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2006-11-30

Poema de Canção Sobre a Esperança - Álvaro de Campos


I
Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios -
Os melhores lírios -
E as melhores rosas
Sem receber nada,
a não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.

II

Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher fez-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga fez-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambolhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem -
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova - tão jovem, como diria o Ricardo Reis -
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio e como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Áustrália

17/6/1929
in Álvaro de Campos Poesia -edição Teresa Rita Lopes, Assírio & Alvim

FernandoPessoa (n. Lisboa, 13 Jun 1888; m. Lisboa, 30 Nov 1935)


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