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2018-11-23

Há cidades cor de pérola onde as mulheres - Herberto Hélder

Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param, e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas,
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.

Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde consumo
uma amizade bárbara. Um amor
levitante. Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
Olho minha loucura, escada
sobre escada.

Mulheres que eu amo com um des-
espero fulminante, a quem beijo os pés
supostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em que toco levemente
levemente a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.

Dentro de minha idade, desde
a treva, de crime em crime - espero
a felicidade de loucas delicadas
mulheres.
Uma cidade voltada para dentro
do génio, aberta como uma boca
em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.

Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue
de um amargo delírio.
Olho de cima a beleza genial
das suas cabeças
ardentes: - E as altas cidades desenvolvem-se
no meu pensamento quente.

Ofício Cantante - poesia completa.

Herberto Hélder, pseudónimo de Luís Bernardes de Oliveira (n. Funchal, Madeira em 23 de novembro de 1929, m. Cascais, 23 de março de 2015).


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2018-10-31

Amar - Carlos Drummond de Andrade


Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e
uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.

Carlos Drummond de Andrade (n. Itabira, Minas Gerais, Brasil, 31 de outubro de 1902 — m. Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1987)

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2018-10-27

Desaparecido - Carlos Queiroz

Sempre que leio nos jornais:
"De casa de seus pais desapar'ceu..."
Embora sejam outros os sinais,
Suponho sempre que sou eu.

Eu, verdadeiramente jovem,
Que por caminhos meus e naturais,
Do meu veleiro, que ora os outros movem,
Pudesse ser o próprio arrais.

Eu, que tentasse errado norte;
Vencido, embora, por contrário vento,
Mas desprezasse, consciente e forte,
O porto de arrependimento.

Eu, que pudesse, enfim, ser eu!
- Livre o instinto, em vez de coagido.
"De casa de seus pais desapar'ceu..."
Eu, o feliz desapar'cido!

in Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro - 3ª Edição
Porto 2001 Capital Europeia da Cultura - Assírio & Alvim

Carlos Queiroz(n. Lisboa, 5 de abril de 1907, m. Paris, 27 de outubro de 1949)

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2018-10-26

O RETRATO - José Bonifácio (O Moço)

Incline o rosto um pouco... assim... ainda;
arqueie o braço, a mão sobre a cintura;
deixe fugir-lhe um riso à boca pura
e a covinha animar da face linda.

Erga a ponta do pé... que graça infinda!
Quero nos olhos ver-lhe a formosura,
feitiço azul de orvalho que fulgura,
froco de luz suave, que não finda!

Há pouca luz... eu vejo-a... está sentada.
Passou-lhe a sombra de um cuidado agora,
na ruguinha da fronte jambeada.

Enfadou-se? Meu Deus, ei-la que chora!
Pois caiu-me o pincel. Que mão ousada!
Pintar de noite o levantar da aurora!


José Bonifácio de Andrada e Silva, o Moço, poeta, professor, orador e político, nasceu em Bordéus, França, em 8 de novembro de 1827 e faleceu em São Paulo, SP, em 26 de outubro de 1886

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2018-10-11

AMAR OU ODIAR - Fausto Guedes Teixeira


Amar ou odiar: ou tudo ou nada!
O meio termo é que não pode ser
A alma tem d’estar sobressaltada
P’ra o nosso barro se sentir viver.

Não é uma cruz a que não for pesada,
Metade dum prazer não é um prazer;
E quem quiser a alma sossegada
Fuja do mundo e deixe-se morrer.

Vive-se tanto mais quanto se sente;
Todo o valor está no que sofremos…
Que nenhum homem seja indiferente!

Amemos muito, como odiamos já:
A verdade está sempre nos extremos,
Porque é no sentimento que ela está.

Fausto Guedes Teixeira (nasceu na freguesia de Almacave, em Lamego, em 11 de outubro de 1871, faleceu em Lamego a 13 de Julho de 1940).

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