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2014-10-31

Ausência - Carlos Drummond de Andrade

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.


Carlos Drummond de Andrade (n. Itabira, 31 de Outubro de 1902 — m. Rio de Janeiro, 17 de Agosto de 1987).

Do mesmo autor em Nothingandall:
Canção Final
Sentimental
Mãos Dadas
Quero
Os Ombros Suportam o Mundo
O amor antigo
Indagação
Amar
Qualquer Tempo
A Língua Lambe
Quarto em Desordem
A Falta de Érico
A Hora do Cansaço

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2014-10-30

POEMÍNIMIS - A. Estebanez



espinhos
de flores
carinhos
de dores

espinhos
de dores
carinhos
de flores

malditos
benditos
carinhos

benditos
malditos
espinhos

Afonso Estebanez Stael nasceu em 30 de outubro de 1943, em Cantagalo, Rio de Janeiro

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2014-10-29

Nothingandall atinge 10 000 "posts"

Este "post" não tem mensagem! Apenas assinala e assume a particularidade de ser o número 10.000! Uma insignificância...


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Acreditei... - Ana Cristina Cesar

Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos


in “Inéditos e Dispersos”

Ana Cristina Cruz Cesar (nasceu no Rio de Janeiro em 2 de junho de 1952, m. em 29 de outubro de 1983).

Ler da mesma autoria:
Tu queres sono: despe-te dos ruídos
Sexta Feira da Paixão
Final de uma Ode

Tenho uma folha branca
Encontro de Assombrar na Catedral

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2014-10-28

Grito de Alma - Ruy de Noronha

Vem de séculos, alma, essa orgulhosa casta,
Repudiando a dor, tripudiando a lei.
Num gesto de altivez que em onda leva arrasta
Inteiras gerações de amaldiçoada grei.

Ir procurar, amor, nessa altivez madrasta,
Um gesto de carinho ou de brandura, eu sei?
Ao tigre dos juncais, duma crueza vasta,
Quem há que roube a presa? Aponta-me e eu irei!

Cruel destino o meu, que ao meu caminho trouxe
Na fulgurante luz do teu olhar tão doce
À mágoa minha eterna, a minha eterna dor.

Vai. Segue o teu destino. A onda quere-te e passa.
Vai com ela cantar o orgulho da tua raça
Que eu ficarei cantando o nosso eterno amor...


António Ruy de Noronha (n. Lourenço Marques, actual Maputo, Moçambique a 28 Out 1909; m. Moçambique 25 Dez 1943).

Ler, neste blog, do mesmo autor:
Por Amar-te Tanto
Mulher

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2014-10-27

Canção Grata - Carlos Queiroz

Por tudo o que me deste:
– Inquietação, cuidado,
(Um pouco de ternura? É certo, mas tão pouco!)
Noites de insónia, pelas ruas, como um louco...
– Obrigado! Obrigado!

Por aquela tão doce e tão breve ilusão.
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão!

Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste!
– Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado...
Sem ironia, amor: – Obrigado, obrigado
Por tudo o que me deste!


in Poemas de Amor - Antologia de Poesia Portuguesa (org. e prefácio Inês Pedrosa), 6ª edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2003, pág. 133.

José Carlos Queiroz Nunes Ribeiro (n. Lisboa 5 Abr 1907; m. 27 Out 1949)

Do mesmo autor, neste blog:
Anti-Soneto
Amizade
Na Cidade Nasci
Erótica
Apelo à Poesia
Uma história vulgar
Pastoral
LIBERA-ME
Desaparecido

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2014-10-24

Voz Íntima - Amadeu Amaral

Dreams, Serigraph on canvas, 20" x 24 1/2",

Fecha-te, sofredor, na alva túnica ondeante
Dos sonhos! E caminha, e prossegue, embebido,
Muito embora, na dor de um fiei celebrante
De um estranho ritual desdenhado e esquecido!

Deixa ressoar em torno o bárbaro alarido,
Deixa que voe o pó da terra em torno... Adiante!
Vai tu só, calmo e bom, calmo e triste, envolvido
Nessa túnica ideal de sonhos, alvejante.

Sê, nesta escuridão do mundo, o paradigma
De um desolado espectro, uma sombra, um enigma,
Perpassando sem ruído a caminho do Além.

E só deixes na terra uma reminiscência:
A de alguém que assistiu à luta da existência,
Triste e só, sem fazer nenhum mal a ninguém.

Amadeu Arruda Amaral Leite Penteado (n. em Capivari, São Paulo, a 6 de Nov. de 1875; m. em São Paulo a 24 de outubro de 1929).

Ler do mesmo autor, neste blog
Rios
Soneto da Serpente
Lua
Versos Nevoentos
Sonho de Amor

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2014-10-23

RECADO - Nuno Miranda (no 90º aniversário do poeta caboverdeano)

Quando aportares
Dá-lhes notícias de mim nesta cidade.

Diz-lhes da voz surda estremecendo
E leve e tonta no meu peito
Como se nada fora ao vento que se escapa
A este céu onde viceja um cravo
A flor do meu destino.

Diz-lhes que me vou às vezes da noite roxa
Pelos subúrbios de tons bem calmos
Na ronda de lembranças já mortiças
Mas, velhas cicatrizes não saradas,
Ai de mim
Que não encontro as ruinhas serpeando
Pela minha intimidade
O limo nos beirais das ruas do porto
O sonho do mar alto em cada olhar ficado
Não vejo a casa velha
E o terreiro alto onde ancoravam
Os nocturnos das viagens de arrabalde.

Que é dos traquetes tombados e dos botes carcomidos?..

Só a lembrança de outrora
Na flor deste destino.

Se te falarem de mim quando aportares
Diz-lhes que vai ao longe
Na cidade a estibordo
A nave desta carne macerada
E a asa da minha alma em céu aberta…

Nuno Alvares Miranda nasceu a 23 de outubro de 1924, no Mindelo, S. Vicente, em Cabo Verde

in "40 Poemas Escolhidos” (Agência-Geral do Ultramar, Lisboa, 1974)

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2014-10-22

Fotógrafo Ambulante - Oswald de Andrade (na passagem dos 60 anos sobre o seu desaparecimento)

Fixador de corações
Debaixo de blusas
Álbum de dedicatórias
Marquereau

Tua objetiva pisca-pisca
Namora
Os sorrisos contidos
És a glória

Oferenda de poesias às dúzias
Tripeça dos logradouros públicos
Bicho debaixo da árvore
Canhão silencioso do sol


José Oswald de Sousa Andrade Nogueira (n. São Paulo, 11 de janeiro de 1890 — m. São Paulo, 22 de outubro de 1954)

Ler do mesmo autor, neste blog:
Pronominais
Erro de Português
Morro Azul
Canto de Regresso à Pátria
Oferta


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2014-10-21

Ao poeta perguntei - Alberto Janes (fado na voz de Ana Moura)



Ao Poeta Perguntei by Ana Moura on Grooveshark


Ao poeta perguntei
Como é que os versos assim aparecem
Disse-me só: Eu cá não sei
São coisas que me acontecem

Sei que nos versos que fiz
Vivem motivos dos mais diversos
E também sei que sempre feliz
Não saberia fazer os versos

Ó meu amigo, não penses que a poesia
É só a caligrafia num perfeito alinhamento
As rimas são assim como o coração
Em que cada pulsação
Recorda sofrimento
E nos meus versos pode não haver medida
Mas o que há sempre são coisas da própria vida

Fiz versos como faz dia
A luz do sol sempre ao nascer
Eu fiz os versos porque os fazia
Sem me lembrar de os fazer

Como a expressão e os jeitos
Que pra cantar se vão dando a voz
Todos os versos andam já feitos
De brincadeira dentro de nós

Alberto Janes (Reguengos de Monsaraz, 13 de Março de 1909 — Lisboa, 21 de Outubro de 1971)

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2014-10-20

Enquanto Durmo - Paulo Themudo


Uma folha de papel
Amparada pelas minhas mãos,
Berço de criança
Que embalo no tempo.
Qual relógio que não pára
E me desorienta
A fugir... A deixar para trás
A mortalha que me fez silêncio.
Eu queria o mundo
A passar nos meus olhos,
Uma luz vã e serena
Para madrugar os meus sonhos.
Queria tão pouco
E tão pouco recebi...
Desse tempo
Que nunca esqueci.
Fui uma voz embalada
Nesse silêncio que se oculta,
O quanto foi essa figura, bizarra,
Carismática, a perder os dias
sem sentido, sem criação,
sem nada.
Eu visto o frio
O gelo que me estremece,
As palavras dormentes
Que trago
Em rosto de papel
Que escreve o tempo.
O tempo é o silêncio
O puro vazio
Onde quase enlouqueço.
E perguntam-me se mereço...
Não sei... Não esqueço.
Recordo a firmeza desses tempos
Ainda as minhas mãos se elevavam
No rosto do vento,
No soprar incandescente
De um sol nascente.
Consegui ser eu próprio por momentos
Enquanto tive tempo,
Mas o tempo escasseava
E logo se extinguiu o momento.
Que seria de mim hoje
Se me tivesse deixado levar
Pelas razões antigas
Que em berço de papel
Me embalavam
Para viver sem tormento?
Não sei...
Sou gente...
Gente desse tempo,
Foi outro momento
Que nunca mais virá,
E que não sei... Lamento?...

Paulo Themudo Gomes nasceu em 20 de outubro de 1968 na cidade de Matosinhos

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2014-10-19

Soneto do amor total - Vinicius de Moraes

Wall Painting, House of the Epigrams, Reign of Nero from here

Amo-te tanto, meu amor ... não cante
O humano coração com mais verdade ...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

Extraído de Vinicius de Moraes - Antologia Poética, Publicações Dom Quixote

Vinicius de Moraes (n. Rio de Janeiro a 19 de outubro de 1913; m. Rio de Janeiro, 9 de julho de 1980)

Ler neste blog do/sobre o autor:
A Ausente
Sonata do Amor Perdido
Se o amor quiser voltar
Saudades do Brasil em Portugal
Soneto do Amor Total
Poética I
Mar
Poema de Todas as Mulheres
Soneto de Fidelidade
Pela luz dos olhos teus
Dialectica
Aquarela
Amigos

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2014-10-18

Partindo - Eugénio Tavares

Triste, por te deixar, de manhãzinha
Desci ao porto. E logo, asas ao vento,
Fomos singrando, sob um céu cinzento,
Como, num ar de chuva, uma andorinha.

Olhos na Ilha eu vi, amiga minha,
A pouco e pouco, num decrescimento,
Fugir o Lar, perder-se num momento
A montanha em que o nosso amor se aninha.

Nada pergunto; nem quero saber
Aonde vou: se voltarei sequer;
Quanto, em ventura ou lágrimas, me espera

Apenas sei, ó minha Primavera,
Que tu me ficas lagrimosa e triste.
E que sem ti a Luz já não existe.


Eugénio de Paula Tavares (n. Ilha Brava, Cabo Verde a 18 de outubro de 1861; m. 1 junho de 1930)

Ler do mesmo autor:
Canção ao Mar
Força de Cretcheu

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2014-10-17

António Ramos Rosa (na passagem do 90º aniversário do poeta)

Talvez seja o momento de.
Mesmo sem esperança. E ele escreve:
nenhum impulso para ti.
Um espaço deserto.

Ele prescuta entre as pedras e as sombras.
Nada vê. Ignora. Olha.
que traços são estes, qual a origem destas palavras nulas?

Ele escreve. Ele deseja esse desejo
de tornar habitável o deserto.


in A Nuvem Sobre a Página, 1978

António Víctor Ramos Rosa nasceu em Faro a 17 de outubro de 1924 e faleceu em Lisboa a 23 de setembro de 2013.

Ler do mesmo autor neste blog:
Sem segredo algum
Ninguém me disse: Vai por este caminho de água
A Festa do Silêncio
Este Viver Comum
Vertentes
Não posso adiar o amor...
Poema Dum Funcionário Cansado

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2014-10-16

Citação do dia - Quem se julga maior do que os outros...

«el que se tenga por grande
que se vaya al cementerio
y ahí verá lo que es el mundo
es un palmo de terreno»


Quem se julga maior do que os outros
que vá ao cemitério
e aí verá que o mundo
não é mais do que um palmo de terra


El Que Se Tenga Por Grande by Carmen Linares on Grooveshark El Que Se Tenga Por Grande by Jorge Rodriguez on Grooveshark

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Désespoir - Oscar Wilde

The seasons send their ruin as they go,
For in the spring the narciss shows its head
Nor withers till the rose has flamed to red,
And in the autumn purple violets blow,
And the slim crocus stirs the winter snow;
Wherefore yon leafless trees will bloom again
And this grey land grow green with summer rain
And send up cowslips for some boy to mow.

But what of life whose bitter hungry sea
Flows at our heels, and gloom of sunless night
Covers the days which never more return?
Ambition, love and all the thoughts that burn
We lose too soon, and only find delight
In withered husks of some dead memory.


Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde (Dublin, Irland 16 Oct. 1854 – Paris, France, 30 nov. 1900)

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2014-10-15

Ansiedade - Manuel da Fonseca

Quero compor um poema
onde fremente
cante a vida
das florestas das águas e dos ventos.

Que o meu canto seja
no meio do temporal
uma chicotada de vento
que estremeça as estrelas
desfaça mitos
e rasgue nevoeiros — escancarando sóis!


in "Poemas Dispersos"

Manuel Lopes Fonseca (n. em Santiago do Cacém a 15 de outubro de 1911; m. em Lisboa a 11 de março de 1993)

Ler do mesmo autor:
Antes que Seja Tarde
Moite de Sonhos Voada
Poema da Menina Tonta
Tejo que levas as águas
Depois vinha o luar...
Estradas
Segundo dos Poemas de Infância
Ruas da Cidade
Os olhos do poeta
Romance do terceiro oficial de finanças

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2014-10-14

Uma Pedra ao Lado da Evidência - Sebastião Alba

Deito-me na rede atada
Aos pináculos do fuso horário.

Tivessem os meus dias um dono
ao alcance da voz
que por mim cora; sem pejo
o adularia.

Este sulco em minha mão
que enruga a testa das ciganas
não vai mais longe o seu cavalo cego.

Que ilusória beleza
raia
um verso nado
e, dúplice, na ausência de ambos,
a cama estática.

Como dos deuses, descreio
da inspiração;
entre mim e a voz,
há um convívio silente.

Quando da avenida,
o alto repuxo de som
inunda a flat,
volvo eu à secura
íntima da água

Há poetas com musa. Muitos.
Eu, neste jardim do Éden,
a cargo do município,
onde um velho destece a sua vida
e, baixando o olhar,
ainda lhe afaga a trama,
quando a poesia se afoita,
amuo
na agrura de, ao acordar,
tê-la sonhado.


in A Noite Dividida/ o Limite Diáfano, Lisboa, Assírio e Alvim, 1996.

Dinis Albano Carneiro Gonçalves, cujo pseudónimo é Sebastião Alba, nasceu em Braga a 11 de março de 1940; faleceu em Braga a 14 de outubro de 2000.

Pai; quando falava no futuro
Envelheces, Rapaz

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2014-10-13

Metáfora da Ambição - Francisco Manuel de Melo


Vivia aquele Freixo no alto monte,
Verde e robusto: apenas o tocava
O brando vento, apenas o deixava
De abraçar pelos pés aquela fonte.

Tão soberbo despois levanta a fronte,
Como o Pavão, do bosque donde estava,
Envejoso de ver que o mar cortava
Um Pinho que nasceu dele defronte.

Ora saiu da terra e foi navio,
Lutou c'o Mar, lutou c'o vento em guerra:
- Quedas viu ser o que esperava abraços.

Ei-lo que chora em vão seu desvario.
De longe a vê, chegar deseja à terra:
Não lho consente o Mar, nem em pedaços.


in Obras Métricas

Extraído de Poemas Portugueses. Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI

D. FRANCISCO MANUEL DE MELO nasceu em Lisboa a 23 de novembro de 1608 e morreu em Alcântara, Lisboa a 13 de outubro de 1666.

Ler do mesmo autor:
Junto do manso Tejo que corria
Soneto L Moral (Formusura, e Morte advertidas por um corpo belíssimo, junto à sepultura)

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2014-10-12

Aniversário depois dos cinquenta - Fernando Semana

Torna-se uma aventura desconfortável
Acrescentar anos depois dos cinquenta:
Refletir ao espelho... é inevitável
E algo diferente nos apoquenta…

Ressurgem as introspeções, os balanços
Dos sonhos perdidos, das lutas banais,
Dos amores e da vida aos solavancos
- indeléveis contrastes emocionais -,

Parcas alegrias, saudades, enganos,
Mas com a esperança de que, pelo caminho,
Ao menos no dia em que completas anos,

Se torne claro como o foi p'ra Pavia:
- «Em ti amadurece a vida como um vinho
obscuro e raro... Que mais queres?»- Aprecia!


Fernando Semana, é economista a tempo inteiro, e aprendiz de poeta nas horas vagas, tendo nascido na freguesia de Valbom, do concelho de Gondomar, a 12 de outubro de 1957

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2014-10-11

Sonho - Marquesa de Alorna

Sonhos meus, suaves sonhos,
Sois melhores que a verdade;
Quando sonho sou ditosa,
Sem o ser na realidade.

Amor, tu vens nos meus sonhos
Acalmar-me o coração:
Mas, cruel! quanto prometes
Não passa de uma ilusão!

Sonhei, tirano, esta noite,
Sonhei que tu me chamavas,
E que sobre a relva branda
Tu mesmo me acalentavas.

Disseste-me: «Dorme, Alcipe,
Depõe todos os teus cuidados;
Amor sobre ti vigia,
Mal podes temer os fados.»

Dormi: neste dobre sono
Me achei num palácio de ouro;
Entregaram-me uma chave
Para que abrisse um tesouro.

– «Chave mágica, sublime,
Que me vais tu descobrir?
Se é menos do que desejo,
Será melhor não abrir...»

«Abre, Alcipe» – qual trovão
Brada o Deus que me vigia.
Acordei sobressaltada,
E abriu-se, mas foi o dia.


Marquesa de Alorna [D. Leonor de Almeida Lorena e Lencastre] (n. em Lisboa a 31 de Outubro de 1750; m. em Lisboa a 11 de Outubro de 1839)

Da mesma autora: Eu cantarei um dia da tristeza

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2014-10-10

Lacrimário - Antonio Tavernard


Quando eu era criança...
(Parece incrível que eu já tenha sido
criança como parece incrível a tormenta
que já fora bonança).
Quando eu era criança,
e tinha febre leve ou violenta,
e o doutor vinha, grave majestoso,
mamãe dizia: – “Se o filhinho,
tomar o seu remédio direitinho,
papai comprar-lhe-á um brinquedo mimoso
e mamãe há de dar-lhe um beijinho gostoso!”

Mamãe dizia...

E os líquidos amargos, forçando o meu desejo
eu depressa bebia...
Por causa do brinquedo, e pelo beijo...
Também parece um sonho, um sonho lindo,
que pai e mãe eu haja possuído...
Pena é que o sonho tenha terminado,
e que agora eu passe as noites acordado
escrevendo e tossindo!

Estou muito doente. Os médicos vieram
Sacudiram a cabeça, receitaram,
E se foram depois... e não voltaram...
Mas bebi tudo que me deram,
E, se é demais a dor que às vezes vem
O peito me rasgar, choro baixinho...
Não vá meu choro incomodar alguém!

A dar-me água quando estou com sede,
Mamãe já não está
Junto de mim, a balançar-me a rede
Pra lá, pra cá...
Abençôo, contudo, este abandono,
Esta vida infeliz de cão sem dono,
Porque, se aqui estivesse,
Mamãe de dor se tornaria louca,

Se ao menos percebesse
O lenço rubro, com que enxugo a boca
Que todos temem, que ninguém mais quer
e que ela seria
a única mulher
que para ungir, para suavizar,
talvez tivesse – sim teria! –
coragem de beijar...

(E o poeta morreu. Morreu sozinho,
rosa sem haste, pássaro sem ninho.
E, morto, ele sorria, como, quando,
Ia, criança, as pálpebras cerrando
No colo maternal).


in Diário de um Tísico

Antônio de Nazaré Frazão Tavernard nasceu na Vila São João de Pinheiro, atual Icoaraci, em Belém, Pará, a 10 de outubro de 1908 — m. Belém a 26 de maio de 1936

Do mesmo autor:
Sonhos de Sol
Duplicidade
Última Carta
Pórtico

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Citação do Dia / Quotation ofthe day - Lin Yutang

Além da nobre arte de fazer coisas, existe a nobre arte de deixar coisas sem fazer. A sabedoria da vida consiste na eliminação do que não é essencial.


Besides the noble art of getting things done, there is the noble art of leaving things undone. The wisdom of life consists in the elimination of non-essentials.



Lin Yutang 林語堂 (Banzi, Fujian, China, 10 de Outubro de 1895 – Yangmingshan, Taipé, Taiwan, 26 de Março de 1976)

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2014-10-09

A NOIVA DO POETA - Ismael Nery


A minha noiva se reparte toda nas minhas quatro amantes,
Sarah, Esther, Ruth e Rachel.
Sarah tem o seu ar e o seu corpo,
Esther tem a sua cor e seus cabelos,
Ruth tem o seu olhar e seu andar,
Rachel tem sua boca e sua voz.
A minha noiva magnífica só existe
Na minha imaginação.

Ismael Nery nasceu no dia 9 de outubro de 1900 em Belém do Pará e faleceu em 6 de Abril de 1934 no Rio de Janeiro

Do mesmo autor: Eu

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Esboço para um Poema de Amor Moderno - Tadeusz Rózewicz

embora o branco
seja mais bem descrito pelo cinzento
o pássaro pela pedra
girassóis
em Dezembro

os poemas de amor de Outrora
eram descrições da carne
descreviam isto e aquilo
por vezes pálpebras

e embora o vermelho
deva ser descrito
pelo cinzento o sol pela chuva
papoilas em Novembro
lábios de noite

a mais tangível
descrição do pão
é uma descrição de fome
nela está
o caroço húmido e poroso
o interior quente
girassóis à noite
os seios ventre e coxas de Cibele

os seios ventre e coxas de Cibele

Uma primaveril clara
e transparente descrição
da água
é uma descrição da sede
cinzas
deserto
isso produz uma miragem
nuvens e árvores movem-se
para dentro do espelho

privação de desejo
ausência
de carne
tudo isto é uma descrição de amor
um poema de amor moderno

in Qual é a minha ou a tua língua, cem poemas de amor em outras línguas

organização Jorge Sousa Braga, Assírio & Alvim

Tadeusz Różewicz (9 Outubro 1921, Radomsko, Polónia)

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2014-10-08

Correspondência - Alberto de Serpa

Para quem, estas horas que descem da torre da igreja?
Para onde as arrasta este vento manso que não se ouve?
Vão pelo ar suspensas, inúteis, em nuvem invisível,
a fazer mais profundo e mais longo o silêncio que fica...

Os sentidos de quem dorme são para os sonhos,
e, sob o luar claro de noite provinciana,
os anjos da guarda marcam, com suas asas, um ritmo de poesia circunstancial.
Dormem as crianças com sorrisos nos lábios,
dormem os homens com um caminho fácil em frente,
dormem as mulheres com o amor a abrir o coração.

As horas que descem da terra são para a luz daquela janela,
onde, talvez, um homem espera a hora sem hora da morte,
onde, talvez, uma mulher chora sobre cartas de longe,
onde, talvez, uma criança vem a este mundo de sonhos impossíveis.

Há horas que vêm mortas das torres em noites de luar,
e há almas que, como certas grutas perdidas, fazem eco.

in A Vida é o Dia de Hoje (1939)

Alberto de Serpa Esteves de Oliveira (nasceu no Porto a 12 de dezembro de 1906 - m. na mesma cidade a 8 de outubro de 1992)

Ler do mesmo autor, neste blog:
Amores Infelizes
Incerteza
Um Jovem Camarada
Poema III
Interferência
Névoa

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2014-10-07

Pequeno Poema - Cristovam Pavia


Em ti amadurece a vida como um vinho
Obscuro e raro...

Que mais queres?


Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho, que usou o pseudónimo literário de Cristovam Pavia, nasceu na freguesia de Alcântara, Lisboa a 7 de Outubro de 1933 e faleceu na mesma cidade a 13 de Outubro de 1968.

Do mesmo autor:
O poema que hei-de escrever para ti
Não fugir. Suster o peso da hora
Requiem
Na noite da minha morte

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2014-10-06

Amália Rodrigues (no 15º aniversário do seu desaparecimento)

Trago fados nos sentidos
Tristezas no coração
Trago os meus sonhos perdidos
Em noites de solidão
Trago versos, trago sons
De uma grande sinfonia
Tocada em todos os tons
Da tristeza e da agonia.
Trago amarguras aos molhos
Lucidez e desatinos
Trago secos os meus olhos,
Que choram desde meninos,
Trago noites de luar
Trago planícies de flores,
Trago o céu e trago o mar,
Trago dores ainda maiores.


letra de Amália Rodrigues e música de José Fontes Rocha

Trago o Fado nos Sentidos by Amália Rodrigues on Grooveshark
Amália da Piedade Rebordão Rodrigues (Lisboa, 23 de julho de 1920 — Lisboa, 6 de outubro de 1999

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2014-10-05

Soneto [Que aziago que foi, que dia infausto] - Cruz e Silva

Que aziago que foi, que dia infausto
Aquele, em que vi tua formosura!
Em que cheio de amor e de ternura
Esta alma te ofertei em holocausto!

Teus olhos m'o fizeram ter por fausto,
Teus belos olhos cheios de doçura,
Mas logo me fez ver minha loucura
Teu peito de rigores nunca exausto.

Ai! e quão mesquinho é, quão desgraçado
Aquele, que como as mostras vão se engana
De um angélico rosto sossegado!

Pois mil vezes encobre a vista humana
Qual áspide cruel florido prado,
Um coração uma alma desumana.


António Dinis da Cruz e Silva (n. em Lisboa a 4 Jul 1731, m. no Rio de Janeiro a 5 Out 1799)

Do mesmo autor:
É estas porventura a praia amena

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2014-10-04

O Vento - José-Alberto Marques


o vento a estrada prefiro a estrada
o vento a tarde prefiro o sol
o vento o sol pássaros voando
a estrada a esperança construo o tempo

o vento o risco prefiro o sangue
o sangue o verde prefiro a árvore
o vento o homerm invoco o tempo
o tempo o sangue construo a esperança

os braços lábios prefiro a voz
os braços vento prefiro os braços
espaços canto invento o sonho
o sonho pássaros vento cantando

o sino a tarde encontro a noite
crepúsculo a tarde prefiro o sul
o sino o vento o vento encontro
na estrada pássaros voando azul

José Alberto Marques nasceu em 4 de outubro de 1939 em Torres Novas.

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2014-10-03

SONETO FUTURISTA - Carlos de Laet

Noite. Calor. Concerto nos telhados.
Cubos esferoidais. Gatas e gatos.
Vênus. Graças. Aranhas. Carrapatos.
Melindrosas. Poetas assanhados.

Rabanetes azuis. Sóis encarnados.
Comida no alguidar. Cuspo nos pratos.
Três rondas a cavalo. Mil boatos.
Prosa sesquipedal. Tropos safados.

Avenida deserta. Bondes. Grama.
Chopes Fidalga. Leite. Pão-de-ló.
Carros de irrigação. Salpicos. Lama.

Vacas magras. Esfinge. Triste. Só.
Tumor mole. São Paulo. Telegrama.
Dois secretas. Cubismo. Xilindró.


Este soneto satírico teria por alvo o futurismo representado por Graça Aranha, a propósito duma conspiração abortada (segundo Idel Becker, Graça Aranha enviara a São Paulo um telegrama cifrado, anunciando o imediato estouro dum movimento revolucionário. Dizia o telegrama: "Tumor mole virá a furo esta noite". A polícia traduziu corretamente; e prendeu o Graça Aranha. Laet comentou, então: "O Aranha publicou um livro simbólico, CANAÃ, que ninguém compreendeu... Agora faz um telegrama secreto, que todo o mundo decifrou. Obscuro, quando quer a claridade; diáfano, quando busca o mistério. Que estilista!")

Extraído daqui

Carlos Maximiliano Pimenta de Laet (Rio de Janeiro, 3 de outubro de 1847 — Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 1927)

Ler do mesmo autor: Triste Filosofia

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2014-10-02

¿Para qué? - Xosé María Díaz Castro


EU ámote. E noustante,
non sei por que entras ti na
miña vida,
ti tan branca e tan fría.
¿Eu sempre a patinar sobre o
teu xelo?
¿Sempre a xogar contigo? Pro
¿pra qué?

Extraído de Cartafol de Traducións e Outros Poemas. Homenaxe do Consello da Cultura Galega, XXIV

Xosé María Díaz Castro, nascido em Guitiriz (Galiza) em 19 de fevereiro de 1914 e falecido em Lugo em 2 de outubro de 1990

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2014-10-01

Perdi-te numa manhã clara de junho... - José Rui Teixeira (na passagem do 40º aniversário)

perdi-te numa manhã clara de junho em
que imaginei que estarias comigo
corrias num horizonte azul
que só mais tarde descobri ser teu
e dei comigo enraizado na terra
de um sonho em que julguei que fosses minha


in Quando o Verão Acabar, Vila Nova de Famalicão, Quasi edições, 2002

Cada instante é um lugar perdido em que te entregas
Trago dentro de mim um mar imenso

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