Teoria e Prática do Poema - Haroldo de Campos (na passagem do 80º. aniversário do nascimento do poeta)
Pássaro - by florbellaba
I
Pássaros de prata, o Poema
ilustra a teoria do seu vôo.
Filomela de azul metamorfoseado,
mensurado geômetra
o Poema se medita
como um círculo medita-se em seu centro
como os raios do círculo o meditam
fulcro de cristal do movimento.
II
Um pássaro se imita a cada vôo
zênite de marfim onde o crispado
anseio se arbitra
sobre as linhas de força do momento.
Um pássaro conhece-se em seu vôo,
espelho de si mesmo, órbita
madura,
tempo alcançado sobre o Tempo.
III
Equânime, o Poema se ignora.
Leopardo ponderando-se no salto,
que é da presa, pluma de som,
evasiva
gazela dos sentidos?
O Poema propõe-se: sistema
de premissas rancorosas
evolução de figuras contra o vento
xadrez de estrelas. Salamandra de incêndios
que provoca, ileso dura,
Sol posto em seu centro.
IV
E como é feito? Que teoria
rege os espaços de seu vôo?
Que lastros o retêm? Que pesos
curvam, adunca, a tensão do seu alento?
Cítara da lingual, como se ouve?
Corte de ouro, como se vislumbra,
proporcionado a ele o pensamento?
V
Vede: partido ao meio
o aéreo fuso do movimento
a bailarina resta. Acrobata,
ave de vôo ameno,
princesa plenilúnio desse reino
de véus alísios: o ar.
Onde aprendeu o impulso que a soleva,
grata, ao fugaz cometimento?
Não como o pássaro
conforme a natureza
mas como um deus
contra naturam voa.
VI
Assim o Poema. Nos campos do equilíbrio
elísios a que aspira
sustém-no sua destreza.
Ágil atleta alado
iça os trapézios da aventura.
Os pássaros não se imaginam.
O Poema premedita.
Aqueles cumprem o traçado da infinita
astronomia de que são órions de pena.
Este, árbitro e justiceiro de si mesmo,
Lusbel libra-se sobre o abismo,
livre,
diante de um rei maior
rei mais pequeno.
Extraído de Poesia Brasileira do Século XX, dos Modernistas à Actualidade, selecção, introdução e notas de Jorge Henrique Bastos, Edições Antígona
Haroldo Eurico Browne de Campos (São Paulo, 19 de agosto de 1929 — 16 de agosto de 2003)
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