«Vae ser pedida. Casa qualquer dia» - Augusto Gil
Tive noticias hoje a teu respeito:
«Vae ser pedida. Casa qualquer dia».
E o coração tranquillo no meu peito
- Continuou a bater como batia...
Surpreso duma tal serenidade,
Todo eu, intimamente, me sondava:
Pois nem ciumes? Nem sequer saudade?!
- E nem ciumes, nem saudade achava...
Saudades, não; que o teu amor antigo
Guardam-no as cinzas (neste coração)
Como em Pompeia aquelles grãos de trigo
Que após centenas d'annos deram pão...
Saudades! Mas de quê?! Pois não sei eu
A lei antiga como o proprio mundo
De que o prazer mal chega, já morreu,
E só a dôr nas almas cava fundo?
Causei-te longas horas d'amargura,
Não consegues voltar a ser feliz;
A chaga que te abri não terá cura,
E se curar--lá fica a cicatriz.
Á luz dum juramento que trahiste
Tu has de vêr-me toda a vida pois.
Ergueste-o a Deus num dia amargo e triste
E Deus casou-nos esse dia, aos dois...
Ciumes também não, por te venderes.
Desgraçadinha! Antes te houvesses dado;
Não descerias tanto entre as mulheres,
Seria mais humano o teu peccado.
Porém, embora a tua falta aponte,
P'ra mim és a que foste (ou que eu suppuz);
O sol desapparece no horisonte
- E a gente vê-o ainda a dar-nos luz...
Póde a desgraça erguer em frente a mim
Altas montanhas d'elevados cumes.
O sol do amôr doiral-as-ha, e assim,
Vendo-o tão alto, não terei ciumes.
Ciumes! Elle é que hade tel-os, quando,
Em claras noites de luar silente,
Ouvir vibrar alguma voz, cantando
Os versos que te fiz devotamente.
Versos para te ungirem os ouvidos
E os labios d'anemica e de santa,
Tão pobres, tão ingenuos, tão sentidos,
Que o povo humilde os acolheu e os canta.
Então, se te olhar bem, logo adivinha...
Logo sombriamente se convence
De que a tua alma se fundiu na minha
--E apenas o teu corpo lhe pertence.
in Luar de Janeiro
Augusto César Ferreira Gil (nasceu em Lordelodo Ouro, Porto, 31 de Julho de 1873, faleceu em Lisboa a 26 de Fevereiro de 1929)
«Vae ser pedida. Casa qualquer dia».
E o coração tranquillo no meu peito
- Continuou a bater como batia...
Surpreso duma tal serenidade,
Todo eu, intimamente, me sondava:
Pois nem ciumes? Nem sequer saudade?!
- E nem ciumes, nem saudade achava...
Saudades, não; que o teu amor antigo
Guardam-no as cinzas (neste coração)
Como em Pompeia aquelles grãos de trigo
Que após centenas d'annos deram pão...
Saudades! Mas de quê?! Pois não sei eu
A lei antiga como o proprio mundo
De que o prazer mal chega, já morreu,
E só a dôr nas almas cava fundo?
Causei-te longas horas d'amargura,
Não consegues voltar a ser feliz;
A chaga que te abri não terá cura,
E se curar--lá fica a cicatriz.
Á luz dum juramento que trahiste
Tu has de vêr-me toda a vida pois.
Ergueste-o a Deus num dia amargo e triste
E Deus casou-nos esse dia, aos dois...
Ciumes também não, por te venderes.
Desgraçadinha! Antes te houvesses dado;
Não descerias tanto entre as mulheres,
Seria mais humano o teu peccado.
Porém, embora a tua falta aponte,
P'ra mim és a que foste (ou que eu suppuz);
O sol desapparece no horisonte
- E a gente vê-o ainda a dar-nos luz...
Póde a desgraça erguer em frente a mim
Altas montanhas d'elevados cumes.
O sol do amôr doiral-as-ha, e assim,
Vendo-o tão alto, não terei ciumes.
Ciumes! Elle é que hade tel-os, quando,
Em claras noites de luar silente,
Ouvir vibrar alguma voz, cantando
Os versos que te fiz devotamente.
Versos para te ungirem os ouvidos
E os labios d'anemica e de santa,
Tão pobres, tão ingenuos, tão sentidos,
Que o povo humilde os acolheu e os canta.
Então, se te olhar bem, logo adivinha...
Logo sombriamente se convence
De que a tua alma se fundiu na minha
--E apenas o teu corpo lhe pertence.
in Luar de Janeiro
Augusto César Ferreira Gil (nasceu em Lordelodo Ouro, Porto, 31 de Julho de 1873, faleceu em Lisboa a 26 de Fevereiro de 1929)
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