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2017-08-31

A Ausência / L'Absence - Teophile Gautier

Regressa, regressa, minha bem amada!
Como uma flor longe do sol,
A flor da minha vida está fechada,
Longe do teu sorriso de rubi.

Entre os nossos corações tanta distância,
Tanto espaço entre os nossos beijos!
Ó sorte amarga! Ó dura ausência!
Ó grandes desejos não apaziguados!

Regressa, regressa, minha bem amada ...

Entre nós tantas campinas,
Tantas cidades e aldeias,
tantos vales e montanhas,
Para cansar os cascos dos cavalos.

Regressa, regressa, minha bem amada...

Tradução - RDP - Maria de Nazaré Fonseca

(original)
L'Absence

Reviens, reviens, ma bien-aimée!
Comme une fleur loin du soleil,
La fleur de ma vie est fermée
Loin de ton sourire vermeil!

Entre nos coeurs, quelle (tant de) distance!
Tant d'espace entre nos baisers!
Ô sort amer, ô dure absence!
Ô grands désirs inapaisés!

Reviens, reviens, ma bien-aimée ...

D'ici là-bas que de campagnes,
Que de villes et de hameaux,
Que de vallons et de montagnes,
À lasser le pied des chevaux!

Reviens, reviens, ma bien-aimée ...

Pierre Jules Théophile Gautier (Tarbes, França, 31 de agosto de 1811 — Paris, 23 de outubro de 1872)

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Musical suggestion of the day: Lisboa que amanhece - Sérgio Godinho (com Caetano Veloso)

Sérgio de Barros Godinho nasceu no Porto a 31 de agosto de 1945

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2017-08-30

DESASSOMBRAMENTO - Carmen Cinira

Que me aguarde, por pena, o mais triste dos fados,
e clamores hostis me sigam pela vida,
que floresçam vulcões nos montes sossegados
e trema de revolta a Terra adormecida…

Que se ergam contra mim os seres indignados
como um quadro dantesco em fúria desmedida,
e que, na própria altura, os astros deslocados
rolem numa sinistra e tremenda descida…

Hei de ser tua um dia e ofertar-te, sem pejo.
vibrante, ébria de amor, á chama de teu beijo,
esta alma virginal que há tanto assim te espera…

E então hei de sentir vaidosa, intensamente,
desabrochar em mim, num delírio crescente,
o instinto de mulher em ânsias de pantera!

Cinira do Carmo Bordini Cardoso, de nome literário Carmen Cinira, nasceu no Rio de Janeiro, em 16 de julho de 1902 (ou 1905?), e faleceu em 30 de agosto de 1933

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2017-08-29

Tento há muito, fazer um bom soneto - Cristóvão de Camargo

Tento, há muito, fazer um bom soneto,
uma obra-prima, que me deixe ufano:
armar catorze linhas – o esqueleto –
e dar-lhes sangue e nervo e um sopro humano.

Entusiasmou-me esse trabalho insano,
quis polir um quarteto, outro quarteto;
cada quarteto foi-me um desengano,
desengano me foi cada terceto.

Sonhei erguê-lo como um templo grego,
fi-lo e refi-lo, num desassossego,
e, em pouco, dominou-me o desalento…

Arcanos do soneto! É-me defesa
sua revelação e, com tristeza,
contemplo a frustração do meu intento.


CRISTÓVÃO Torres DE CAMARGO nasceu em São Paulo a 29 de agosto de 1902. Formado em Direito pela sua cidade natal, estabeleceu-se como advogado no Rio de Janeiro. Escreveu poesia («Bronze», «Sonetos» e «Poème de la Nuit»), contos, peças teatrais, ensaios e literatura infantil, em português, castelhano ou francês. Foi também jornalista e proferiu conferências em Paris, Roma e capitais sul-americanas. Usou, por vezes, o pseudónimo Fabrício Velho.

Soneto e nota biobibliográfica extraídos de «A Circulatura do Quadrado - Alguns dos Mais Belos Sonetos de Poetas cuja Mátria é a Língua Portuguesa. Introdução, coordenação e notas de António Ruivo Mouzinho. Edições Unicepe - Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto, 2004.

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Musical suggestion of the day: You are not alone - Michael Jackson



Michael Joseph Jackson (Gary, Lake County, Indiana, USA, august 29, 1958 — Los Angeles, june 25, 2009)

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2017-08-28

O SOL É GRANDE - Sá de Miranda


O sol é grande, caem co’a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu’em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d’amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m’eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!

Francisco de Sá de Miranda (n. Coimbra, a 28 de agosto de 1481 — n. Amares, 15 de março de 1558).

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2017-08-25

Que Vos Daria? - Luís Delfino


Se tiverdes um dia um capricho, senhora,
Um capricho, um delírio, uma vontade enfim,
Não exijas o carro azul que monta a Aurora
Nem da estrela da tarde o plaustro de marfim;

Nem o mar, que murmura e aí vai por mar em fora
Nem o céu d'outros céus, elos de céu sem fim,
Que se isso fosse meu, já vosso, há muito, fôra.
Fôra vosso o que é grande e anda em torno de mim...

Mostrásseis num só gesto ingênuo, um só desejo...
O universo que vejo e os outros que não vejo
Sofreriam por vós vosso último desdém.

Que faríeis dos sóis, grãos vis de areias d'ouro
Mulher! Pedi-me um beijo e vereis o tesouro
Que um beijo encerra e o amor que um coração contém.

LUÍS DELFINO dos Santos nasceu em Desterro, hoje Florianópolis, Santa Catarina,. Brasil, a 25 de agosto de 1834 e morreu no Rio a 31 de janeiro de 1910.

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2017-08-24

Quem sou eu? (I)

Quem sou eu? Que importa quem?
Sou um trovador proscrito,
Que trago na fronte escrito
esta palavra "Ninguém!"

A.E. Zaluar - "Dores e Flores"

Amo o pobre, deixo o rico,
Vivo como o Tico-tico;
Não me envolvo em torvelinho,
Vivo só no meu cantinho;
Da grandeza sempre longe
Como vive o pobre monge.

Tenho mui poucos amigos,
Porém bons, que são antigos,
Fujo sempre à hipocrisia,
À sandice, à fidalguia;
Das manadas de Barões?
Anjo Bento, antes trovões.

Faço versos, não sou vate,
Digo muito disparate,
Mas só rendo obediência
À virtude, à inteligência:
Eis aqui o Getulino
Que no pletro anda mofino.

Sei que é louco e que é pateta
Quem se mete a ser poeta;
Que no século das luzes,
Os birbantes mais lapuzes,
Compram negros e comendas,
Têm brasões, não - das Kalendas;
E com tretas e com furtos
Vão subindo a passos curtos;
Fazem grossa pepineira,
Só pela arte do Vieira,
E com jeito e proteções.
Galgam altas posições!

Mas eu sempre vigiando
Nessa súcia vou malhando
De tratante, bem ou mal,
Com semblante festival
Dou de rijo no pedante
De pílulas fabricante
Que blasona arte divina
Com sulfatos de quinina
Trabusanas, xaropadas,
E mil outras patacoadas.
Que, sem pingo de rubor
Diz a todos que é DOUTOR!
Não tolero o magistrado,
Que do brio descuidado,
Vende a lei, trai a justiça
- Faz a todos injustiça -
Com rigor deprime o pobre
Presta abrigo ao rico, ao nobre,
E só acha horrendo crime
No mendigo, que deprime.
- neste dou com dupla força,
Té que a manha perca ou torça.

Fujo às léguas do lojista,
Do beato e do sacrista -
Crocodilos disfarçados,
Que se fazem muito honrados
Mas que, tendo ocasião,
São mais feros que o Leão
Fujo ao cego lisonjeiro,
Que, qual ramo de salgueiro,
Maleável, sem firmeza
Vive à lei da natureza
Que, conforme sopra o vento,
Dá mil voltas, num momento
O que sou, e como penso,
Aqui vai com todo o senso,
Posto que já veja irados
Muitos lorpas enfurnados
Vomitando maldições,
Contra as minhas reflexões.

Eu bem sei que sou qual Grilo,
De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
Desta arenga receosos
Hão de chamar-me Tarelo
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu que não me abalo
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda casta
Pois que a espécie é muito vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus e outros nobres.

Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobres, Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas
Deputados, senadores,
Gentis-homens, vereadores;
Belas damas emproadas
De nobreza empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança;
Guardas, Cabos, Furriéis
Brigadeiros, Coronéis
Destemidos Marechais,
Rutilantes Generais,
Capitães de mar-e-guerra
- Tudo marra, tudo berra -
Na suprema eternidade,
Onde habita a Divindade,
Bodes há santificados,
Que por nós são adorados.
Entre o coro dos Anjinhos
Também há muitos bodinhos.
O amante de Syringa
Tinha pêlo e má catinga;
O deus Mendes, pelas costas,
Na cabeça tinha pontas;
Jove, quando foi menino,
Chupitou leite caprino;
E segundo o antigo mito
Também Fauno foi cabrito.
Nos domínios de Plutão,
Guarda um bode o Alcorão;
Nos lundus e nas modinhas
São cantadas as bodinhas:
Pois se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse pois a matinada,
Porque tudo é bodarrada!


Luís Gonzaga Pinto da Gama (n. Salvador, Bahia, Brasil, 21 de junho de 1830 — m. São Paulo, São Paulo, Brasil, 24 de agosto de 1882)

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2017-08-23

Clássico - Menotti del Picchia


Senhora, por quem sois, não sejais minha,
que o bem que aspiro é um mal para nós dois.
Sede insensível como terna sois,
à paixão que vos tenta e me espezinha.

Não cedais. Resisti. Morra sozinha
esta chama. Soframos hoje, pois,
mais vale ora penar que ver, depois,
que o bem que se sonhou só mal continha.

A ansiedade de agora é vã tristura
Comparada a essa angústia que não cansa
Do amor que se encaminha para o tédio...

Antes este amargor sem amargura,
este doido esperar sem esperança,
que arrepender-se sem ter mais remédio.

Poema extraído de A Circulatura do Quadrado, Alguns dos Mais Belos Sonetos de Poetas cuja Mátria é a Língua Portuguesa, Edições Unicepe


Paulo Menotti Del Picchia (n. em São Paulo, São Paulo, Brasil a 20 de março de 1892 — m. em São Paulo, a 23 de Agosto de 1988)

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2017-08-22

O orvalho de tua voz - Kori Bolivia

Se for noite
e os ventos calados
permanecerem à borda do mundo,
tecerei castelos de sonhos
no pêndulo do tempo.

Se for noite
e as mãos na pálpebra fechada
buscarem castelos e rodopios de sol,
colherei a madrugada
bebendo o orvalho de tua voz.


Kori Bolivia de nome completo Kori Yaane Bolivia Carrasco Dorado nasceu em La Paz (Bolívia) em 22 de agosto de 1949

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2017-08-21

Gaivota - Alexandre O'Neill (na voz de Amália Rodrigues)


Se uma gaivota viesse
Trazer-me o céu de Lisboa
No desenho que fizesse.
Nesse céu onde o olhar
É uma asa que não voa,
Esmorece e cai no mar.
Que perfeito coração
No meu peito bateria,
Meu amor na tua mão,
Nessa mão onde cabia
Perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro
Dos sete mares andarilho
Fosse quem sabe o primeiro
A contar-me o que inventasse
Se um olhar de novo brilho
Ao meu olhar se enlaçasse.
Que perfeito coração
No meu peito bateria
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde cabia
Perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
As aves todas do céu
Me dessem na despedida
O teu olhar derradeiro
Esse olhar que era só teu
Amor que foste o primeiro
Que perfeito coração
Morreria no meu peito
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde perfeito
Bateu o meu coração.

Extraído de O FADO DA TUA VOZ, AMÁLIA E OS POETAS, Vítor Pavão dos Santos, Bertrand Editora 2014


Alexandre Manuel Vahía de Castro O'Neill (n. em Lisboa a 19 de dezembro de 1924; m. em 21 de agosto de 1986)

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2017-08-18

ASAS BROTAM DE MEUS DEDOS - Osmar Pisani

Aqui, asas brotam de meus dedos
e se elevam como um sopro
na branca paisagem de teus sonhos.

Vês as figuras transformadas em papel?

Outros seres passam em procissão
e a ideia é um lago somente,
súbita estrela se apoia em tua mão.

Tua sombra se ajusta à órbita da noite
e cobre o abismo dos homens sem memória.

Osmar Pisani nasceu em Gaspar, Santa Catarina, em 18 de agosto de 1936; faleceu em 7 de março de 2007.

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2017-08-17

...E nos 30 anos do falecimento de Carlos Drummond de Andrade: Canção Final



Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.

Carlos Drummond de Andrade (Itabira, Minas Gerais, Brasil, 31 de outubro de 1902 — Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1987)

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Quanto, quanto me queres? - perguntaste - António Botto (na efeméride dos 120 anos do nascimento)

Quanto, quanto me queres? - perguntaste
Numa voz de lamento diluída;
E quando nos meus olhos demoraste
A luz dos teus senti a luz da vida.

Nas tuas mãos as minhas apertaste;
Lá fora da luz do Sol já combalida
Era um sorriso aberto num contraste
Com a sombra da posse proibida...

Beijámo-nos, então, a latejar
No infinito e pálido vaivém
Dos corpos que se entregam sem pensar...

Não perguntes, não sei - não sei dizer:
Um grande amor só se avalia bem
Depois de se perder.


in Poemas de Amor, Antologia de poesia portuguesa, Organização e prefácio de Inês Pedrosa, Publicações Dom Quixote

António Tomaz Botto nasceu a 17 de agosto de 1897, em Casal da Concavada, Abrantes e faleceu no Rio de Janeiro a 17 de março de 1959.

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2017-08-16

Na praia lá da Boa Nova, um dia - António Nobre (na passagem dos 150 anos do seu nascimento)


Na praia lá da Boa Nova, um dia,
Edifiquei (foi esse o grande mal)
Alto Castelo, o que é a fantasia,
Todo de lápis-lazúli e coral!

Naquelas redondezas não havia
Quem se gabasse dum domínio igual:
Oh, Castelo tão alto! parecia
O território dum senhor feudal!

Um dia (não sei quando, nem sei donde)
Um vento seco de deserto e spleen
Deitou por terra, ao pó que tudo esconde,

O meu condado, o meu condado, sim!
Porque eu já fui um poderoso Conde,
Naquela idade em que se é conde assim...


António Pereira Nobre (nasceu no Porto a 16 de agosto de 1867 e foi vítima de tuberculose pulmonar, na Foz do Douro, Porto a 18 de março de 1900).

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2017-08-14

Canção Vermelha - Jaime Cortesão


Mulher vestida de vermelhoMulher de vermelho


-"Amo-te!" E cerras os dentes
-"Amo-te!" E fico enleado
Como se fora assaltado
Numa selva por serpentes.

Nem um fauno alucinado
Tem ímpetos mais ardentes;
Nem as sibilas dementes
Este delírio sagrado.

Meus lábios, que a febre inflama,
E as faces, estão em chama
Como bocas de fornalha.

E ardem-te os olhos surpresos;
São dois archotes acesos
Numa noite de batalha!

Extraído de "Cem Sonetos Portugueses", selecção organização e introdução de José Fanha e José Jorge Letria, Terramar

Jaime Zuzarte Cortesão (n. Ançã, Cantanhede, 29 de abril de 1884 —m. Lisboa, 14 de agosto de 1960)

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2017-08-12

Câmara Escura - Miguel Torga (na efeméride dos 110 anos do nascimento)

Devagar,
Hora a hora,
Dia a dia,
Como se o tempo fosse um banho de acidez,
Vou vendo com mais nitidez
O negativo da fotografia.

E o que eu sou por detrás do que pareço!
Que seguida traição desde o começo,
Em cada gesto, em cada grito,
Em cada verso!
Sincero sempre, mas obstinado
Numa sinceridade
Que vende ao mesmo preço
O direito e o avesso
Da verdade.

Dois homens num só rosto!
Uma espécie de Jano sobreposto,
Inocente,
Impotente,
E condenado
A este assombro de se ver forrado
Dum pano de negrura que desmente
A nua claridade do outro lado.

in Antologia Poética de Miguel Torga

Adolfo Correia da Rocha, que usou o pseudónimo literário de Miguel Torga, nasceu a 12 de agosto de 1907 em São Martinho da Anta, Trás-os-Montes, tendo falecido em Coimbra a 17 de janeiro de 1995.

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2017-08-11

Enquanto pasta alegre o manso gado (Lira XIX) - Tomás António Gonzaga



Enquanto pasta alegre o manso gado,
minha bela Marília, nos sentemos
à sombra deste cedro levantado.
Um pouco meditemos
na regular beleza,
que em tudo quanto vive, nos descobre
a sábia natureza.

Atende, como aquela vaca preta
o novelhinho seu dos mais separa,
e o lambe, enquanto chupa a lisa teta.
Atende mais, ó cara,
como a ruiva cadela
suporta que lhe morda o filho o corpo,
e salte em cima dela.

Repara, como cheia de ternura
entre as asas ao filho essa ave aquenta,
como aquela esgravata a terra dura,
e os seus assim sustenta;
como se encoleriza,
e salta sem receio a todo o vulto,
que junto deles pisa.

Que gosto não terá a esposa amante,
quando der ao filhinho o peito brando,
e reflectir então no seu semblante!
Quando, Marília, quando
disser consigo: É esta
de teu querido pai a mesma barba,
a mesma boca, e testa.

Que gosto não terá a mãe, que toca,
quando o tem nos seus braços, c'o dedinho
nas faces graciosas e na boca
do inocente filhinho!
Quando, Marília bela,
o tenro infante já com risos mudos
começa a conhecê-la!

Que prazer não terão os pais, ao verem
com as mães um dos filhos abraçados;
jogar outros a luta, outros correrem
nos cordeiros montados!
Que estado de ventura:
que até naquilo, que de peso serve,
inspira amor doçura!

in Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, Porto Editora

Tomás Antônio Gonzaga (Miragaia, Porto, 11 de agosto de 1744 — Ilha de Moçambique, 1810)

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2017-08-10

Se eu fosse querido - Gonçalves Dias

Se eu fosse querido dum rosto formoso,
Se um peito extremoso - pudesse encontrar,
E uns lábios macios, que expiram amores
E abrandam as dores - pudesse beijar;

A tantos encantos minh'alma rendida,
Votara-lhe a vida - que Deus me quis dar;
Constante a seu lado, seus sonhos divinos
Aos sons dos meus hinos - quisera embalar.

Depois, quando a morte viesse impiedosa
Da amante extremosa - meus dias privar,
De funda saudade minha alma rendida
De tão dolorida iria quedar.

Antônio Gonçalves Dias (nasceu no dia 10 de agosto de 1823, nos arredores de Caxias, no Maranhão. Faleceu ao regressar de uma viagem à Europa, no naufrágio do "Ville de Boulogne", já próximo do Maranhão, a 3 de novembro de 1864).

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2017-08-09

Em todas as ruas te encontro - Mário Cesariny



Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco


Mário Cesariny de Vasconcelos (n. em Lisboa a 9 de agosto de 1923; m. em Lisboa a 26 de novembro de 2006)

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2017-08-08

E TUDO ERA POSSÍVEL - Ruy Belo


Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer

in Homem de Palavra[s]
Lisboa, Editorial Presença, 1999 (5ª ed.)

Ruy de Moura Belo (n. em S. João da Ribeira, Rio Maior, em 27 de fevereiro de 1933; m. em Lisboa, 8 de agosto de 1978).

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2017-08-07

Se é assim que desejas - Rabindranath Tagore

foto: Barca e Pôr do sol

Se é assim que desejas,
se for assim do teu gosto,
cessarei de cantar!
Se com isso agitar
teu coração,
do meu olhar o triste brilho
desviarei do teu rosto...
e se eu, de súbito te assustar
no teu passeio despreocupado,
afastar-me-ei do teu lado
e tomarei outro brilho...

Se eu te embaraçar – ai de mim –
quando teceres as tuas flores,
flor encantada,
esquivar-me-ei do teu
solitário jardim
e da tua doce imagem...
E se eu tornar a água turva
e agitada,
jamais remarei a minha barca
para a tua margem...


Trad. Victor de Sá Coelho

Rabindranath Tagore ou Rabíndranáth Thákhur (रवीन्द्रनाथ ठाकुर) (b. 7 May 1861 in Calcutta, British India; d. 7 August 1941 in Calcutta, British India)

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2017-08-04

A Hora da Partida - Delfim Guimarães


Ai, a hora cruel da despedida
e as lágrimas choradas nesse instante!
Fazem mais do que lâmina cortante
os soluços que ouvimos à partida...

Hora triste, hora amarga e dolorida,
que se eterniza... e corre galopante;
momento inolvidável, cruciante,
que, num sopro, nos rouba anos de vida!

Muito custa sair a barra fora,
deixando o coração, pois, muito embora
a gente conte em breve regressar,

quem poderá prever, quando partimos,
por quanto tempo nós nos despedimos,
se porventura havemos de voltar?!


Poema extraído de «A Circulatura do Quadrado - Alguns dos Mais Belos Sonetos de Poetas cuja Mátria é a Língua Portuguesa. Introdução, coordenação e notas de António Ruivo Mouzinho. Edições Unicepe - Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto, 2004.

Delfim de Brito Monteiro Guimarães(n. no Porto a 4 de agosto de 1872, m. na Amadora a 6 de julho de 1933)

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2017-08-03

Radiografia - Políbio Gomes dos Santos

Não sei se era uma esplêndida loucura.
Porém a noite escura, àquela hora,
Veio pôr-me nos olhos
Uma super-visão de Raios X.
Tudo transparente e sombrio!:
Nas caves os criados trintanários,
Sonolentos, senis, alquebrados,
Como em pêgo profundo, no fundo dum rio,
Deitados.
E em sobrados nos altos das casas
As pessoas suspensas e presas
Nas invisíveis asas.

O clarão dos escuros e silêncios
Apunhalava as coisas indefesas
E era o meu guia.
E eu via, via tudo, entretinha-me a ver,
Aplaudindo em meus olhos
A tragédia funérea de ser.

A mulher que eu amava dormia.
E lá estava perdendo a magia
Das formas,
O mistério das coisas opacas.
Ai, eu via os seus orgãos medonhos, eu via,
Comprimidos boiando em fluidos
De estranha alquimia.

As donzelas! as puras donzelas!
- Como eram iguais seus esqueletos
E gesto de guardar a virgindade
Num halo,
Fechadas nas casas, sonhando!

E aqui, ali, além, de quando em quando
As cenas abismais,
Infiltrações letais – promiscuidade!:

Em ângulos mornos de alcovas solenes,
Dormiam, jaziam casados,
Ventrudos, coitados, casais de burgueses!:
Um respirava o ar que o outro expira,
Cantado, resfolgado,
Como o vapor em máquinas cansadas
Ou moléstias em papos de reses;
E na parede, sobre a mesa de pau-santo,
O cuco do relógio veniando
Quatro vezes.
E ó ruas, ó ruas viscosas,
Dormindo venenosas, como cobras
Digerindo!
Ó casas leprosas,
Envenenando o ar amigo meu e deles!
- O ar já gás emagrecido, manso mas cansado,
Azul e quente,
Pairando sobre as camas a gemer,
Piedosamente!
Ó gente, ...................

E lá vinha, e lá vinha a elevar-se do rio,
Um calmo doentio nevoeiro grosso!
Tão velho rio!
Cantado pelos bárbaros poetas...
Tão límpido!
Mostrando-me as enguias nas buracas
E os cadáveres inchados
De afogados,
Espetados nas estacas.

E o silêncio!
Eu e uma cidade!
Apenas o rumor de traças infernais,
A roerem humanos, ocultas, danadas,
Como caruncho em madeiras
De casas abandonadas.

Eu e uma cidade...
Que a lava da noite veio sepultar
Dentro de mim...
Esta Pompeia que me entrou plos olhos,
Com suas mil estátuas e cenas do fim...
Este burgo dos ídolos partidos e painéis
Cruéis, sumidos,
Que a minha alma ansiosa anda a escavar,
E que o loiro dinheiro dos Lords
Não pode comprar.

Políbio Gomes dos Santos (n. Ansião, 7 de Agosto de 1911 — m. Ansião, 3 de Agosto de 1939)

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2017-08-02

Estranhas Lágrimas - Félix Pacheco

lágrimas


Lágrimas... Noutras épocas verti-as.
Não tinha o olhar enxuto como agora.
Alma, dizia então comigo, chora,
Que o pranto diminui as agonias.

Ah! Quantas vezes, pelas faces frias,
Por mal do meu amor, que se ia embora,
Gota a gota rolando, elas, outrora,
Marcaram noites e marcaram dias!

Vinham do oceano d’alma imenso e fundo,
Ondas de angústia em suspiroso arranco,
Numa desesperança acerba e louca...

Nos olhos, hoje, as lágrimas estanco,
Mas rolam todas, sem que as veja o mundo,
Sob a forma de risos, pela boca!

José Félix Alves Pacheco (n. em Teresina, Piauí, Brasil, a 2 de agosto de 1879; m. no Rio de Janeiro, a 6 de dezembro de 1935

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2017-08-01

Canção da Lua Que Lava - Murilo Araújo



Lua, que lavas teus linhos,
sempre a lavar
numa lixívia de nuvens,
branca, branquinha de espuma,
e escorres tudo lá no alto
para secar;

lua que lavas teus linhos
pelos valados maninhos,
na serra onde vai nevar;

oh lua alagando o mundo
nesta espuma de cegar!

lua que lavas teus linhos
e que os enxaguas
e os pões em qualquer lugar —
nos terraços lageados,
nos velhos muros caiados,
nos laranjais do pomar
ou nos campos orvalhados
onde estão a gotejar —

lua que lavas teus linhos
até nas praias do mar —

vem, lua, e lava minha alma!

Oh lava minha alma em lágrimas,
para que Deus, sol das almas,
venha a enxugar.


Murilo Araújo (nasceu na cidade de Serro, Minas Gerais, Brasil, em 26 de outubro de 1894; m. em 1 de agosto de 1980).

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