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2014-08-31

Intangível - Charles Baudelaire

Quero-te como quero à abóbada nocturna,
Ó vazo de tristeza, ó grande taciturna!
E tanto mais te quero, ó minha bem amada,
Por te ver a fugir, mostrando-te empenhada
Em fazer aumentar, irónica, a distância

Que me separa a mim da celestial estância.
Bem a quero atingir, a abóbada estrelada,
Mas, se julgo alcançar, vejo-a mais afastada!
Pois se eu adoro até - ferro monstro, acredita! -
O teu frio desdém, que te faz mais bonita!


Tradução de Delfim Guimarães
in As Flores do Mal

Charles-Pierre Baudelaire (nasceu a 9 de Abril de 1821 em Paris, m. 31 de Agosto de 1867)

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2014-08-29

O QUERER - Manuel Machado



Tua boca rubra e fresca
beijo, e a sede não se apaga:
que em cada beijo quisera
beber toda a tua alma.

Enamorei-me de ti;
e é doença tão má
que dizem os que se amam
que nem com a morte acaba.

Ponho-me louco se escuto
o rumor da tua saia;
e o roçar da tua mão
dá-me vida e depois mata-me.

Eu quisera ser o ar
que toda inteira te abraça;
eu quisera ser o sangue
que corre em tuas entranhas.

São as linhas do teu corpo
modelo das minhas ânsias,
o caminho dos meus beijos
e o íman do meu olhar.

Sinto, ao cingir tua cinta,
uma dúvida que mata:
quisera ter, num abraço,
todo o teu corpo e tua alma.

Estou doente de ti;
da cura não tenho esperança:
na sede deste amor louco
és minha sede e minha água.

Maldito seja o momento
em que entrei em tua casa,
em que vi teus olhos negros,
beijei-te a boca escarlate.

Maldita seja esta sede,
maldita seja esta água!..
Maldito seja o veneno
que envenena e que não mata!


in Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea, selecção e tradução de José Bento - Documenta Poética, Assírio & Alvim

Manuel Machado y Ruiz (n. Seville, 29 ago. 1874; m. Madrid, 19 jan. 1947)

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2014-08-28

Cantiga - Sá de Miranda

Azulejos in Casa do Barreiro, Gemieira, Viana do Castelo Portugal.

Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,
antes que esta assi crecesse:
agora já fugiria
de mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
de vão trabalho que sigo,
pois que trago a mim comigo
tamanho imigo de mim?



Francisco de Sá de Miranda n. em Coimbra a 28 de agosto 1481 - m. em Amares a 15 de março de 1558)

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Happy Birthday: Sarah Roemer


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2014-08-27

ESTELA E NIZE - Alvarenga Peixoto

Eu vi a linda Estela, e namorado
Fiz logo eterno voto de querê-la;
Mas vi depois a Nize, e é tão bela,
Que merece igualmente o meu cuidado.

A qual escolherei, se neste estado
Não posso distinguir Nize de Estela?
Se Nize vir aqui, morro por ela;
Se Estela agora vir, fico abrasado.

Mas, ah! que aquela me despreza amante,
Pois sabe que estou preso em outros braços,
E esta não me quer por inconstante.

Vem, Cupido, soltar-me destes laços,
Ou faz de dois semblantes um semblante,
Ou divide o meu peito em dois pedaços!

Inácio José de Alvarenga Peixoto (Rio de Janeiro, 1 de fevereiro 1742/1744 — Ambaca, Angola, 27 de agosto 1792 ou 1 de janeiro 1793)

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2014-08-26

Distribuição do Tempo - Julio Cortázar, no centenário do nascimento do poeta

Cada vez são mais os que crêem menos
Nas coisas que preencheram as nossas vidas,
Os mais altos, os incontestáveis valores de Platão ou Goethe,
O verbo, a pomba sobre a arca da História,
A sobrevivência da obra, a descendência e as heranças.

Nem por isso caem do céu do neófito
Na ciência que expõe máquinas na lua;
Na verdade, tanto faz que o doutor Barnard
Faça transplantes do coração
Era preferível mil vezes que a felicidade de cada um
Fosse o exacto, o necessário reflexo da vida
Até que o coração insubstituível pudesse dizer simplesmente basta.

Cada vez são mais os que crêem menos
Na utilização do humanismo
Para o nirvana estereofónico
De mandarins e estetas.

Sem que isto queira significar
Que quando houver um instante de inspiração
Não se leia Rilke, Verlaine ou Platão,

Ou se escute os nítidos clarins,
Ou se vislumbre os trémulos anjos
De Angélico.


trad. Jorge Henrique Bastos
in Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim, 2001

Julio Florencio Cortázar (n. Embaixada da Argentina em Ixelles, 26 de agosto de 1914 – Paris, 12 de fevereiro de 1984)

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2014-08-25

Pretexto - Maria Alberta Meneres

Por que não cai a noite, de uma vez?
— Custa viver assim aos encontrões!
Já sei de cor os passos que me cercam,
o silêncio que pede pelas ruas,
e o desenho de todos os portões.

Por que não cai a noite, de uma vez?
— Irritam-me estas horas penduradas
como frutos maduros que não tombam.

(E dentro em mim, ninguém vem desfazer
o novelo das tardes enroladas.)

Maria Alberta Rovisco Garcia Menéres de Melo e Castro nasceu em Mafamude, Vila Nova de Gaia a 25 de Agosto de 1930.

Ler da mesma autoria:
Água-Memória
Entre a sombra e a noite
Por entre o crepitar dos automóveis
Os dois irmãos

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2014-08-24

Paisagem - Su Shi

Os nelumbos do estio já acabaram,
Já os não há. E apenas só ficaram
As suas folhas em chapéu-de-sol.
Os outonais crisântemos murcharam,
Mas os ramos altivos que guardaram
Já se curvam à geada fria e mole.
A adorável paisagem do ano, veja
Se na memória o sábio a guarda agora.
Porque é o tempo em que o limão verdeja,
É já o tempo em que a laranja aloura.


Trad. Alberto Osório de Castro

in Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim

Su Shi, também conhecido por Su Dongpo (8 janeiro 1037, Meishan, Sichuan, Northern Song Dynasty – 24 de agosto 1101, Changzhou)

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2014-08-23

O VOO - Menotti del Picchia

Goza a euforia do vôo do anjo perdido em ti
Não indagues se nossas estradas, tempo e vento
desabam no abismo.
Que sabes tu do fim?
Se temes que o teu mistério seja uma noite,
enche-o de estrelas.
Conserva a ilusão de que o teu vôo te leva sempre para o mais alto.
No deslumbramento da ascensão,
se pressentires que amanhã estarás mudo,
esgota, como um pássaro, as canções que tens na garganta.
Canta, canta para conservar uma ilusão de festa e de vitória.
Talvez as canções adormeçam as feras
que esperam devorar o pássaro.
Desde que nasceste, não és mais que um vôo no tempo.
Rumo ao céu? Que importa a rota?
Voa e canta, enquanto resistirem as tuas asas.


 Paulo Menotti del Picchia (nasceu em São Paulo, SP, em 20 de março de 1892, e faleceu na mesma cidade em 23 de agosto de 1988).

Ler do mesmo autor:
Germinal I
Chuva de Pedra;
Noite;
Piedosa Mentira;
Clássico;
Nirvana.

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2014-08-22

Tatuagem - Ruy Guerra (na voz de Maria Bethânia)

Quero ficar no teu corpo feito tatuagem
Que é pra te dar coragem pra seguir viagem
Quando a noite vem
E também pra me perpetuar em tua escrava
Que você pega, esfrega, nega
Mas não lava

Eu quero brincar no teu corpo feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem
E nos músculos exaustos do teu braço
Repousa frouxa, murcha, farta
Morta de cansaço

Eu quero pesar feito cruz nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem
Eu quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, ferro e fogo
Em carne viva

Corações de mãe
Arpões, sereias e serpentes
Que te rabiscam o corpo todo
mas não sentes


MARIA BETHÂNIA - TATUAGEM - Ao vivo Drama Terceiro Ato by Maria Bethania on Grooveshark
Ruy Alexandre Guerra Coelho Pereira (nasceu em Lourenço Marques, atual Maputo, a 22 de Agosto de 1931).


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2014-08-21

Esperança - Fernando Semana

Espero
Desespero
Por uma notícia boa
- «joaninha voa, voa
que o teu pai está em Lisboa» -
Que sem saber
ler nem escrever
Dê sentido a este viver.
- Tô! - Já és bis-avô,
Teus netos sairam do favo
ao início do mês oitavo.
Estão bem.
A mãe também!...

Fernando Semana, economista de profissão («poeta» nas horas vagas), nasceu em Valbom do concelho de Gondomar a 12 de outubro de 1957.

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A meu favor - Alexandre O'Neill


Green eyes

A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça

A meu favor tenho uma rua em transe
Um alto incendio em nome de nós todos


Alexandre Manuel Vahía de Castro O'Neill (n. em Lisboa a 19 de dezembro de 1924; m. em 21 de agosto de 1986).

Ler do mesmo autor:
Nesta curva tão terna e lancinante;
O Beijo;
Um Adeus Português;
Gaivota;
Há Palavras Que nos Beijam;
Dai-nos, meu Deus, um pequeno absurdo quotidiano que seja;
Toma Lá Cinco;
Auto-Retrato.

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2014-08-20

Tarde de Agosto - Matias de Lima


Domingo. O sol molesta,
Incendeia o horizonte.
Tocam sinos à festa
Em S. Pedro do Monte.

Num ramo de giesta
Canta um melro defronte.
É poeta: manifesta
O estro de Anacreonte.

Nos fios telefónicos
Andorinhas baloiçam...
Outras cruzam pelo ar.

E risonhos, harmónicos,
Os sinos de há pouco – oiçam! –
Repicam sem cessar.


Matias Lima (Porto, 20 de agosto de 1885 - Porto, 9 de março de 1970)

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2014-08-19

Musical Suggestion of the Day: Destino Marcado (fado menor) - Ricardo Ribeiro



Ricardo Alexandre Paulo Ribeiro, conhecido como Ricardo Ribeiro, nasceu em Lisboa a 19 de agosto de 1981

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2014-08-18

FANTASIAS - Hélio Ricciardi

Cadeira de balouço imagem daqui

Hoje senti falta das minhas fantasias.
Sentei-me na minha cadeira de balanço, como sempre, para viajar.
Ainda, da minha cadeira de balanço, sou tudo o que desejo ser:
rei, piloto de avião, marinheiro...
Ou aquele operário que volta do trabalho
e pára no portão de um casebre para receber o sorriso de sua namorada
como prêmio de seu dia de árduo labor.
Hoje não estou triste. Não sou ninguém, não consigo ser nada.
Onde foram parar minhas fantasias?

poema extraído daqui

HÉLIO IRAJÁ RICCIARDI DOS SANTOS, nasceu em Alegrete-RS, em 18 de agosto de 1926.

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2014-08-17

Poema XVI de Canções: Eu ontem passei o dia - António Botto

Eu ontem passei o dia
Ouvindo o que o mar dizia.

Chorámos, rimos, cantámos.

Falou-me do seu destino,
Do seu fado...

Depois, para se alegrar,
Ergueu-se, e bailando, e rindo,
Poz-se a cantar
Um canto molhado e lindo.

O seu hálito perfuma,
E o seu perfume faz mal!

Deserto de águas sem fim.

Ó sepultura da minha raça
Quando me guardas a mim?...

Ele afastou-se calado;
Eu afastei-me mais triste,
Mais doente, mais cansado...

Ao longe o Sol na agonia
De rôxo as aguas tingia.

«Voz do mar, misteriosa;
Voz do amor e da verdade!
- Ó voz moribunda e dôce
Da minha grande Saudade!
Voz amarga de quem fica,
Trémula voz de quem parte...»
......

E os poetas a cantar
São echos da voz do mar!


in Canções

António Tomaz Botto nasceu a 17 de Agosto de 1897, em Casal da Concavada, Abrantes e faleceu no Rio de Janeiro a 17 de Março de 1959)

Ler do mesmo autor, neste blog:

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2014-08-16

Introdução + Paz! - António Nobre

MEMORIA
À MINHA MAE
AO
MEU PAI

Aquele que partiu no brigue Boa Nova
E na barca Oliveira, anos depois, voltou;
Aquele santo (que ê velhinho e já corcova)
Uma vez, uma vez, linda menina amou:
Tempos depois, por uma certa lua-nova,
Nasci eu... O velhinho ainda cá ficou,
Mas ela disse: — «Vou, ali adiante, à Cova,
António, e volto já ...» E ainda não voltou!
António é vosso. Tomai lá a vossa obra!
«Só» é o poeta-nato, o lua, o santo, a cobra !
Trouxe-o dum ventre: não fiz mais do que o escrever...
Lede-o e vereis surgir do Poente as idas mágoas,
Como quem vê o Sol sumir-se, pelas águas,
E sobe aos alcantis para o tornar a ver!


PAZ!

Paz! E a Vida foi, e é assim, e não melhora.
Esforço inútil, crê! Tudo é ilusão...
Quantos não cismam nisso mesmo a esta hora
Com uma taça, ou um punhal na mão!

Mas a Arte, o Lar, um filho, Antonio? Embora!
Quimeras, sonhos, bolas de sabão.
E a tortura do além e quem lá mora!
Isso é, talvez, minha única aflição...

Toda a dor pode suportar-se, toda!
Mesmo a da noiva morta em plena boda,
Que por mortalha leva... essa que traz...

Mas uma não: é a dor do pensamento!
Ai quem me dera entrar nesse convento
Que há além da Morte e que se chama A Paz


Extraído de «Só, António Nobre, Paris, Leon Vanier Editeur, 1892»
cópia digital de acesso livre aqui (com atualização da ortografia pelo autor do blog).

António Pereira Nobre (nasceu no Porto a 16 de Agosto de 1867 e foi vítima de tuberculose pulmonar, na Foz do Douro, Porto a 18 de Março de 1900).

Ler do mesmo autor, neste blog:
O Teu Retrato
À Luz de Lua
Ao Cair das Folhas
Virgens que passais
Carta ao Oceano
A Leão XIII
Ladainha
Purinha
E a vida foi, e é assim, e não melhora

Na Praia lá da Boa Nova um dia

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2014-08-15

Nessa parede verde da hera - Fiama Hasse Pais Brandão

Nessa parede verde da hera
o teu rosto cada vez ganha mais forma,
entre as mãos de verdura estendidas
aos ventos que as dobram e movem.

Quando te vejo na luz ou nessa sombra
estar vago e ser tão próximo,
só tu sendo não sabes onde te vejo,
só eu muda não digo onde te guardo.


in Cenas Vivas, Relógio D'Água, 2000

Fiama Hasse Pais Brandão (Lisboa, 15 de agosto de 1938 — Lisboa, 19 de janeiro de 2007)

Ler do mesmo autor, neste blog:
Amor é o olhar total, que nunca pode
Opus ∞ +1
Quarta-feira às três horas da tarde
Imagem Minha;
Poetas do Amor;
Do Amor IV.

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2014-08-14

Meditação sobre o desperdício

A morte de alguém conhecido traz-nos, por momentos, à realidade etérea da vida e mostra-nos quão vã e futilmente, em grande parte, a desperdiçamos. Um pouco mais tarde voltamos à hipnose em que, acordados, vivemos sonambulamente (continuando a desperdiçá-la)...

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ARS POETICA - Czeslaw Milosz (na passagem do 10º aniversário do seu desaparecimento)


Sempre aspirei por uma forma mais ampla,
que não fosse poesia nem prosa em demasia
e permitisse a compreensão, sem expor ninguém,
nem autor nem leitor, a grandes tormentos.

Em sua essência, a poesia é algo horrível:
nasce de nós uma coisa que não sabíamos que está dentro de nós,
e piscamos os olhos como se atrás de nós tivesse saltado um tigre,
e tivesse parado na luz, batendo a cauda sobre os quadris.

É por isso que se afirma, com razão, que a poesia é ditada por um espírito,
embora haja exagero em afirmar que se trata de um anjo.
É difícil de entender a soberba dos poetas,
por que se envergonham, quando a fraqueza deles acaba descoberta.

Que homem inteligente gostaria de ser o país dos demónios,
que nele se multiplicam como em sua própria casa, falam inúmeras línguas,
e como se não lhes bastasse roubar-lhe a boca e as mãos,
ainda tentam alterar-lhe o destino a seu bel-prazer?

Porque hoje se respeita tudo o que é adoentado,
alguém poderá pensar que estou brincando apenas,
ou que encontrei uma outra maneira
de elogiar a Arte através da ironia.

Houve um tempo em que somente livros sábios eram lidos,
que ajudam a suportar a dor e a desgraça.
Mas isso não é o mesmo que examinar milhares
de obras oriundas directamente das clínicas psiquiátricas.

Mas o mundo é diferente daquilo que nos parece,
e nós próprios somos diferentes dos nossos delírios.
Por isso as pessoas conservam a sua silente cortesia,
para obter o respeito de parentes e vizinhos.

A vantagem da poesia consiste no facto de lembrar-nos
da dificuldade de manter a identidade,
pois a nossa casa está aberta, não há chave na porta,
e hóspedes invisíveis entram e saem.

Concordo, o que estou contando aqui não é poesia.
Poesias devem ser escritas poucas vezes e de má vontade,
sob uma pressão insuportável e apenas na esperança
de que os bons espíritos, e não os maus, tenham em nós o seu instrumento.

Tradução de Aleksandar Jovanovic.

extraído de a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim, 2001

CZESŁAW MIŁOSZ (nasceu em 30 de Junho de 1911 em Szetejny, na Lituânia, embora seja de nacionalidade polaca; m. Cracóvia, 14 de agosto de 2004). Foi Prémio Nobel da Literatura em 1980

Ler do mesmo autor: Janela

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2014-08-13

Maldição, letra de Armando Vieira Pinto, na voz de Amália

Que destino ou maldição
Manda em nós, meu coração?
Um do outro assim perdido,
Somos dois gritos calados,
Dois fados desencontrados,
Dois amantes desunidos.

Por ti sofro e vou morrendo,
Não te encontro, nem te entendo,
Amo e odeio sem razão:
Coração... quando te cansas
Das nossas mortas esperanças,
Quando paras, coração?

Nesta luta, esta agonia,
Canto e choro de alegria,
Sou feliz e desgraçada.
Que sina a tua, meu peito,
Que nunca estás satisfeito,
Que dás tudo... e não tens nada.

Na gelada solidão,
Que tu me dás coração,
Não há vida nem há morte:
É lucidez, desatino,
De ler no próprio destino
Sem poder mudar-lhe a sorte...


Letra de Armando Vieira Pinto, música de Alfredo Duarte "Marceneiro"

Maldicão by Amália Rodrigues on Grooveshark
Armando Queiroz Vieira Pinto nasceu em Santa Marta de Portuzelo (concelho de Viana do Castelo), a 13 de agosto de 1906, faleceu em 1964)

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O ANAGRAMA - Gonçalves de Magalhães

Dos vates a antiga usança
Quis respeitoso seguir,
Ensaiando em anagrama
Teu doce nome exprimir;
Mas a mente em vão se cansa,
No desejo que me inflama
Nada me vem acudir.

Não desistindo da idéia,
Volto a ela sem cessar;
Diversos nomes invento,
Sem nenhum poder achar,
Que seja nome de idéia,
E se preste ao meu intento,
Sem o teu muito ocultar.

Vendo alfim que não podia
Teu anagrama fazer;
Que quantos eu inventava
Nada queriam dizer;
Uma idéia à fantasia,
Quando já nada esperava,
Me veio enfim socorrer.

Foi idéia luminosa,
Direi quase inspiração,
Pois que senti de repente
Palpitar-me o coração.
Sua força imperiosa
Foi tal, qu'eu obediente
Dei-lhe pronta execução.

De papel em uma fita
Teu lindo nome escrevi;
Pondo as letras separadas,
Co'a tesoura as dividi.
Cada solta letra escrita
Enrolei, e baralhadas,
Numa caixinha as meti.

Tudo ao acaso deixando,
Da sorte o cofre agitei;
E tirando-as de uma em uma,
Uma após outra as tracei.
Oh prodígio! Oh pasmo! Quando
Esta maravilha suma
De um mero acaso esperei?

Já Urânia — escrito estava!
Foi Amor quem o escreveu!
Não, não foi obra do acaso;
Teu nome veio do céu!
Aquele — já — me ordenava
Que da Urânia do Parnaso
Fosse o nome agora teu.

Que para mim renascida
A Musa Urânia serás.
Que ao céu e a Deus minha mente
Tu sempre levantarás.
Musa real, não fingida,
Unida a mim ternamente,
Celeste amor me terás.


Domingos José Gonçalves de Magalhães (nasceu no Rio de Janeiro em 13 de agosto de 1811. Faleceu em Roma (Itália) no dia 10 de julho de 1882).

Do mesmo autor:
A Beleza
Para que vim eu ao mundo
Apólogo: O Carro e o Burro

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2014-08-12

Claro-Escuro - Miguel Torga

Dia da vida,
Noite da morte...
O verso
E o reverso
Da medalha.
E não há desespero que nos valha,
Nem crença,
Nem descrença,
Nem filosofia.
Esta brutalidade, e nada mais:
Sol e sombra - o binómio dos mortais.

Só que o sol vem primeiro,
E a sombra depois...
E à luz do sol é tudo o que sabemos:
Juventude,
Beleza,
Poesia,
E amor
- Amargo fruto que na sepultura,
Em vez de apodrecer, ganha doçura.


in 'Orfeu Rebelde', 1958
Extraído de POESIA COMPLETA - MIguel Torga, 1ª Edição, Publicações Dom Quixote, pág. 555

Adolfo Correia da Rocha que usou o pseudónimo de Miguel Torga, nasceu em São Martinho de Anta, Sabrosa, Trás-os-Montes, a 12 de Agosto de 1907; morreu em Coimbra a 17 de Janeiro de 1995.

Ler do mesmo autor, neste blog: Mãe; Preservação; Súplica; Adeus; Depoimento; Procura; Ficam as Sombras; Sei um ninho; Queixa; Hora de amor; Mea culpa; Anátema; Livro de Horas; Encontro; Quase um poema de amor; Perfil; Exorcismo; Bucólica; Arquivo; Rogo; Glória; Poema Melancólico a não sei que Mulher.

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2014-08-11

Reticências e Interstícios - Fernando Semana

Vivem em mim as reminiscências
Da praia dos teus olhos, solstícios!


Fernando Semana

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2014-08-10

Baldio - Rui Knopfli

O menino que eu fui debruça-se furtivo
de meus olhos sobre o recanto da paisagem.
Entre a dureza austera dos prédios
e o largo sorriso colorido das vidraças
aquele recanto que sobrou da paisagem
pertence intacto ao menino que eu fui outrora
e o menino que eu fui outrora desce
alvoraçado de meus olhos, desliza
entre o capim, atira pedras aos galagalas
e salta sobre as velhas folhas de zinco
apodrecido, num cenário querido de girassóis
antigos. Então parto dali
e o menino que fui regressa extenuado
e adormece na sombra de meus olhos.


Rui Knopfli (n. em Inhambane, Moçambique, 10 de Agosto de 1932 - m. Lisboa, 25 de Dezembro de 1997)

Ler do mesmo autor, neste blog:
Amor das Palavras
Nenhum Monumento
Testamento

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2014-08-09

história de cão - Mário Cesariny


Pintura de Manuel Cesariny

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada.

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia.

estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar.

e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo.

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada.
mas de nós não há memória.

dos lados não ficou nada.

extraído de Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea, um panorama, organização de Alberto da Costa e Silva e Alexei Bueno, Lacerda Editores

Mário Cesariny de Vasconcelos (n. em Lisboa a 9 Agosto de 1923; m. em Lisboa, 26 de Novembro de 2006)

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2014-08-08

Ode Quarta, de Odes ao Tejo - Armindo Rodrigues

(…)

Só vadios e poetas te queremos,
meu Tejo antigo, eternamente novo.
E, contudo, és as vértebras de um povo.
Um bote surge chapinhando os remos,
Enquanto eu com um pé as águas movo.

De repente, a distância, uma voz grave
Canta, e a lua torna-se maior.
Desfolha-se a canção como uma flor.
Rio umas vezes rude, outras suave,
és tu que cantas, ou a nossa dor?

Se o José Gomes não estivesse aqui,
tenho a certeza de que choraria,
deste misto de raiva e nostalgia
que sinto ao lembrar-me que perdi
o mundo justo em que em menino cria.

A equidade a que aspirei secou.
Por isso o desalento é-me cruel,
cruel é-me a veemência que o repele,
sai-me cruel até o próprio dó.
Por isso me é, não raro, a vida fel.

Mudos voltamos ao Rossio onde
há sempre um vão rumor de gente vã.
Torna-se a alegria brusca e sã.
Também depois da noite que nos esconde
romperá uma lúcida manhã.


Extraído de Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977, Moraes Editora - Lisboa, 1979, vol. I, pp. 121-122)
Autoras: M. Alberta Menéres e E. M. de Melo e Castro; nº 89 da colecção Círculo de Poesia.

Armindo José Rodrigues (Lisboa, 1904 – Lisboa, 8 de agosto de 1993)

Nota do Webmaster: Neste dia 8 de agosto assinala-se também a passagem do 36º aniversáriio do desaparecimento de Ruy Belo (27.2.19333 - 6.8.1978) que está vastamente divulgado no Nothingandall
Pode ler vários poemas deste autor aqui

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2014-08-07

Oferta - Maximiano Campos

Nada tendo para te oferecer,
te oferto:
as rédeas da minha imaginação,
os meus versos,
e a sua precária imperfeição.

O que possa haver no meu canto
de puro e limpo,
claro dia, sol a pino,
frutos e flores,
cheiro de chuva subindo da terra seca,
tudo te oferto,
nesse verso, pobre bandeja.

Escravo do sonho,
pintor do nada,
equilibrista em terra firme,
almirante sem navio,
triste até quando sorrio,
te ofereço como teto e casa
o meu ideal e esse sol bravio.


Maximiano Accioly Campos nasceu no Recife, PE, em 19 de novembro de 1941, e faleceu nessa mesma cidade em 7 de agosto de 1998.

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2014-08-06

O nome da ausência - Albano Martins

O sótão: era ali
que o mundo começava. Ainda
não sabias, então,
quantas letras te seriam
necessárias para soletrar
o alfabeto dos dias, para encher
a tua caixa
de música, a tua concha
de areia. E ainda
o não sabes hoje. Com cinza
nada se escreve a não ser
as vogais do silêncio. E este
é o nome que se dá à ausência,
quando a noite e a poeira
dos astros pousam
sobre a ranhura dos olhos.


in Cem Poemas Portugueses do Adeus e da Saudade
Selecção, organização e introdução de José Fanha e José Jorge Letria
Terramar

Albano Dias Martins (n. Fundão, 6 de agosto de 1930)

Ler do mesmo autor, neste blog:
Gramática da noite e do teu corpo
Crepúsculo de Agosto
E me disseste: vem
Entardecer na Praia da Luz

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2014-08-05

MEDITAÇÕES SOBRE A MORTE - António MIranda

“Sou onde não estou
estou onde não sou”.

LACAN


1.

Definitivamente, vou ao hospício
para recobrar a lucidez.

2.

Tiro fotos para apreender a realidade
e flagro a morte.

A vida, se existe,
é um deixar de ser.

Mortes sucessivas
antes da derradeira morte
no lugar-comum
do avesso da vida.

3.

Pior: um reconstruir-se para continuar sendo
- no paradoxo do absurdo!

4.

A fotografia como espelho
no meu álbum de família.

Eu em diversos momentos
de minha morte.

Na memória, um cemitério
revivescente:
“o” nada!

5.

Eu já morri
enquanto a literatura
- tentando eludir a morte -
degrada a minha existência
buscando preservá-la
mas só ela me sobrevive.

(12 julho 2005)

Extraído do sitio do autor aqui

Antonio Lisboa Carvalho de Miranda nasceu em 5 de agosto de 1940 em Bacabal, estado do Maranhão, Brasil.

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2014-08-04

A cor do cabelo - Delfim Guimarães

foto: Bébé daqui

Para ficar arquivado
No álbum da sua infância
Rescendente de fragrância
Um caracol foi cortado
Ao seu cabelo anelado.
Quando mais tarde, a distância
Bébé recordar a estância
Mais bela do seu passado
É natural que folheie
Este livro, e então se enleie
Num profundo meditar...
Como a côr do seu cabelo
Mudou tanto... foi o gelo
Do inverno que a fez mudar!

Delfim de Brito Guimarães (n. no Porto, em 4 de Agosto de 1872; m. na Amadora em 6 de Julho de 1933).


Ler do mesmo autor, neste blog:
Feiticeira
A Primeira Palavra
A Hora da Partida

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2014-08-03

Epitáfio - Políbio Gomes dos Santos (na passagem dos 75 anos do seu desaparecimento)

Menino, bem menino, fiz o meu balão
Papel de seda às cores...
- Tantas eram!
Ai, nunca mais as vi, nos olhos se perderam.
Quando a tarde morria o meu balão subiu
E tão direito ia, tão veloz correu
Que eu disse: "Vai tombar a Lua
E talvez queime o céu."

Anoiteceu.
E no horizonte o meu balão era uma rosa
Vermelha, não minha, aflitiva,
Murchando,
Poisando na água pantanosa
De além.

Ninguém o viu.
Ninguém colheu a angústia dum balão ardendo.
Somente a água verde rebrilhou acesa,
Clamorosa e podre,
Como nos incêndios de Veneza
E rãs, acreditando o mal mortal e seu
Foram fugindo, pela noite fria,
Do balão que ardeu.

Ó tu, quem sejas, o balão fui eu!

Políbio Gomes dos Santos (Ansião, 7 de agosto de 1911 — Ansião, 3 de agosto de 1939)

Do mesmo autor, neste blog:
Momento
Radiografia
Poema da Voz que Escuta
Testamento Aberto
Genesis

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2014-08-02

Ofício - Nauro Machado

Ocupo o espaço que não é meu, mas do universo.
Espaço do tamanho do meu corpo aqui,
enchendo inúteis quilos de um metro e setenta
e dois centímetros, o humano de quebra.
Vozes me dizem: eh, tu aí! E me mandam bater
serviços de excrementos em papéis caídos
numa máquina Remington, ou outra qualquer.
E me mandam pro inferno, se inferno houvesse
pior que este inumano existir burocrático.
E depois há o escárnio da minha província.
E a minha vida para cima e para baixo,
para baixo sem cima, ponte umbilical
partida, raiz viva de morta inocência.
Estranhos uns aos outros, que faço eu aqui?
E depois ninguém sabe mesmo do espaço
que ocupo, desnecessário espaço de pernas
e de braços preenchendo o vazio que eu sou.
E o mundo, triste bronze de um sino rachado,
o mundo restará o mesmo sem minha quota
de angústia e sem minha parcela de nada.


Nauro Diniz Machado (nasceu em São Luís, Maranhão, a 2 de agosto de 1935)

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2014-08-01

Mistério de Ambos, de Cada Criatura - António Osório


Como recebeu ela Adão?
Despojou-o,
e o desflorou, ajudando?

Adão, brutal ou terno?
Acometeu, cervo
ou foi penetrante andorinha?

Arrancou de si
sementes, o coração
latindo, cão grato?

Felizes, torturantes,
aprendizes, falsos,
sortílegos, infames?

Inteiraram-se um no outro?
Desejaram a morte
de quantos séculos?
in «366 poemas que falam de amor»
Antologia organizada por Vasco Graça Moura,
Lisboa: Quetzal, 2003

António Gabriel Maranca Osório de Castro nasceu em Setúbal a 1 de agosto de 1933

 Ler do mesmo autor, neste blog:
Paciências
Um Sentido
Aqui em Siena
Prado e Cofre

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Musical suggestion of the day: Ney Matogrosso - Lábios de Mel (com Katia Guerreiro)



Ney de Souza Pereira, de nome artístico Ney Matogrosso, nasceu na Bela Vista, Mato Grosso do Sul a 1 de agosto de 1941.

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