Blog Widget by LinkWithin

2006-12-13

Discurso sobre o fulgor da Língua - José Eduardo Águalusa

(...) Eu deixava-me afundar no ar de torpor da tarda tarde. Estendia-me numa das redes e logo caía num sonho rápido, em algum lugar ainda mais a sul, entre torrentes de água fria, sob um céu nu e metálico, nalguma praia de veludo refrescada pela brisa salgada do mar. Despertava minutos mais tarde, encharcado em suor, louco de sede, sufocado por aquele ar de ácaros, saía pela porta aos tropeções, cruzava a rua, e desfalecia de bruços no balcão do bar em frente, implorando pelo amor de Deus uma cerveja estupidamente gelada.

Chegara ali como um náufrago, de mochila às costas, e logo me fascinara o improvável alfarrabista, ou sebo, nome mais comum no Brasil, ocupando por inteiro os dois andares de um fatigado casarão colonial. Se eu fosse alfarrabista teria imenso trabalho para organizar a minha loja de forma a que parecesse naturalmente desorganizada. Um alfarrabista organizado, metódico, sugere-me algo vagamente monstruoso, capaz de ofender a ordem natural das coisas, um pouco como um lagarto com duas cabeças, um advogado ingénuo, um general pacifista. A maioria das pessoas que frequentam alfarrabistas gostam de pensar que caminham entre o caos, e que em meio àquele grave e silencioso tumulto podem, de repente, tropeçar na primeira edição d´ Os Lusíadas, ao preço de um romance de Paulo Coelho. Houve um tempo, romântico, em que essas coisas podiam realmente acontecer. Um tempo em que os alfarrabistas ainda respeitavam a desordem. Os novos profissionais desta área são, desgraçadamente, muito bem informados e ainda melhor organizados. No sebo do Velho Firmino Carrapato, porém, a desordem era legítima e muito antiga. Três gerações de Carrapatos haviam contribuído com o seu demorado labor para aquele esplêndido caos. Os livros multiplicavam-se, empilhados pelo chão, ou desalinhados por metros e metros de incertas estantes em alumínio, sem outra lógica que não fosse a da sua chegada ali. O Velho Firmino dispusera cinco ou seis redes amarradas às colunas, junto às largas portadas abertas para a rua, de forma que era possível folhear os livros com alguma comodidade, rezando para que a brisa da tarde fosse capaz de abrandar o calor, sim, mas não forte o suficiente para transformar em irremediável pó, pura poeira erudita, os papéis antigos.

Firmino gostava de mim. Estranhara ao princípio o meu sotaque – de onde vinha eu? Angola?! –, olhara-me perplexo:

“Na África?! E lá falam português?...”

Disse-lhe que sim, que falávamos português, tal como muita gente em Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor, e, é claro, em Portugal. Não, isso não, contestou o velho, em Portugal não. Os portugueses já mal falam português. Na verdade, acrescentou, nem sequer se pode dizer que falem, isso carece de demonstração. Ele vira, meses atrás, um filme português e não compreendera uma única palavra. Os actores emitiam uns vagos murmúrios, mantendo a boca fechada, como se fossem ventríloquos, com a diferença de que os bons ventríloquos falam pelo próprio umbigo, ou o alheio, falam pelos cotovelos, falam inclusive pela boca fechada de um português, e sempre com relativa clareza. Argumentei, já um pouco irritado, que isso tinha a ver com a deficiente qualidade técnica do som dos filmes portugueses, bem como, é certo, com a má dicção de alguns dos actores, e depois dei o braço a torcer, e concordei que sim, que os filmes portugueses deviam ser exibidos com legendas, não apenas no Brasil mas também em Portugal. Estávamos nisto quando, sereno como um milagre, entrou na loja um português. Era um homem franzino, e no entanto sólido e elegante, com o crânio rapado, uma barbicha rala, bem desenhada, uns óculos de aros redondos, em prata, que deviam ser herança de algum remoto antepassado.

“Boa tarde! Posso entrar?”

Também ele falava sem abrir a boca, mas parecia simpático, de forma que o chamei, apresentei-lhe o alfarrabista, e em breves palavras dei-lhe conta da nossa querela. Um pequeno clarão iluminou os óculos do português e ele sorriu. A questão recordava-lhe uma tese que Agostinho da Silva defendia. Talvez a tese de Agostinho nos parecesse um tanto bizarra e sem suporte científico – mas era poética. Disse isto e ficou muito sério:

"A poesia acerta mais do que a ciência. Na natureza, por exemplo, a beleza é utilitária, isto é, não existe no universo fulgor sem serventia. Se os cientistas fossem à procura da beleza ao invés da funcionalidade chegariam mais depressa à funcionalidade."

Segundo Agostinho da Silva as línguas afeiçoam-se às geografias que colonizam. Num horizonte amplo, desafogado, o sotaque é mais aberto, e numa paisagem fechada ele tende a fechar-se. Assim, no Brasil, em Angola ou em Moçambique as pessoas falam a nossa língua abrindo mais as vogais, e nos Açores, na Madeira, em Portugal continental, mas também em Cabo Verde, fecham-nas. (...)

Extracto retirado de Ciberdúvidas da Língua Portuguesa

José Eduardo Águalusa (n. Huambo, Angola a 13 Dez 1960)


0 comments: