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2017-04-29

Um Amor - Nuno Júdice

Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão,
puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua,
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.

in "A Partilha dos Mitos"

Nuno Manuel Gonçalves Júdice Glória nasceu em Mexilhoeira Grande, Portimão a 29 de abril de 1949

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Hoje é o dia de todos os deuses - Helga Moreira

Hoje é o dia de todos os deuses.
A maresia subirá breve
ao terceiro andar.

Virá como quem pede mais um pouco
desta tarde.
Deixo-me ficar enquanto vou

indecisa como quem não sabe.
Se escolho rainha se rei
só eu decido, só eu sei.

Hoje é o dia de todos os deuses.
A qualquer deles vou pedir
não só a Zeus, não só a Argos,

não só a Afrodite,
a que o amor consente de todos os modos,
à brisa pedirei

que me deixe partir
a voz em arco
e tudo fruir de outro modo

Ainda que hoje não seja o dia
de todos os deuses
direi
não tenho género ou identificação bastante

que se assemelhe
ao estar
preto no preto branco no branco

in 'Agora que Falamos de Morrer'


Helga Moreira (Quadrazais, Guarda, 29 de abril de 1950)

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2017-04-26

Tudo, menos tu, Cronos, morrer pode - Alexei Bueno

Tudo, menos tu, Cronos, morrer pode.
Mesmo os deuses à morte estão sujeitos.
Mesmo o Fado, que até a eles subjuga,
Não se interpõe a ti.

Só tu reinas, e findos ainda um dia
Os deuses, e os mortais, e os mundos todos,
E o olímpico monte em pó tornado,
Tu, eterno, seguirias.

Pois, mais que os nossos olhos que te vissem,
Num vácuo até de ti, sem quem a olhasse,
Tua gota a cair continuaria,
Sem gota, ou queda, ou nada.

Poemas Gregos (1984) - in Poesia reunida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira (2003)

Alexei Bueno (n. Rio de Janeiro, 26 de abril de 1963)

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2017-04-24

Zelos - Zeferino Brazil

Lírios rosa, Eliomar Ribeiro


De leve, beijo as suas mãos pequenas,
Alvas, de neve, e, logo, um doce, um breve,
Fino rubor lhe tinge a face, apenas
De leve beijo as suas mãos de neve.

Ela vive entre lírios e açucenas,
E o vento a beija, e, corno o vento, deve
Ser o meu beijo em suas mãos serenas,
— Tão leve o beijo, como o vento é leve.. .

Que essa divina flor, que é tão suave,
Ama o que é leve, como um leve adejo
De vento ou como um garganteio de ave,

E já me basta, para meu tormento,
Saber que o vento a beija, e que o meu beijo
Nunca será tão leve como o vento...


Zeferino Antônio de Souza Brazil, nasceu em 24 de abril de 1870, em Porto Grande, Taquari, Rio Grande do Sul e faleceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul a 3 de outubro de 1942).

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2017-04-21

Esperança e Saudade - Augusto de Lima


Sorte falaz a que nos guia a vida!
Por que há de ser tão rápida a ventura,
Que só a amamos quando é já perdida
Ou depende de uma época futura?

O que ao presente, mal nos afigura,
Era esperança, há pouco apetecida,
E uma vez no passado, eis que perdura
Como saudade que não mais se olvida.

Há sempre queixas do atual momento,
E entre as datas se eleva o pensamento,
Como uma ponte de sombrio aspeto.

Em busca da ventura que ignoramos,
Temos saudade ao bem que não gozamos,
Ilusão de ilusões, sonho completo.

Antônio Augusto de Lima (n. Nova Lima, então Congonhas de Sabará, Minas Gerais, Brasil a 5 de abril de 1859; m. Rio de Janeiro, 22 de abril de 1934)

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Amavisse - Hilda Hilst

Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.

in Carlos Figueiredo - 100 poemas essenciais da língua portuguesa. Editora Leitura.

Hilda Hilst (Jaú, São Paulo, Brasil, 21 de abril de 1930 — Campinas, São Paulo, Brasil, 4 de fevereiro de 2004)

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2017-04-20

Quem me quiser - Rosa Lobato de Faria

Quem me quiser há-de saber as conchas
a cantiga dos búzios e do mar.
Quem me quiser há-de saber as ondas
e a verde tentação de naufragar.

Quem me quiser há-de saber as fontes,
a laranjeira em flor, a cor do feno,
à saudade lilás que há nos poentes,
o cheiro de maçãs que há no inverno.

Quem me quiser há-de saber a chuva
que põe colares de pérolas nos ombros
há-de saber os beijos e as uvas
há-de saber as asas e os pombos.

Quem me quiser há-de saber os medos
que passam nos abismos infinitos
a nudez clamorosa dos meus dedos
o salmo penitente dos meus gritos.

Quem me quiser há-de saber a espuma
em que sou turbilhão, subitamente
- Ou então não saber coisa nenhuma
e embalar-me ao peito, simplesmente.

Rosa Maria de Bettencourt Rodrigues Lobato de Faria (nasceu em Lisboa a 20 de abril de 1932; m. 2 de fevereiro de 2010)

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2017-04-19

O Último Poema - Manuel Bandeira


Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (n. Recife, 19 de abril 1886 — m. Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1968).

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2017-04-18

Mors-Amor - Antero de Quental

picture from here


Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,

Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável, mas plácido, no porte,
Vestido de armadura reluzente,

Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: "Eu sou a Morte!"
Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!"

Antero Tarquínio de Quental nasceu em Ponta Delgada (Açores) a 18 de abril de 1842 e suicidou-se na mesma cidade da ilha de São Miguel a 11 de setembro de 1891. Estanciou em Coimbra de 1858 a 1864 e aí obteve a formatura em Direito. Romanticamente anti-romântico, deu origem, em 1865, à famigerada Questão Coimbrã (polémica contra o Ultra-Romantismo) e promoveu, em 1871, as Conferências do Casino Lisbonense (proibidas pelo governo de então). Viajou até Paris em 1866 e até à América em 1869, além de se deslocar por várias vezes entre o seu arquipélago natal e o continente. Residiu em Vila do Conde de 1881 a 1890. Poeta e filósofo, foi o grão-mestre da chamada Geração de '70. Física (gastroplegia), psíquica (nevrose maníaco-depressiva) e metafisicamente (pessimismo) doente, o «génio que era um santo» teve o fim trágico que era de prever. A sua principal obra poética são os «Sonetos» (1886).

Nota biobliográfica extraída de «A Circulatura do Quadrado - Alguns dos Mais Belos Sonetos de Poetas cuja Mátria é a Língua Portuguesa. Introdução, coordenação e notas de António Ruivo Mouzinho. Edições Unicepe - Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto, 2004.

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2017-04-12

São Martinho de Anta, 12 de Abril de 1965: Diário - Miguel Torga

Capela de Nossa Senhora da Azinheira (Sabrosa) 
imagem daqui


São Martinho de Anta, 12 de Abril de 1965 - Chego - verdadeiramente nem chegar é preciso: basta partir nesta direcção - e pareço o cão de Pavlov: todo eu segrego baba emotiva. O simples nome da povoação, lido nos marcos da estrada, desencadeia dentro de mim uma girândola de reflexos. Vejo a senhora da Azinheira a branquejar no alto da serra, oiço o sino a badalar, sabe-me a boca a tabafeira, cheira-me a rosmaninho.
    Já dentro da terra, então, é como se uma resposta de sensações rompesse de repente o dique do esquecimento e alagasse a planície da lembrança. Tropeço em cada pedra, bebo em cada fonte, vou de anjo em cada procissão.
    Enquanto ando lá por baixo, esqueço-me de que tenho cá dentro um tal rosário de reacções à espera de estímulo. Prova evidente de que os ramos e as folhas estão longe das raízes...
    Tudo o que sou claramente não é daqui. Mas tudo o que sou obscuramente pertence a este chão. A minha vida é uma corda de viola esticada entre dois mundos. No outro, oiço-lhe a música; neste, sinto-lhe as vibrações. 

in Diário - Vols. IX a XII - Miguel Torga

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2017-04-11

Os Rouxinóis - António Fogaça


Rouxinol


No meu jardim, num cedro em que a frescura
e a flor da novidade vêm brotando,
poisa, por vezes, um ditoso bando
de alegres rouxinóis, entre a verdura...

Quando ali vou, tristísssimo, à procura
de sossego e de luz, de quando em quando,
sinto-os vir e poisar, ouço-os cantando
no doce idílio duma paz obscura.

E, desditoso, eu lembro com saudade,
último brilho do meu peito ardente,
que assim também, num íntimo vigor,

sobre o flóreo jardim da mocidade,
cantaram na minh'a alma alegremente,
como no cedro, ou rouxinóis do amor...

in A Circulatura do Quadrado: Alguns dos Mais Belos Sonetos de Poetas cuja Mátria é a Língua Portuguesa, 2004, Edições Unicepe

António Maria Gomes Machado Fogaça (n. Barcelos, 11 de abril de 1863, m. Coimbra, a 27 de novembro de 1888)

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2017-04-10

O Menino Grande - Sebastião da Gama


Também eu, também eu,
joguei às escondidas, fiz baloiços,
tive bolas, berlindes, papagaios,
automóveis de corda, cavalinhos...

Depois cresci,
tornei-me do tamanho que hoje tenho;
os brinquedos perdi-os, os meus bibes
deixaram de servir-me.
Mas nem tudo se foi:
ficou-me,
dos tempos de menino
esta alegria ingénua
perante as coisas novas
e esta vontade de brincar.

Vida!,
não me venhas roubar o meu tesoiro:
não te importes que eu ria,
que eu salte como dantes.
E se eu riscar os muros
ou quebrar algum vidro
ralha, ralha comigo, mas de manso...

(Eu tinha um bibe azul...
Tinha berlindes,
tinha bolas, cavalos, papagaios...
A minha Mãe ralhava assim como quem beija...
E quantas vezes eu, só pra ouvi-la
ralhar, parti os vidros da janela
e desenhei bonecos na parede...)

Vida!, ralha também,
ralha, se eu te fizer maldades, mas de manso,
como se fosse ainda a minha Mãe...

Sebastião Artur Cardoso da da Gama (n. em Vila Nogueira de Azeitão, Setúbal a 10 de abril de 1924; m. Lisboa, 7 de fevereiro de 1952)

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2017-04-07

Aconteceu-me - José de Almada Negreiros

Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado
E eu tenho visto olhos!
Mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz tornava-me quase real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que o não fossem, que importa?
Vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.


in Poemas Portugueses Antologia da Poesia portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI; selecção, organização, introdução e notas de Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Porto Editora

José Sobral de Almada Negreiros (n. em S. Tomé e Príncipe a 7 de abril 1893; m. 15 de junho de 1970 em Lisboa)

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2017-04-06

Ser e Não Ser - José Bonifácio

Se te procuro, fujo de avistar-te
e, se te quero, evito mais querer-te;
desejo quase... quase aborrecer-te,
e, se te fujo, estás em toda parte.

Distante, corro logo a procurar-te
e perco a voz e fico mudo ao ver-te;
se me lembro de ti, tento esquecer-te
e se te esqueço, cuido mais amar-te.

O pensamento assim partido ao meio
e o coração assim também partido,
Chamo-te e fujo, quero-te e receio.

Morto por ti, eu vivo dividido;
entre o meu e o teu ser sinto-me alheio
e, sem saber de mim, vivo perdido!


José Bonifácio Ribeiro de Andrada Machado e Silva nasceu em Santos (SP) a 13 de junho de 1763 e faleceu em Niterói (RJ) a 6 de Abril de 1838. Bacharelou-se em Direito Civil e Filosofia Natural pela universidade de Coimbra e doutorou-se em 20 de junho de 1801. Entretanto, recebera uma bolsa de estudo (1790), que lhe permitiu viajar, durante uma década, por França, Alemanha, Itália, Inglaterra e Escandinávia, onde frequentou universidades, museus, bibliotecas, instituições científicas, laboratórios, minas e instalações fabris de fundição de metais, e contactou os maiores sábios, desde Lavoisier a Alexandre von Humboldt, tornando-se assim um naturalista, mineralogista e geólogo de reputação internacional. Dominava, aliás, meia-dúzia de línguas. Leccionou Geognosia e Metalurgia na universidade onde se formara, chegou a tenente-coronel do batalhão académico durante as invasões francesas, foi intendente da polícia no Porto e secretário da Academia Real das Ciências de Lisboa (1812/1819). Nesta última data, regressou ao Brasil e, em 1822, era Ministro dos Negócios Estrangeiros, mas conheceu o exílio em França, de 1823 a 1829. Foi então que aproveitou para publicar os seus poemas, sob o pseudónimo de Américo Elísio, «Poesias Avulsas» (Bordéus 1825), revelando-se um autor de transição entre o Arcadismo e o Romantismo. Devido à sua acção no domínio político, é considerado o Patriarca da Independência Brasileira.

Soneto e nota biobibliográfica extraídos de «A Circulatura do Quadrado - Alguns dos Mais Belos Sonetos de Poetas cuja Mátria é a Língua Portuguesa. Introdução, coordenação e notas de António Ruivo Mouzinho. Edições Unicepe - Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto, 2004.

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2017-04-05

Sonâmbula - Augusto de Lima



A moça que mora em frente
é uma moça indiferente,
não sei que mistério tem:

não chega nunca à janela,
ninguém olha para ela,
nem ela para ninguém.

Mas conta-se que a horas mortas,
fechadas todas as portas
da vizinhança, ela sai,

e ao cemitério chorosa
vai desfolhar um rosa
por sobre a campa do pai.

Antônio Augusto de Lima (n. Nova Lima, então Congonhas de Sabará, a 5 de abril de 1859; m. Rio de Janeiro, 22 de abril de 1934)

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2017-04-03

Sonho - Agostinho da Silva


Teria passado a vida
atormentado e sozinho
se os sonhos me não viessem
mostrar qual é o caminho

umas vezes são de noite
outras em pleno de sol
com relâmpagos saltados
ou vagar de caracol

quem os manda não sei eu
se o nada que é tudo à vida
ou se eu os finjo a mim mesmo
para ser sem que decida.

George Agostinho Baptista da Silva nasceu no Porto em 13 de fevereiro de 1906 e morreu em Lisboa, no Hospital de S. Francisco de Xavier, num domingo de Páscoa, a 3 de abril de 1994.

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