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2016-06-30

Tu Baby, ao leres um dia - Reinaldo Ferreira



Tu, Baby, ao leres um dia
Meus versos - e hás-de lê-los
Se durar esta poesia
Mais que o sol nos teus cabelos -

Mal saberás quanto neste
Morto momento que passa,
Porque sorrias, me encheste,
Sorrindo, da tua graça.

Pudesses pura ficar!
Nem que, criança também,
Houvesses sempre que andar
Ao colo de tua mãe!

Reinaldo Edgar de Azevedo e Silva Ferreira (n. em Barcelona, a 20 de março de 1922; m. em Moçambique a 30 de junho de 1959).

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2016-06-29

A PONTO DE CAIR - Blas de Otero


Nada é tão necessário ao homem como um pouco de mar
e uma orla de esperança para além da morte,
é tudo o que preciso e talvez um par de asas
abertas no capítulo primeiro da carne

Não sei como dizê-lo, com que cara
trocar-me por um anjo dos anteriores à terra
quebraram-se-me os braços de tanto lhes dar corda,
dizei-me o que farei agora, que horas são, se ainda há tempo,
é preciso que suba a mudar-me, que me arrependa sem perder uma lágrima,
uma apenas, uma lágrima orfã,
por favor, dizei-me qual a hora das lágrimas,
sobretudo a das lágrimas sem nada mais que pranto
e pranto ainda e para sempre.

Nada é tão necessário ao homem como um par de lágrimas
prontas a cair no desespero.

In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
selecção e traduçãode José Bento; Assírio & Alvim.

Blas de Otero Muñoz (n. Bilbao, 15 de março de 1916 - m. Majadahonda, Madrid, 29 de junho de 1979)

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2016-06-28

ILUSÕES DA VIDA - Francisco Otaviano


Quem passou pela vida em branca nuvem,
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu;
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida, não viveu.

Francisco Otaviano de Almeida Rosa (n. no Rio de Janeiro, RJ, em 26 de junho de 1825 e faleceu na mesma cidade em 28 de junho de 1889)

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2016-06-27

A Inglaterra e o Brexit

Não foi o Reino Unido que quis o Brexit? A Inglaterra (a Irlanda e a Irlanda do Norte também) já saiu da Europa futebolistica... ou seja do Euro 2016. Resistirá o País de Gales? No futebol até pouco me importa. Gostava de reencontrar a Islândia na final! Quanto à União Europeia só compreendo tal decisão por demagogia eleitoral... ou pouca percepção das consequências. Aí Portugal também vai sofrer. O mundo nos próximos tempos já não será mais o que era...

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Olhar para trás - João Guimarães Rosa

Olhar para trás após uma longa caminhada pode fazer perder a noção da distância que percorremos, mas se nos detivermos em nossa imagem, quando a iniciamos e ao término, certamente nos lembraremos o quanto nos custou chegar até o ponto final, e hoje temos a impressão de que tudo começou ontem. Não somos os mesmos, mas sabemos mais uns dos outros. E é por esse motivo que dizer adeus se torna complicado! Digamos então que nada se perderá. Pelo menos dentro da gente...

João Guimarães Rosa (Cordisburgo, Minas Gerais, 27 de junho de 1908 — Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1967).

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2016-06-26

Estrela do Mar (relembrando Paulo Soledade) na voz de Dalva de Oliveira

Um pequenino grão de areia
Que era um pobre sonhador
Olhando o céu viu uma estrela
Imaginou coisas de amor

Passaram anos, muitos anos
Ela no céu, ele no mar
Dizem que nunca o pobrezinho
Pôde com ela se encontrar

Se houve ou se não houve
Alguma coisa entre eles dois
Ninguém soube até hoje explicar

O que há de verdade
É que depois, muito depois
Apareceu a estrela-do-mar

Marino Pinto e Paulo Soledade
in Literatura em Minha Casa, Volume 1 - POESIA
Gato na Tuba e Outros Poemas
Martins Fontes, São Paulo 2002

Paulo Soledade (Paulo Gurgel Valente do Amaral) nasceu em Paranaguá (PR), em 26 de junho de 1919 e faleceu em 27 de outubro de 1999

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2016-06-23

O que se escuta numa velha caixa de música - Martins Fontes


Nunca roubei um beijo. O beijo dá-se,
ou permuta-se, mas naturalmente.
E seu sabor seria diferente
se, em vez de ser trocado, se furtasse.

Todo beijo de amor, longo ou fugace,
deve ser um prazer que ambos contente.
Quando, encantado, o coração consente,
beija-se a boca, não se beija a face.

Não toquemos na flor maravilhosa,
seja qual for a sedução do ensejo,
vendo-a ofertar-se, fácil e formosa.

Como os árabes, loucos de desejo,
amemos a roseira, olhando a rosa,
roubemos a mulher e não o beijo.

(A Flauta Encantada)

José Martins Fontes nasceu em Santos, São Paulo, Brasil a 23 de junho de 1884 e morreu na mesma localidade a 25 de junho de 1937

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2016-06-22

Neste Desterro - Paulino Oliveira

Paulino de Oliveira retratado por Tomás Leal da Câmara

«Quare de vulva eduxisti me?»


Como Job, eu misérrimo, pergunto:
"Para que fui criado?" e o céu e o vento
Que escutam o meu grito
Não me respondem nada sobre o assunto

Se não vimos ao mundo por querer
Porque é que antes de sermos nos culpados
Arrastamos os ferros de forçados
E nos esmaga a mó do atroz Sofrer?

Quando a Dor me tritura, aguda e forte,
Eu penso na justiça desta Sorte
E na razão desse bom Deus amado...

E medito: se outrora, em outro Mundo
Eu habitei o corpo vagabundo
De algum enorme triste celerado.

in Poemas de Paulino de Oliveira, Edições «Descobrimento» 1932

Francisco Paulino Gomes de Oliveira, nasceu em Setúbal a 22 de junho de 1864, faleceu em 1914 em São Paulo, Brasil

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2016-06-21

A UMA OPERÁRIA JOVEM - Domingos Carvalho da Silva



Como a árvore que pode
dar apenas seu fruto,
floresces. E sobre a terra
amplias o horizonte de tua sombra.

Na fábrica as engrenagens
multiplicam o movimento
e as polias giram como vento
em remoinho.

Na fábrica os fatos
repetem-se como as estações,
as estrelas iguais de cada noite,
o pão fresco de todas as manhãs.

Teu sangue circula como a abelha
na órbita da rosa
e, como a água dos estanques, há de voltar
à fonte.

Na fábrica
os espelhos sonham com teu riso.

(De À MARGEM DO TEMPO - 1963)

Domingos Carvalho da Silva (nasceu em Leirós, Pedroso, Vila Nova de Gaia a 21 de junho de 1915, faleceu em São Paulo, Brasil a 26 de abril de 2003)

Ler do mesmo autor:
Na Despedida de Ignez
Teoria do Poema
A Fénix Refractária

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2016-06-20

MAR MEU - Xanana Gusmão (na passagem do 70º aniversário)

Pudesse eu
prender entre os dedos
os suspiros do mar
e distribui-los
às crianças

Pudesse eu
acariciar com os dedos
a suave brisa das ondas
e sentir cabelos
de crianças

Pudesse eu
sentir nos dedos
o beijo das espumas
e ouvir os risos
das crianças

Pudesse eu
tocar com os dedos
o sono do mar
e embalar os olhos
de crianças

Pudesse eu
ter entre os dedos
belas conchinhas
e fazer colares
p’ra as crianças

Oh, mar meu!
Porque esperas?
Porque não dás?
Porque não sentes?
Porque não ouves?

Imerso nos meus pensamentos
fui subitamente estremecido
Do mar, do meu mar,
vinham tremores
saídos de barcos

Olhei para o céu
que explodia
os suspiros do mar
eram choros de agonia
a suave brisa

o cheiro do pó e do sangue
o beijo das espumas
o estertor da morte
o sono do mar
as pedras da sepultura

e as belas conchinhas
desenhavam
o destino da Pátria!

Xanana Gusmão nasceu a 20 de junho de 1946 em Manatuto, Timor

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2016-06-18

Xácara das Mulheres Amadas - Mário Saa


Quem muitas mulheres tiver,
em vez de uma amada esposa,
mais se afirma e se repousa
pera amar sua mulher;
Quem isto não entender...
em cousas d'amor não ousa,
em cousas d'amor não quer!

Quantas mais, mais se descansa,
mais a gente serve a todas;
quantas mais forem as bodas,
quantos mais os pares da dança,
menos a dança nos cansa
O gosto d'andar nas rodas.

Que quantas mais, mais detido
a cada uma per si;
nem cansa tanto o que vi,
nem fica o gosto partido;
ao contrário, é acrescido
a cada uma per si!

No paladar de mudar
mais se sente o gosto agudo:
que amar nada ou amar tudo
é estar pronto a muito amar;
o enjoo vem de não estar
a par do nada e do tudo.

Mais facilmente se chega
pera muitas que pera uma;
e a razão é porque, em suma,
se esta razão me não cega,
quem quer que muitas adrega
é como tendo...nenhuma!

Com muitas, descanso vem,
faz o desejo acrescido:
que é o mais apetecido
aquilo que se não tem;
e o apetite é o bem;
e em saciá-lo é perdido.
Também a mulher que tem
seu marido repartido
é mais gostosa do bem
que advém de seu marido!

Tão gostosa e recolhida,
tão pronta e tão conformada,
quanto o gosto é não ter nada;
porque o gosto é ser servida
e não o estar contentada.
O gosto é coisa corrente,
e quem o tem já não sente
o gosto dessa corrida,
que tê-lo, é cousa ... jazente...
que tê-lo , é cousa... perdida!

Ora, pois, nesta jornada
não vi nada mais de amar
que ter muito por chegar
e cousa alguma chegada;
não vi nada mais de ter...
que ter muito que perder...
e cousa alguma ganhada!

(Cancioneiro do I Salão dos Independentes, 1930)

Extraído de Poemas Portugueses, Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, Porto Editora

Mário Paes da Cunha e Sá (Caldas da Rainha, 18 de junho de 1893 — Ervedal, 23 de janeiro de 1971)

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2016-06-17

Agora vai ser assim: nunca mais te verei - António Franco Alexandre

Agora vai ser assim: nunca mais te verei.
Este facto simples, que todos me dizem ser simples, trivial,
e humano, como um destino orgânico e sensato,
fica em mim como um muro imóvel, um aspecto esquecido
e altivo de todas as coisas, de todas as palavras.
Sempre nos separaram as circunstâncias, e a essência
mesma dos dias, quando entre a relva e a copa das árvores
me esquecia de pensar, e o ar passava
por mim antes de erguer os caules verdes e alimentar
a vida sem imagens da paisagem. Marcávamos férias
em meses diferentes. O fim do ano, a páscoa, calhavam sempre
em outros dias. Tesouras surdas
rompiam o cordão dos telefones, e por engano
urgentes cartas atravessavam o planeta, apareciam
anos depois no arquivo municipal. E mais: a minha idade,
a tua, não poderiam nunca encontrar se no mundo.

António Franco Alexandre nasceu em Viseu em 17 de junho de 1944

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2016-06-16

Penélope - David Mourão-Ferreira



Mais do que sonho: comoção!
sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.

E recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.

Mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço os melhores dias
do nosso amor.

David de Jesus Mourão-Ferreira (Lisboa, 24 de fevereiro 1927 – Lisboa, 16 de junho 1996)

Ler do mesmo autor:
Penumbra
Praia do Esquecimento
Tentei Fugir da Mancha Mais Escura
Presídio
Casa
E Por Vezes
Ilha
Nocturno
Paraíso
Ternura
Labirinto
Primavera
Equinócio
Soneto do Cativo

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2016-06-15

Momento de poesia - Almada Negreiros

Se escrevo ou leio ou desenho ou pinto,
logo me sinto tão atrasado
no que devo à eternidade,
que começo a empurrar pra diante o tempo
e empurro-o, empurro-o à bruta
como empurra um atrasado,
até que cansado me julgo satisfeito.
(Tão gémeos são
a fadiga e a satisfação!)
Em troca, se vou por aí
sou tão inteligente a ver tudo o que não é comigo,
compreendo tão bem o que não me diz respeito,
sinto-me tão chefe do que está fora de mim,
dou conselhos tão bíblicos aos aflitos de uma aflição que não é minha,
que, sinceramente, não sei qual é melhor:
se estar sózinho em casa a dar manivela à vida,
se ir por aí e ser Rei de tudo o que não é meu.

Lisboa, Novembro 1939

José Sobral de Almada Negreiros (Trindade, S. Tomé e Príncipe, 7 de abril de 1893 – Lisboa, 15 de junho de 1970)

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2016-06-14

SEM MEMÓRIA DE MORTE - Salvatore Quasimodo



A primavera desperta árvores e rios;
a voz profunda não ouço,
em ti perdido, amada.

Sem memória de morte,
unidos na carne,
as trombetas do último dia
nos despertam adolescentes.

Ninguém nos ouve:
o leve respirar do sangue!

Feita ramo
floresce em teu flanco
a minha mão.

De plantas pedras águas
nascem os animais
ao sopro do ar.

Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti


Salvatore Quasimodo (nasceu em 20 de agosto de 1901 em Modica, Sicília; m. em Nápoles a 14 de junho de 1968)

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2016-06-13

Não sei quantas almas tenho - Fernando Pessoa



Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.

Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de junho de 1888 — Lisboa, 30 de novembro de 1935)

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2016-06-12

O amoroso - José Viale Moutinho


o amor compreende
os fumos

os rumores dos lençóis

a boca
devoradora

esses cigarros


in «366 Poemas que Falam de Amor», antologia organizada por Vasco Graça Moura, Quetzal Editores, Lisboa


José Viale Moutinho nasceu no Funchal no dia 12 de junho de 1945

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Choro - Ermelinda Xavier

Ai barco que me levasse
a um rio que me engolisse
donde eu não mais regressasse
p’ra que mais ninguém me visse!

Ai barco que me levasse
sem vela ou remos, nem leme
p’ra dentro de todo o olvido
onde não se ama nem teme.

Ai barco que me levasse
aos tesouros conquistados
por entre esquinas de perigos
dos mil caminhos trilhados.

Ai — onde? — que me levasse
bem dentro de um vendaval…
Barco berço, barco esquife
onde tudo fosse igual.

Ai barco que me levasse
toda estendida em seu fundo!
Nesga de céu a bastar-me
toda a saudade do mundo!

Ermelinda Pereira Xavier nasceu no Lobito, Angola em 12 de junho de 1931.

A Unicepe neste domingo pelas 16h faz o lançamento do livro “BARRO E LUZ”, poesia completa, inédita, de Ermelinda Xavier, no dia do seu 85º aniversário. Capa e arranjo gráfico de Armando Alves.

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2016-06-09

Se Eu Agora Inventasse o Mundo - José Gomes Ferreira



Se eu agora inventasse o mundo
criaria a luz da manhã já explicada
sem o luto que pesa
na sombra dos homens
- conspiração da noite
com as pedras.

Luz que o cheiro das ervas da madrugada
aproxima os mortos do silêncio
com esqueletos de asas
- conluio com o sol
para estarem mais presentes
no tacto da pele da manhã,
mil mãos a afogarem a paisagem,
bafo de flores donde cai
o enlace das sementes...

Abro a janela
O mundo cheira tão bem a trevos ausentes!

Bons dias, mortos. Bons dias, Pai.

in Elegia Fria com Lírios Inventados

José Gomes Ferreira(n. Porto, 9 de junho de 1900; m. Lisboa, 8 de fevereiro de 1985)

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Caminho sem pés e sem sonhos - Daniel Faria


Caminho sem pés e sem sonhos
só com a respiração e a cadência
da muda passagem dos sopros
caminho como um remo que se afunda.

os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes
para que a elevação e a profundidade se conjuguem.
avanço sem jugo e ando longe

de caminhar sobre as águas do céu.

Daniel Augusto da Cunha Faria, nasceu em Baltar a 10 de abril de 1971; faleceu no Porto a 9 de junho de 1999

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2016-06-08

Os Livros - José Jorge Letria

Apetece chamar-lhes irmãos,
tê-los ao colo,
afagá-los com as mãos,
abri-los de par em par,
ver o Pinóquio a rir
e o D. Quixote a sonhar,
e a Alice do outro lado
do espelho a inventar
um mundo de assombros
que dá gosto visitar.
Apetece chamar-lhes irmãos
e deixar brilhar os olhos
nas páginas das suas mãos.

Pela casa fora
1997

José Jorge Alves Letria nasceu em Cascais a 8 de junho de 1951

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2016-06-07

Poema natural - Adalgisa Nery



Abro os olhos, não vi nada
Fecho os olhos, já vi tudo.
O meu mundo é muito grande
E tudo que penso acontece.
Aquela nuvem lá em cima?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Ontem com aquele calor
Eu subi, me condensei
E, se o calor aumentar, choverá e cairei.
Abro os olhos, vejo um mar,
Fecho os olhos e já sei.
Aquela alga boiando, à procura de uma pedra?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei.
Quando a maré baixar, na areia secarei,
Mais tarde em pó tomarei.
Abro os olhos novamente
E vejo a grande montanha,
Fecho os olhos e comento:
Aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo,
Recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento?
Eu estou lá,
Ela sou eu.

Adalgisa Maria Feliciana Noel Cancela Ferreira (Rio de Janeiro, 29 de outubro de 1905 — Rio de Janeiro, 7 de junho de 1980)

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2016-06-06

Os Meus Amigos o Palhaço e o Coveiro - Gomes Leal

Aqueles que ali vão, em terno abraço
como modelos de união fraterna,
cantando, e aos empurrões, para a taberna,
- um deles é coveiro, o outro palhaço.

Com eles, horas mui patuscas passo,
estudando cada um. - Minha lanterna
interroga cada alma, qual, na interna
mina, o mineiro com soturno passo.

Quando eu escuto o lúgubre coveiro,
sinto o spleen do Hamleto e aspiro o cheiro
da erva calcada, os goivos, os chorões.

Mas se guincha o palhaço, sinto as solas
dos meus pés a pedirem cabriolas;
- à luz do gás e ao «hurrah» das multidões.

(Mefistófoles em Lisboa, 1907)

in Poemas Portugueses Antologia da Poesia portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI; selecção, organização, introdução e notas de Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Porto Editora

António Gomes Leal (n. em Lisboa a 6 de junho de 1848; m. 29 de janeiro de 1921)

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2016-06-05

Soneto [Sou Pastor; não te nego; os meus montados] - Cláudio Manuel da Costa

Sou Pastor; não te nego; os meus montados
São esses, que aí vês; vivo contente
Ao trazer entre a relva florescente
A doce companhia dos meus gados;

Ali me ouvem os troncos namorados,
Em que se transformou a antiga gente;
Qualquer deles o seu estrago sente;
Como eu sinto também os meus cuidados.

Vós, ó troncos (lhes digo), que algum dia
Firmes vos contemplastes, e seguros
Nos braços de uma bela companhia;

Consolai-vos comigo, ó troncos duros;
Que eu alegre algum tempo assim me via;
E hoje os tratos de Amor choro perjuros.

Claúdio Manuel da Costa (n. Vargem do Itacolomi,atual Mariana, MG a 5 junho 1729; m. em Vila Rica, actual Ouro Preto, MG, a 4 julho 1789)

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2016-06-04

Da Vida... não Fales Nela - Jorge de Sena

Da vida... não fales nela,
quando o ritmo pressentes.
Não fales nela que a mentes.

Se os teus olhos se demoram
em coisas que nada são,
se os pensamentos se enfloram
em torno delas e não
em torno de não saber
da vida... Não fales nela.

Quanto saibas de viver
nesse olhar se te congela.
E só a dança é que dança,
quando o ritmo pressentes.

Se, firme, o ritmo avança,
é dócil a vida, e mansa...
Não fales nela, que a mentes.

in 'Pedra Filosofal'

Jorge Cândido de Sena (n. em Lisboa a 2 de novembro de 1919; m. em Santa Bárbara, Califórnia a 4 de junho de 1978)

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2016-06-03

FALSA PARTIDA - João Luís Barreto Guimarães



Ainda estranho o lugar quando acordamos
no revés de já ser outro
o dia
porque espelhas o tempo à janela é
à face de teu rosto que decido
o que vestir.
O vento que molda a praia
é de todas as bandeiras:
há um silêncio talhado à substância do quarto
(o chão de madeira matiza o
frio que força uma fresta)
podia apostar comigo: hoje
de madrugada
um cão ladrou na voz do galo.
O meu sobrenome segue-te
pela véspera da casa
(fim de emissão no ecrã
cálices
meio hasteados) a
chuva desistiu de apagar o nosso amor embaciado
pelo lado negativo.
Tornas à cama e abres
aquele romance de sempre
(o descanso existe
noutro cansaço).

in Poesia Reunida, Quetzal, 2011

João Luís Barreto Guimarães nasceu no Porto a 3 de junho de 1967

Poema
apetece por vezes com os dias

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2016-06-02

Tu queres sono: despe-te dos ruídos - Ana Cristina Cesar

Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.


Ana Cristina Cesar, ou simplesmente Ana C., nasceu em 2 de junho de 1952, no Rio de Janeiro; suicidou-se no dia 29 de outubro de 1983).

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2016-06-01

A Preguiça - Andrei Voznesensky

Abençoada preguiça, que delícia de armadilha,
quando é tanta que nem me levanto, nem durmo de novo.
Preguiça de atender o telefone. Você o alcança, passando uma perna por cima de meu corpo,
ouço a sua voz pertinho de mim, soando como um sino,
e meu estômago é comprimido pelo seu ombro.
"Entradas?" - diz você -"Que vão para o diabo. Ai, que preguiça!"
Dentro de nós a lentidão dos dias mergulha na sombra,
A preguiça é o motor do progresso. A chave para Diógenes é a preguiça.
Só o que sei é que você é encantadora -
o resto é lixo.
Este mundo é feio? Dê um jeito de ir levando.
Preguiça de ir pegar o telegrama - passe-o por baixo da porta.
Preguiça de ir jantar, preguiça de apagar a luz,
preguiça até de terminar a frase:
hoje é segun...
Nesta estrada o mês de junho,
bêbado, derramou-se:
sátiro com pés de bode
descalços - e usando shorts.

Tradução de Lauro Machado Coelho
Exttraído de "Poesia Soviética"; algol editora

Andrei Andreyevich Voznesensky, em russo Андре́й Андре́евич Вознесе́нский (nasceu em Moscovo na então União Soviética a 12 de maio de 1933 e faleceu em Moscovo, Rússia, a 1 de junho de 2010)



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