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2016-02-28

Soneto XX - Camillo de Jesus Lima

À memória de Laudionor Brasil

Nas horas de desânimo e desgosto,
Sinto essa mão macia, carinhosa,
Maternal, que me afoga as mãos e o rosto,
Perfumada de sândalo e de rosa.

Se me ponha a cismar, o sol já posto,
Exausto dessa via dolorosa,
À cabeça cansada dá-me encosto
E o suor me enxuga a doce mão piedosa.

Tanto falei das mãos nos meus poemas!
Agora, esta me vem mostrar estrelas,
- No manto azul do céu doiradas gemas, -

Num gesto de carinho e de piedade,
Pura entre as puras, bela entre as mais belas,
A MÃO NEVADA E FRIA DA SAUDADE...

Camillo de Jesus Lima (Caetité, Bahia, 8 de setembro de 1912 — Itapetinga, Bahia, 28 de fevereiro de 1975)

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2016-02-26

«Vae ser pedida. Casa qualquer dia» - Augusto Gil

Noiva imagem daqui

Tive noticias hoje a teu respeito:
«Vae ser pedida. Casa qualquer dia».
E o coração tranquillo no meu peito
- Continuou a bater como batia...

Surpreso duma tal serenidade,
Todo eu, intimamente, me sondava:
Pois nem ciumes? Nem sequer saudade?!
- E nem ciumes, nem saudade achava...

Saudades, não; que o teu amor antigo
Guardam-no as cinzas (neste coração)
Como em Pompeia aquelles grãos de trigo
Que após centenas d'annos deram pão...

Saudades! Mas de quê?! Pois não sei eu
A lei antiga como o próprio mundo
De que o prazer mal chega, já morreu,
E só a dôr nas almas cava fundo?

Causei-te longas horas d'amargura,
Não consegues voltar a ser feliz;
A chaga que te abri não terá cura,
E se curar--lá fica a cicatriz.

Á luz dum juramento que trahiste
Tu has de vêr-me toda a vida pois.
Ergueste-o a Deus num dia amargo e triste
E Deus casou-nos esse dia, aos dois...

Ciumes também não, por te venderes.
Desgraçadinha! Antes te houvesses dado;
Não descerias tanto entre as mulheres,
Seria mais humano o teu peccado.

Porém, embora a tua falta aponte,
P'ra mim és a que foste (ou que eu suppuz);
O sol desapparece no horisonte
- E a gente vê-o ainda a dar-nos luz...

Póde a desgraça erguer em frente a mim
Altas montanhas d'elevados cumes.
O sol do amôr doiral-as-ha, e assim,
Vendo-o tão alto, não terei ciumes.

Ciumes! Elle é que hade tel-os, quando,
Em claras noites de luar silente,
Ouvir vibrar alguma voz, cantando
Os versos que te fiz devotamente.

Versos para te ungirem os ouvidos
E os labios d'anemica e de santa,
Tão pobres, tão ingenuos, tão sentidos,
Que o povo humilde os acolheu e os canta.

Então, se te olhar bem, logo adivinha...
Logo sombriamente se convence
De que a tua alma se fundiu na minha
--E apenas o teu corpo lhe pertence.

in Luar de Janeiro

Augusto César Ferreira Gil (nasceu em Lordelodo Ouro, Porto, 31 de Julho de 1873, faleceu em Lisboa a 26 de Fevereiro de 1929)

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2016-02-25

Lúbrica - Cesário Verde (com texto introdutório de Bernardo Soares referindo-se ao poeta)

“Vivemos pela acção, isto é, pela vontade. Aos que não sabemos querer — sejamos génios ou mendigos — irmana-nos a impotência. De que me serve citar-me génio se resulto ajudante de guarda-livros? Quando Cesário Verde fez dizer ao médico que era, não o Sr. Verde empregado no comércio, mas o poeta Cesário Verde, usou de um daqueles verbalismos do orgulho inútil que suam o cheiro da vaidade. O que ele foi sempre, coitado, foi o Sr. Verde empregado no comércio. O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois de ele morrer que nasceu a apreciação do poeta.

Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se o não fizerem ali?"

Bernardo Soares, Livro do Desassossego

Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás-de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu, neles, sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais,
Que muitas bibliotecas!

Extraído de O Livro de Cesário Verde, Texto integral e estudo da obra
Estante Editora

José Joaquim Cesário Verde (n. em Lisboa a 25 de fevereiro de 1855, m. Lisboa, 19 de julho de 1886)

Ler ainda do mesmo autor, neste blog:
De Tarde
Arrojos
O Sentimento Dum Ocidental - I Ave Marias -
Cristalizações
Eu e Ela
Noite Fechada
Cobertos de folhagem na verdura...
Arrojos
Contrariedades
Nós III
Vaidosa

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2016-02-24

Penumbra - David Mourão-Ferreira


Na penumbra dos ombros é que tudo começa

quando subitamente só a noite nos vê
E nos abre uma porta nos aponta uma seta

para sermos de novo quem deixámos de ser

in Obra Poética (1948-1988), Presença

David de Jesus Mourão-Ferreira (n. em Lisboa a 24 de fevereiro de 1927; m. Lisboa a 16 de junho de 1996)

Ler do mesmo autor:
Casa
E Por Vezes
Ilha
Nocturno
Paraíso
Ternura
Labirinto
Penelope
Primavera
Equinócio
Soneto do Cativo

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2016-02-23

As gaivotas - Fernando Semana


Grasnam as gaivotas no ar, pipilantes,
Sobre árvores desnudas na cidade fria
São como gritos de agonia revoltantes
Longe da costa… de moela vazia
Alto grasnas… e ainda alto voas
Já tão longe do mar, povoas
- Ó Charadriiformes Lari, Laridae!-
Os céus cinzentos da cidade…
Eu já não voo, não tenho vontade
Eu já não grito, lamentos por ti, Mãe!

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