«Mas a meio caminho voltou para trás, direita ao mar. Paulo ficou de pé no areal, a vê-la correr: primeiro chapinhando na escuma rasa e depois contra as ondas, às arrancadas, saltando e sacudindo os braços, como se o corpo, toda ela, risse.
Uma vaga mais forte desfez-se ao correr da praia, cobriu na areia os sinais das aves marinhas, arrastou alforrecas abandonadas pela maré. Eram muitas, tantas como Paulo não vira até então, espapaçadas e sem vida ao longo do areal. O vento áspero curtira-lhes os corpos, passara sobre elas, carregado de areia e de salitre, varrendo a costa contra as dunas, sem deixar por ali vestígios de pegada ou restos de alga seca que lhe resistissem.»
«Marcaste o despertador»
«Hã?»
«O despertador, Quim. Para que horas o puseste?»
«...E tudo à volta era névoa, fumo do mar rolando ao lume das águas e depois invadindo mansamente a costa deserta. Havia esse sudário fresco, quase matinal, embora, cravado no céu verde-ácido, despontasse já o brilho frio da primeira estrela do anoitecer...»
«Desculpa, mas não estou descansada. Importas-te de me passar o despertador?»
«O despertador?»
«Sim, o despertador. Com certeza que não queres que eu me levante para o ir buscar. És de força, caramba.»
«Pronto. Estás satisfeita?»
«Obrigada. Agora lê à vontade, que não te torno a incomodar. Eu não dizia? Afinal não lhe tinhas dado corda... Que horas são no teu relógio? Deixa, não faz mal. Eu regulo-o pelo meu.»
«- Mais um mergulho - pedia a rapariga. A dois passos dele sorria-lhe e puxava-o pelo braço; - Só mais um, Paulo. Não imaginas como a água está estupenda. Palavra, amor. Estupenda, estupenda, estupenda. Uma alegria tranquila iluminava-lhe o corpo. A neblina bailava em torno dela, mas era como se a não tocasse. Bem ao contrário: era como se, com a sua frescura velada, apenas despertasse a morna suavidade que se libertava da pele da rapariga. - Não, agora já começa a arrefecer - disse Paulo. - Vamo-nos vestir? Estavam de mãos dadas, vizinhos do mar e, na verdade, quase sem o verem. Havia a memória das águas na pele cintilante da jovem ou no eco discreto das ondas através da névoa; ou ainda no rastro de uma vaga mais forte que se prolongava, terra adentro, e vinha morrer aos pés deles num distante fio de espuma. E isso era o mar, todo o oceano. Mar só presença. Traço de água a brilhar por instantes num rasgão do nevoeiro. Paulo apertou mansamente a mão da companheira; - Embora? - Embora - respondeu ela. E os dois, numa arrancada, correram pelo areal, saltando poças de água, alforrecas mortas e tudo o mais, até tombarem de cansaço.» (...)
in Uma simples flor nos teus cabelos claros - Jogos de Azar - José Cardoso Pires
José Cardoso Pires, nasceu em São João do Peso, Vila de Rei, distrito de Castelo Branco a 2 de Outubro de 1925 e faleceu está para fazer dez anos, a 26 de Outubro de 1998.
Passou grande parte da sua infância e adolescência na capital, onde frequentou o Liceu Camões e foi aluno de Rómulo de Carvalho. Mais tarde ingressou no curso de Matemáticas Superiores na Faculdade de Ciências de Lisboa, que não chegou a concluir.
É um dos grandes escritores portugueses do século XX. «Não se identifica com nenhum grupo, nem se fixa em nenhum género literário, apesar de ser considerado sobretudo como um romancista. A característica mais evidente da sua não muito vasta obra (são ao todo dezoito os seus livros publicados em quase cinquenta anos de vida literária) é o facto de cada livro seu inaugurar e completar um ciclo de criação literária»*. Entre outros prémios foi-lhe atribuído o Prémio Pessoa, 1997 e no ano seguinte o Grande Prémio da Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores.
Obras: Os Caminheiros e Outros Contos (1949), Histórias de Amor (1952), O Anjo Ancorado (romance, 1958), O Render dos Heróis (teatro, 1960), Cartilha do Marialva (ensaios, 1960), Jogos de Azar (contos, 1963), O Hóspede de Job (romance, 1963), O Delfim (romance, 1968), Dinossauro Excelentíssimo (fábula, 1972), E Agora, José? (ensaios, 1977), O Burro-em-Pé (contos, 1979), Corpo-Delito. Na Sala de Espelhos (teatro, 1980), Balada da Praia dos Cães (romance, 1982), Alexandra Alpha (romance, 1987), A República dos Corvos (contos, 1988), A Cavalo no Diabo (crónicas, 1994), De Profundis, Valsa Lenta (1997) e Lisboa, Livro de Bordo (1997).
* escreveu Eunice Cabral
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