José Gomes Ferreira nasceu há 105 anos
(Na morte de Manuela Porto)
Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol a fingir
de novo todas as manhãs, convocaríamos os amigos mais íntimos
com um cartão de convite para o ritual do Grande Desfazer:
«Fulano de tal comunica ao mundo que vai transformar-se em
nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio.»
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos escuros,
olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir à despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio. «Adeus! Adeus!»
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, numa lassidão
de arrancar raízes... (primeiro, os olhos... em seguida, os lábios...
depois os cabelos... ) a carne, em vez de apodrecer, começaria a
transfigurar-se em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...
José Gomes Ferreira (n. no Porto a 9 Jun 1900, m. 8 Fev 1985)
in Poesia III, 3ª edição, Portugália Editora, Lisboa, Setembro de 1968
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