorme, dorme, minha a neta,
E tu, fuzo, fia, fia :
Que eu canto ao pé da candêa
Que accendo á Virgem Maria.

Tinha dado a meia noite,
E Dona Auzenda caíra :
Ai! Jaz morta a Dona Auzenda
Que tantas penas sentira !
Quem ha de enterrar seu corpo
N'essa noite desabrida,
Ou quem aos pés da Senhora
A irá sepultar na ermida?
E a alma de D. Giraldo,
Que tão solitária fica,
Não terá padre que rese
O que por almas se applica !
Mas nunca mais na floresta
Nenhuma cousa foi vista,
Os que o sitio tem buscado
Nunca lhe acharam a pista.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu, fuzo, fia, fia :
Eu canto á minha candêa,
E reso á Virgem Maria.

N'essa noite á meia noite,
Indo o sete-estrello acima,
Callou de repente as vozes
Môcho que magoas lastima.
E o gallo que por taes horas
Com seu canto á reza excita,
Bateu as azas callado
Ao pé do leito do ermita.
Tocou sem mão a sineta,
Abriu-se a porta da ermida,
As vellas do altar accezas,
A Senhora mui garrida.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu fuzo, fia, fia :
Eu canto á minha candêa,
E vejo a Virgem Maria.

E entrou a orar um estranho
Peregrino, ou peregrina,
Que de todo dava mostras,
E fallava em Palestina.
Se ía ou vinha, nunca o disse,
Quando o ermita o requeria,
Que ora fallava em ser volta,
Ora fallava que se ía.
E disse : a Deus me encommenda
Por tres, mais tres, e tres dias
Que ao cabo d'uma novena
Findarão mil agonias.
Ora n'essa mesma noite
Quiz a bondade divina,
Que outra novidade grande
Succedesse em Palestina.
Da cova de D. Giraldo,
Á meia noite precisa,
Surgiu um corpo defuncto
Que a todos atemorisa.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu, fuzo, fia, fia :
Eu canto á minha candêa,
Ouça me a Virgem Maria.

E veio uma alma voando,
Que pelos ares foi vista,
Nossa Senhora a guiava,
Vinha-lhe um anjo na pista.
Metteu-se dentro ao finado,
E o finado cobrou vida,
Poz-se c'o anjo a caminho,
A Senhora era já ida.
Como a novena acabava,
Ao cabo do nono dia,
Vinha pela ermida entrando
Outro romeiro á porfia.
E este assim como o primeiro
Muito ao velho desatina,
Que também não cae na conta
Se é romeiro ou peregrina.
Os dois romeiros se olhavam,
E a Mãe dos homens sorria,
O ermita estava pasmado,
E um padre moço apar'cia.
Por debaixo do roquete,
Que era neve sem mentira,
Reluziam duas azas
Ambas de prata e safira.
Tomou-lhes as mãos direitas
Com signaes de muita estima,
E disse: conjungo vos:
E poz-lhe a estóla por cima.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu, fuzo, fia, fia :
Eu canto á minha candêa
Louvor á Virgem Maria.

Nove annos eram passados
E apôz nove annos um dia,
Quando ao dar da meia noite
Lá na porta se batia.
Como se abriu a Capella
Logo entrou por ella acima
Um caixão com dois defunctos,
Todo de obra muito prima.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu, fuzo, fia, fia :
Eu canto á minha candêa,
E estou co'a Virgem Maria.

Vinham ambos abraçados,
Com mostras de quem dormia,
Com coroas de flores brancas,
E ninguém as lá trazia.
Mãos que pegavam á argola
Eram mãos que se não viam,
Nem se enxergava pessoa
Nos cantares que se ouviam.

Dorme, dorme minha neta,
E tu, fuzo, fia, fia:
Eu canto á minha candêa,
Ao pé da Virgem Maria.

Foi escripta esta memoria.
Numa taboa bem polida,
Qu'inda agora na Biscaya
Se vae ver aquella ermida.
A campa ficou sem nomes
Mas toda a gente dizia,
Que era Auzenda e D. Giraldo,
Filhos da Virgem Maria.
Por devoção que um e outro
Com o sancto rosário tinha,
Inda por morte casaram,
Sendo a Senhora Madrinha.

Dorme, dorme, minha neta,
Que tenho a rocada linda :
Ámanhaã, querendo a virgem,
Te direi outra mais linda.


in O PANORAMA, Jornal Literário e Instructivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis, número 74, Setembro 29, 1838

António Feliciano de Castilho, primeiro visconde de Castilho (n. Lisboa, 28 de Janeiro de 1800 — m. Lisboa, 18 de Junho de 1875)

Ler do mesmo autor, neste blog:
Visão
Convite para a Felicidade
A Ermitagem da Montanha


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