Que associação estranha há entre poesia e contabilidade?
Mas a que propósito vem isto? Fernando Pessoa foi trabalhador do comércio: foi escriturário numa empresa de transitários na Baixa de Lisboa. E foi mesmo director da «Revista de Comércio e Contabilidade», cujo primeiro número saiu em Janeiro de 1929.
A relação escriturário, guarda-livros, contabilista e a poesia é em Pessoa bem vísível especialmente através da escrita de Bernardo Soares.
«A par do seu Livro do Desassossego – coleção de “impressões sem nexo, nem desejo de nexo” em que ele narra a sua “autobiografia sem factos”, a sua “história sem vida” –, compõe ainda o livro comercial do escritório em que trabalha, livro de números que também o acompanha durante toda a sua vida. E é esta, precisamente, a sua tragédia: ser naturalmente um sonhador e socialmente um contabilista; ser escritor e também, por força escrevente» (1)
«...Assim, Soares pode apenas identificar-se “em grande parte” – mas não inteiramente – com os sonhos que concebe e com a prosa que escreve. Em parte ele é prosa, em parte é números e cálculos. O cotidiano rasteiramente burguês que ele vai vivendo na Lisboa da década de 1930 constitui também, em larga medida a sua personalidade...»
ou ainda adiante «É, de resto, a ocupação rasteira de contabilista que o prende ao mundo real
e que faz dele um observador do espaço urbano tão lúcido quanto Cesário Verde »
«É a imprescindível função de ajudante de guarda-livros que, surpreendentemente, lhe confere o potencial de escritor moderno, dividido entre o espetáculo dos sonhos que a sua própria alma lhe oferece como um “teatro íntimo” e aquele outro espetáculo, todo exterior, que lhe é dado pelo “dos sonhos que a sua própria alma lhe oferece como um “teatro íntimo” e aquele outro espetáculo, todo exterior, que lhe é dado pelo “colorido variadíssimo de Lisboa...», etc.
Não ouso concluir que se Fernando Pessoa não tivesse sido escriturário, empregado de escritório ou trabalhador de comércio não teria sido o grande poeta que foi e teria escrito o que escreveu mas a verdade é que uma pessoa na essência é o denominador comum de uma soma não linear de coisas (esta foi inventada agora por mim) e a verdade é que não é dificil encontrar a associação entre o guarda-livros e a sua poesia.
Pois o que é capaz de não saber é que Cesário Verde (nasceu em Lisboa a 25 de Fev. de 1855 e morreu jovem, tuberculoso em 18 Jul 1886) também exercia a profissão de contabilista numa loja de ferragens do pai ao lado do Terreiro do Paço. Aqui não é conhecida directamente a associação entre a sua poesia e a sua profissão. A não ser que a realidade contabilística o tenha levado à «supremacia do mundo externo, da materialidade dos objectos; impõe o real concreto à sua poesia que se deixa absorver pelas formas materiais e concretas».
É óbvia, sim, a ligação entre a sua poesia e a pintura. Este conceito de poesia-pintura está, aliás, bem presente em poemas como Cristalizações, O Sentimento Dum Ocidental, Manhãs Brumosas, e Contrariedades. Ler por ex. Impressões da cidade em palavras-pinceladas de uma poesia-pintura de Cesário Verde, se não bastasse o próprio autor que dizia «pintar quadros por letras e sinais».
Acho que a associação contabilidade - a escrita numérica, fria, objectiva da realidade empresarial (bem ultimamente... menos objectiva com o abandono crescente do valor histórico para dominancia do justo valor... mas enfim) - e a poesia em que os sentimentos e o sonho se transmitem através da combinação optima (e musical) de palavras, é uma complementaridade necessária ( e não uma tragédia como foi dito numa das citações acima).
A contabilidade traz o poeta à realidade e não permite que fique numa dimensão apenas transcendental que de exacerbada prática pode conduzir à alienação e loucura; por outro lado a poesia leva o guarda-livros / contabilista a outra dimensão, não normativa, sem códigos ou coimas, espiritual e livre!
(i) in Os desassossegos de Fernando Pessoa de Renata Soares Junqueira
0 comments:
Enviar um comentário