Dia do Julgamento - Gabriel Nascente
EU não vim para molestar o sentimento
daqueles que perderam o caminho das lágrimas.
Nem tampouco para ulcerar a dignidade sacra
do pão sobre a mesa. Eu vim, amigo, para falar
desta ferramenta fundamental que é a vida,
destes olhos naufragados na rebelião de um pranto,
da tristeza sem fim de minha mãe
que toma remédio de hora em hora,
do cansaço comprido de seus olhos
pedindo sossego pro mundo —
sobretudo, amigo, para falar
do regresso imponderável de todas as manhãs
da estrela magnífica que clareia
como espuma
nos olhos da lavadeira,
daqueles que trabalham com os mortos
e sabem de cor a numeração das lágrimas,
dos que constroem apartamentos
e dormem em camas de zinco,
dos que tiram fotografias
ao lado dos políticos,
da poesia, sobretudo da poesia,
que é mais forte que um boi
na canga de seu ofício,
da poesia
que é mais vulgar
que um beijo no prostíbulo
da poesia
que cancela o desespero
que maltrata o sofrimento
que proclama a paz
da poesia
que navega em nosso corpo
como um grito numa mansão deserta
da poesia
que é mais bela
que um trem na mata
da poesia
que é mais bela
que um cantil cheio d'água
da poesia
sobretudo da poesia,
que é como a presença de um rio
entrando pela noite dos escombros,
— ave muito clara, ternura,
deixa-me morrer
entre as estrelas.
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