Vox Populi, Vox Dei - Alfredo da Cunha
Vozes do povo, de quem serão?
Quem lhes deu corpo? Quem deu expressão
quase dogmática
- ora singela, ora enigmática -
à sua linguagem
numas, grosseira,
noutras subtil;
nestas, oriunda de alta linhagem,
naquelas, vinda de origem vil?
Vozes do povo, serão de quem?
Tal qual no auto
do grande Gil,
De Todo o Mundo... e de Ninguém!
E quer nos lembrem o agudo Plauto
quer nos recordem o bom Platão
muitas igualam
os doutos juízos de Salomão
e, assim como este, julgam e falam.
Vozes do povo, que vozes são?
sejam sisudas, sejam burlescas
são dicções breves e pitorescas
que, em frases feitas, cristalizadas
desde idos tempos, correm espalhadas,
de boca em boca, por más e boas
bocas do mundo.
Razoar de coisas e de pessoas,
ligeiro agora, logo profundo!
São os logares selectos, uns,
Outros, comuns
de tam vulgares e repetidos
que andam nos lábios
e nos ouvidos
de toda a gente - néscios e sábios.
Ditos dispersos, que posto achasseis
versificado
em rimas fáceis,
em metros pobres,
- embora, às vezes, de pés quebrados, -
melhor conseguem suster-se em pé
que outros de engenhos raros e nobres,
Visto que até,
obras sublimes, de estros gloriosos
hão de mais prestes cair no olvido
que esses dizeres - em estilo poído
de língua arcaica - sengos e diosos!
Vozes do povo! É bem sabido
que, se umas tomam como argumento
motejo frívolo e comezinho
ao qual revestem. como indumento,
de tom escarninho,
outras dir-se-iam na transcendência
dos pensamentos,
rasgos de génio, teses de ciência,
bronzeas, solenes e lapidares
como legendas de monumentos.
Prístinas vozes que vêm de antanho!
Quantas, na ideia, bem singulares,
Quantas, na letra, de teor estranho,
se nos figuram
como de estirpe mais do que humana!
Vox Deilhes chamam... E assim perduram
por toda a idade,
qual verbo eterno que do alto emana
nos imperiosos decretos seus,
para escarnamento da humanidade!
Vozes do povo... Vozes de Deus!
in Ditames e Ditérios
Alfredo Carneiro da Cunha (Fundão, 21 de Dezembro de 1863 — Lisboa, 25 de Novembro de 1942)
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