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Nos 90 anos do desaparecimento de Roberto de Mesquita

Minha alma, donde nasce a mágoa que te invade?`
Que éden sentes perdido?
Oh! esta cheia poderosa de saudade
Sem alvo definido


ÀS GRADES DA PRISÃO

Às grades da prisão, olhos extasiados
Vêem descer o Sol sobre o mar de metal.
Na tarde de âmbar há murmúrios espalhados
Como preces da Terra à estrela vesperal...

No horizonte rutilante, a toda a vela
Passa um navio; é todo de oiro e de rubis...
Onde vais, onde vais, brilhante caravela
Do rei poeta dum quimérico país?

É triste o alcácer, com salões frios e anosos,
Como as igrejas cheios de ecos cavernosos,
Com grossas portas de mosteiro medieval.

Mas desse interior taciturno, afastado,
Duma estreita janela, olhos extasiados
Vêem descer o sol sobre o mar de metal..

Roberto Augusto de Mesquita Henriques (n. Santa Cruz das Flores, 19 de Junho de 1871 — m. Santa Cruz das Flores, 31 de Dezembro de 1923)

Ler do mesmo autor neste blog:
Spleen
Aves do Mar
Abandonadas
Universalidade II

2013-12-30

The Betrothed / A Prometida - Rudyard Kipling



"You must choose between me and your cigar."
- BREACH OF PROMISE CASE, CIRCA 1885.

Open the old cigar-box, get me a Cuba stout,
For things are running crossways, and Maggie and I are out.

We quarrelled about Havanas - we fought o'er a good cheroot,
And I knew she is exacting, and she says I am a brute.

Open the old cigar-box - let me consider a space;
In the soft blue veil of the vapour musing on Maggie's face.

Maggie is pretty to look at - Maggie's a loving lass,
But the prettiest cheeks must wrinkle, the truest of loves must pass.

There's peace in a Larranaga, there's calm in a Henry Clay;
But the best cigar in an hour is finished and thrown away -

Thrown away for another as perfect and ripe and brown -
But I could not throw away Maggie for fear o' the talk o' the town!

Maggie, my wife at fifty - grey and dour and old -
With never another Maggie to purchase for love or gold!

And the light of Days that have Been the dark of the Days that Are,
And Love's torch stinking and stale, like the butt of a dead cigar -

The butt of a dead cigar you are bound to keep in your pocket -
With never a new one to light tho' it's charred and black to the socket!

Open the old cigar-box - let me consider a while.
Here is a mild Manila - there is a wifely smile.

Which is the better portion - bondage bought with a ring,
Or a harem of dusky beauties, fifty tied in a string?

Counsellors cunning and silent - comforters true and tried,
And never a one of the fifty to sneer at a rival bride?

Thought in the early morning, solace in time of woes,
Peace in the hush of the twilight, balm ere my eyelids close,

This will the fifty give me, asking nought in return,
With only a Suttee's passion - to do their duty and burn.

This will the fifty give me. When they are spent and dead,
Five times other fifties shall be my servants instead.

The furrows of far-off Java, the isles of the Spanish Main,
When they hear my harem is empty will send me my brides again.

I will take no heed to their raiment, nor food for their mouths withal,
So long as the gulls are nesting, so long as the showers fall.

I will scent 'em with best vanilla, with tea will I temper their hides,
And the Moor and the Mormon shall envy who read of the tale of my brides.

For Maggie has written a letter to give me my choice between
The wee little whimpering Love and the great god Nick o' Teen.

And I have been servant of Love for barely a twelvemonth clear,
But I have been Priest of Cabanas a matter of seven year;

And the gloom of my bachelor days is flecked with the cheery light
Of stumps that I burned to Friendship and Pleasure and Work and Fight.

And I turn my eyes to the future that Maggie and I must prove,
But the only light on the marshes is the Will-o'-the-Wisp of Love.

Will it see me safe through my journey or leave me bogged in the mire?
Since a puff of tobacco can cloud it, shall I follow the fitful fire?

Open the old cigar-box - let me consider anew -
Old friends, and who is Maggie that I should abandon you?

A million surplus Maggies are willing to bear the yoke;
And a woman is only a woman, but a good Cigar is a Smoke.

Light me another Cuba - I hold to my first-sworn vows.
If Maggie will have no rival, I'll have no Maggie for Spouse!


Versão em Português


"Você terá que escolher entre mim e o charuto.”
CASO DE QUEBRA DE PROMESSA MATRIMONIAL, CIRCA 1885

Abram a velha charuteira, dêem-me um Cuba bem fornido;
complicaram-se as coisas, Maggie e eu nos temos desentendido.

Por causa do Havana brigamos, brigamos por um bom charuto,
e eu percebo que ela exagera, e ela então me chama de bruto.

Abram a velha charuteira; que por um instante eu sossegue,
vendo através do véu azul da fumaça o rosto de Maggie.

É bem bonita de se olhar – Maggie, uma amável jovenzinha;
mas belas faces logo murcham e até o mais puro amor definha.

Num Larranaga existe paz, num Henry Clay a calma mora;
mas o melhor charuto logo se acaba, e a gente o deita fora –

deita fora por outro, tão perfeito, e escuro, e bem curtido;
coisa que com Maggie não faço, por medo ao boato e ao alarido.

Maggie, minha esposa aos cinqüenta – grisalha, e velha, e aquele humor! –
e não poder adquirir outra nem por ouro, nem por amor!

Tornada na treva de agora a luz ardente do passado,
e como a guimba de um charuto o lume do Amor apagado –

a guimba extinta de um charuto que no bolso se há de meter,
sem que, fumado até o toco, se tenha outro para acender.

Abram a velha charuteira – deixem-me ao menos refletir.
Aqui um suave Manila, ali uma esposa a sorrir.

O que é melhor: a servidão comprada ao preço de um anel,
ou todo um harém de morenas, cinqüenta, presas a um cordel?

Hábeis e mudos conselheiros, confortadores experientes,
e nem uma só das cinqüenta para esnobar as concorrentes?

Pensamentos de manhã cedo, consolo em épocas de abrolhos,
paz no silêncio do crepúsculo, bálsamo antes que eu feche os olhos,

eis o que as cinqüenta hão de dar-me, sem nada em troca demandar,
com só esta paixão sati: cumprir seu dever e queimar.

Eis o que as cinqüenta hão de dar-me. E, quando extintas e acabadas,
cinco vezes outras cinqüenta novas servas me serão dadas.

Encostas da distante Java e ilhas hispânicas também –
hão de outra vez enviar-me noivas quando acabar o meu harém.

Não me preocupará vesti-las nem tê-las bem alimentadas,
nem quando as gaivotas aninham, nem no outono das chuvaradas.

Vou perfumá-las com baunilha, temperar com chá suas peles;
Mouro e Mórmon terão inveja ao ouvirem a história delas.

Pois Maggie escreveu numa carta que eu escolhesse meu destino
entre o pequeno Amor chorão e o grandioso deus Nico Tino.

E por menos de doze meses do Amor não fui mais que um servente,
mas Sacerdote de Cabanas fui por sete anos certamente.

Meus negros dias de solteiro são coloridos no fulgor
de troncos que queimei somente por Gozo, Amigos, Lida e Ardor.

Se me volto para o futuro que provaremos Maggie e eu,
a única luz que há sobre os pântanos é o duro Amor e o jugo seu.

Terei uma jornada livre, ou nesses pântanos me afogo?
Se o fumo de um charuto o embaça, devo seguir o incerto fogo?

Abram a velha charuteira – deixem-me pensar outra vez;
velhos amigos, quem é Maggie para que eu despreze vocês?

Um bom milhão de Maggies extras aí estão para levar o andor.
Uma mulher é uma mulher, mas um Charuto é puro Odor.

Acendam-me mais outro Cuba – que fiel aos meus votos serei.
Se Maggie não vai ter rivais, nenhuma Maggie esposarei.


(Tradução de Renato Suttana daqui)

Joseph Rudyard Kipling (Bombaim, India, 30 Dec. 1865 - London 18 Jan. 1936)

Ler do mesmo autor, neste blog: If / Se

2013-12-28

Meu Coração - Castorina Lobo de São Thiago

Uma por uma as folhas vão caindo,
A desnudar essa árvore, que deu flores,
Deu sombra e sob os ramos protetores,
Abrigou frutos de sabor infindo!

Vai se acabando o Outono. O Inverno chega.
É patente o prenúncio das nevadas...
Feias parcas se abatem, em revoadas,
Sobre a rama, onde o mocho se aconchega.

E o velho tronco anoso e solitário,
Já não tem a beleza, que foi sua
Cedendo ao templo, indômito, arbitrário.

Mas não é realmente o que parece...
A vida está no cerne e nele estua....
Assim, meu coração...Nunca envelhece...


Castorina Lobo de São Thiago (Tubarão, Santa Catarina, 28 de dezembro de 1884 — Blumenau, Santa Catarina, 24 de agosto de 1974

Vicente Campinas

António Vicente Campinas nasceu a 28 de Dezembro de 1910 em Vila Nova de Cacela, concelho de Vila Real de Santo António; faleceu em 3 de Novembro de 1998.

É famoso o seu poema “Cantar Alentejano”, musicado por José Afonso.


2013-12-27

Poema X de Uma Noite em Duíno (1990) - Domingos de Oliveira

- a lentidão dos anos
deixa-me
cada vez mais longe
o teu silêncio

mas sofro ainda
qual mensageiro cego
num labirinto sendas
de deserto em Beja

por onde poderiauma última vez
ver-te deixares-me
para sempre? -

in DEVASTAÇÕES E OUTROS FASTOS poemas escolhidos (pág. 42). Edição da UNICEPE, Porto, 2010-11-19

Domingos de Oliveira nasceu em Silvalde, Espinho, em 27 de Dezembro de 1936.

Ler do mesmo autor, neste blog:
Ao Luar
Soube de ti na primavera

2013-12-26

Cruel - Vespesiano Ramos

Ah, se as dores que eu sinto ela sentisse,
se as lágrimas que eu choro ela chorasse;
talvez nunca um momento me negasse
tudo que eu desejasse e lhe pedisse!

Talvez a todo instante consentisse
minha boca beijar a sua face,
se o caminho que eu tomo ela tomasse,
se o calvário que eu subo ela subisse!

Se o desejo que eu tenho ela tivesse,
se os meus sonhos de amor ela sonhasse,
aos meus rogos talvez não se opusesse!

Talvez nunca negasse o que eu pedisse,
se as lágrimas que eu choro ela chorasse
e se as dores que eu sinto ela sentisse!...

Joaquim Vespasiano Ramos (n. em Caxias, Maranhão a 13 Ago. 1884; m. em Porto Velho, Rondônia a 26 Dez. 1916)

Ler do mesmo poeta, neste blog:
Soneto da Volta
Samaritana
Ânsia Maldita

2013-12-25

Suave Amargor - Hermes Fontes

Sofrer é o menos, minha suave Amiga;
todos têm sua cruz ou seu cajado
— cruz de dor, ou cajado de dever...

Este é sereno; aquele se afadiga:
um, só pelo desejo contrariado,
outro, por esperar, sem nunca obter.

Tudo muda, dirás... Mas, certamente,
não muda a luz: — vem sempre do Nascente
para o mesmo calvário de Sol-Pôr!

Sofrer é o menos... A dificuldade
é sofrer sem protesto e sem rancor;
é morrer sem tristeza e sem saudade:

Morrer, de olhos em Deus, devagarzinho,
ciciando uma palavra de carinho
aos que vivem sem fé e sem amor...


Hermes Floro Bartolomeu Martins de Araújo Fontes (nasceu em Boquim, Sergipe a 28 de agosto de 1888 – m. Rio de Janeiro (suicidio) a 25 de dezembro de 1930).

Ler do mesmo autor:
Anoitecer na Praia
A Cigarra
Pouco acima Daquela Alvíssima Coluna
Jogos de Sombras;
Mãe;
Solenemente;
Diário de Um Sonho(IV)

2013-12-24

Feliz Natal / Merry Christmas / Joyeux Nöel / Fröhliche Weinachten

Feliz Natal
Sretan Bozic
с Рождеством
Merry Christmas
Happy Christmas
Gajan Kristnaskon
Buone Feste Natalizie
Fröhliche Weihnachten
Καλά Χριστούγεννα
Sarbatori Fericite
Crăciun fericit
Feliz Navidad
Joyeux Nöel
God Jul

Dia de Natal - António Gedeão

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros — coitadinhos — nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra — louvado seja o Senhor! — o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

Extraído de Cem Poemas Portugueses sobre a INfância, selecção, organização e introdução de José Fanha e José Jorge Letria. Terramar, 2004

António Gedeão (pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho, n. em Lisboa a 24 Nov 1906; m. 19 Fev 1997)

Ler do mesmo autor:
Fala do Homem Nascido
Impressão Digital
Poema do Amor
Poema das Coisas Belas
Poema das Coisas
Poema do Gato
A um ti que eu inventei
Tempo de Poesia
Tudo é foi
Lição sobre a água
Poema da auto-estrada
Rosa branca ao peito
Pedra filosofal
Lágrima de preta
Minha Aldeia

2013-12-23

Nos Semáforos da Rua de Santa Catarina - Jorge de Sousa Braga

Ao menos os teus olhos
permanecem verdes
todo o ano

in Plano para Salvar Veneza, 1981

Jorge de Sousa Braga nasceu em Cervães, Vila Verde a 23 de dezembro de 1957


Ler do mesmo autor, neste blog: Poema de Amor; Escalada; Sono de Primavera

2013-12-22

Narciso - José Régio

Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!

Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico bem ouço!
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia!

Assim me desejei nestas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho:

Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
...Lá no fundo do poço em que me espelho!


(Biografia, 1929)

José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira (n. Vila do Conde 17 Set 1901; m. em Vila do Conde 22 Dez 1969)

Ler do mesmo autor neste blog:
Adeus
Soneto de Amor

2013-12-20

Literatura de cordel: A Chegada da Prostituta no Céu - J. Borges



Do rosto da poesia
eu tirei o santo véu
e pedi licença a ela
para tirar o chapéu
e escrever a chegada
da prostituta no céu

Sabemos que a prostituta
é também um ser humano
que por uma iludição
fraquesa ou desengano
o seu viver é volúvel
sempre abraça a o engano

Vive metida em orgia
e cheia de vaidade
é raro uma que trabalha
e usa honestidade
por isso fica odiada
perante a sociedade

Todas as religiões
pra ela escala uma pena
se o homem lhe abraça
a mulher casada condena
mas sabemos que Jesus
perdoou a Madalena

Falar sobre prostituta
é um caso muito sério
que é um ser sofredor
sua vida é de mistério
e para sobreviver
sempre usa o adultério

Perante a sociedade
ela é marginalizada
existe umas mais calmas
e outras mais depravadas
e quem tem mais ódio delas
é a própria mulher casada

Ela vive aqui na terra
enfrentando um sacrifício
se vende para os homens
muitas se entrega a o vício
enquanto nova se estraga
e faz da miséria ofício

Aconteceu que uma delas
morreu em um certo dia
e pela vida que levava
o povo sempre dizia
ela vai para o inferno
pêlos atos que fazia

Assim que foi enterrada
a alma se destinou
querendo ir ao céu
mas primeiro ela passou
pelo portão do inferno
e o diabo lhe acompanhou

Saiu correndo atrás dela
dizendo vem cá bichinha,
um bocado como tu
faz tempo que aqui não vinha
e eu estou gamadão
nesta garota novinha

Mas na carreira que iam
o diabo e a prostituta
passaram no purgatório
e no sindicato das puta
e lá no portão do céu
foi que começou a luta

Porque já se encontrava
uma mulher bem casada
arengando com o marido
que morreu de uma virada
e queria entrar no céu
com uma faca afiada

Essa mulher que morreu
era muito ciumenta
quando viu a prostituta
entortou o pau da venta
e disse: vou te furá
foi uma luta cinzenta

Furou a mulher na perna
o marido puxou no braço
o diabo pegou também
dizendo já sei que faço
vou levar mesmo sem perna
mas levo o melhor pedaço

Nessa zuada São Pedro
se apresentou no portão
e disse: não tem lugar
pra mulher com bestalhão
só tem pra mulher sozinha
e foi logo estirando a mão

E pegou logo no braço
da mulherzinha assanhada
disse: você pode entrar
aqui não lhe falta nada
vai dormir na minha cama
até alta madrugada

Mas atrás dela já vinha
outro cara de complô
e disse: eu entro também
pode dá o estupô
porque na terra eu era
dessa mulher gigolô

São Pedro lhe respondeu
mas aqui é diferente
sou o chaveiro do céu
e aqui neste batente
só entra quem eu quiser
que sou velho, mas sou quente

Disse: vocês lá na terra
fazem tudo quanto quer
maltrata as prostitutas
e usam como quiser
mas aqui eu trato bem
a todos que aqui vier

E entrou de braço dado
com a mulherzinha singela
com uma perna furada
mas São Pedro tratou dela
e deu apoio a prostituta
que ninguém bulia nela

E com três dias depois
São Pedro veio lá fora
o casal estava esperando
o diabo foi embora
e levou o gigolô
para fura-lo de espora

Depois disso a prostituta
foi fazendo o que bem quis
botou galha em São Pedro
namorou com São Luiz
tirou sarro com São Bento
no beco do chafariz

Uma noite de São João
dançou com São Expedito
levou xecho de São Brás
namorou com São Carlito
e no fim da festa foi
dormir com São Benedito

E não quis Santo Oscar
por ser barbudo demais
deixou ele na espera
e foi dormir com São Brás
Santo Oscar quando acordou
falou alto e bem voraz

Disse ele: hoje mesmo
antes de tomar café
eu vou contar a Jesus
essa puta como é
depois da sua chegada
o céu virou cabaré

Ele foi disse a Jesus
que ela era depravada
Jesus respondeu calmo
deixa essa pobre coitada
se na terra sofreu tanto
como vai ser castigada?

Na terra não teve apoio
em meio a sociedade
levou a vida sofrendo
e fazendo caridade
aceitando preto e branco
que tinha necessidade

Mesmo com as prostitutas
vive cheio de tarado
correndo atrás das moças
e mulher de homem casado
se não houvesse prostituta
qual seria o resultado?

Ele ficou cabisbaixo
e respondeu: muito bem
se o sol nasce pra todos
a mulher nasceu também
se um dia eu pegar ela
trituro e deixo um xerém

Aí ficou sem efeito
a denuncia de Santo Oscar
pediu perdão a Jesus
e voltou pra seu lugar
e encontrou São Mariano
num sarro de admirar

Aqui termino o livrinho
em favor da prostituta
para vender a os homens
o rapaz, o corno e puta
pessoas de baixo porte
e a os de boa conduta.

J. Borges

José Francisco Borges nasceu em 20 de dezembro de 1935, em Bezerros, Pernambuco

2013-12-19

Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada - Manoel de Barros


I
Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

II
Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição dos poetas.

III
Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.

Baratas passeiam nas formas de bolo...

A casa tem um dono em letras.

Agora ele está pensando -

no silêncio Iíquido
com que as águas escurecem as pedras...

Um tordo avisou que é março.

IV
Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao
fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas pedras negras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!

V
Escrever nem uma coisa Nem outra -
A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

VI
No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.

VII
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.

VIII
Nas Metamorfoses, em 240 fábulas,
Ovídio mostra seres humanos transformados
em pedras vegetais bichos coisas
Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval,
pedral, etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural

- Que os poetas aprenderiam -
desde que voltassem às crianças que foram
às rãs que foram
às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar
a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.

IX
Eu sou o medo da lucidez
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.
Peguei umas idéias com as mãos - como a peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por versos.
Aquele arame do horizonte
Que separava o morro do céu estava rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases.
Uma descor
Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liquidamente ali.

in O Guardador de Águas

Manoel Wenceslau Leite de Barros (Cuiabá, 19 de dezembro de 1916)

2013-12-18

Mulher - José Rodrigues de Carvalho

A Woman for Gods
Paul Klee (n. Münchenbuchsee, 18 de dezembro de 1879 
m.  Muralto, 29 de junho de 1940)


A sábia natureza cogitando
Da forma de gerar-te, oh ser divino,
Parece que ficara em desatino,
Buscando modelar-te; eis senão quando

A mente criadora se ilumina;
Façamo-la de luz e do rumor
Da vaga o coração; a rósea cor
Se extraia de uma tela matutina

Por isso que na chama de um olhar
Sentimos nosso peito se abrazar,
Na louca adoração de tais encantos...

Por isso é que a mulher conforme a vaga
Nervosa de paixão, sorrindo afaga,
E varia em seu amor, desfaz-se em prantos.

Soneto publicado pelo Jornal Estado da Paraíba em 04/12/1891 (aqui com a grafia livremente atualizada).

José Rodrigues de Carvalho (Alagoinha, Paraíba, 18 de dezembro de 1867 — Recife, Pernambuco,20 de janeiro de 1935)

2013-12-17

Musical suggestion of the day: Para os braços da minhã mãe - Pedro Abrunhosa (e Camané)

Numa época em que infelizmente são mais os que partem... «quero voltar para os braços da minha mãe»!

Erico Veríssimo e o Tempo...


 O tempo faz a gente esquecer. Há pessoas que esquecem depressa. 
Outras apenas fingem que não se lembram mais

Se me pedissem para sugerir um símbolo gráfico para a idéia de Tempo, eu indicaria sem hesitação a imagem duma oliveira.
Por quê? Talvez por causa de suas conotações bíblicas, pelo aspecto sofrido de seus troncos e galhos e por tudo quanto o óleo que o fruto dessa árvore produz tem a ver com a vida e a morte: o óleo do batismo, o óleo da extrema-unção, enfim, o óleo que mantém acesas as lâmpadas, não só a dos templos, mas todas as lâmpadas do mundo que iluminam a noite dos homens.

in Solo de Clarineta

Érico Lopes Veríssimo (Cruz Alta, Rio Grande do Sul, 17 de dezembro de 1905 — Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 28 de novembro de 1975)

2013-12-16

Baladas Românticas - Verde... - Olavo Bilac

Como era verde este caminho!
Que calmo o céu! que verde o mar!
E, entre festões, de ninho em ninho,
A Primavera a gorjear!...
Inda me exalta, como um vinho,
Esta fatal recordação!
Secou a flor, ficou o espinho...
Como me pesa a solidão!

Órfão de amor e de carinho,
Órfão da luz do teu olhar,
- Verde também, verde-marinho,
Que eu nunca mais hei de olvidar!
Sob a camisa, alva de linho,
Te palpitava o coração...
Ai! coração! peno e definho,
Longe de ti, na solidão!

Oh! tu, mais branca do que o arminho,
Mais pálida do que o luar!
- Da sepultura me avizinho,
Sempre que volto a este lugar...
E digo a cada passarinho:
"Não cantes mais! que essa canção
Vem me lembrar que estou sozinho,
No exílio desta solidão!"

No teu jardim, que desalinho!
Que falta faz a tua mão!
Como inda é verde este caminho...
Mas como o afeia a solidão!


Olavo Bilac, in "Poesias"

Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (nasceu no Rio de Janeiro a 16 de Dezembro de 1865 e morreu na mesma cidade a 28 de Dezembro de 1918).


Neste blog pode encontrar do mesmo autor, mais os seguintes poemas:
Delírio
Vita Nuova
Por Estas Noites...
Nel Mezzo del Camin
Por tanto tempo
Um beijo
Ao coração que sofre
Como Quisesse Livre Ser

Musical suggestion of the day: Mariza - Ó Gente da Minha Terra



Mariza, em bom rigor, Marisa dos Reis Nunes nasceu a 16 de dezembro de 1973, na então Lourenço Marques, atual Maputo, Moçambique.

2013-12-14

Poema da simples alegria - Odylo Costa Filho

A alegria estava do lado de dentro da casca das
árvores
E subiu na manhã
A alegria me trouxe um ramo claro de acácias
Boiando numa cumbuca partida de mel.
A alegria me trouxe para perto do mar
E eu mergulhei a cabeça nos tanques da
meninice.
Onde estais, arapongas, que vos ouço e não
vejo?
Estais é no fundo do mar.
Estais é nas casas dos morros.
Estais é no ar.

Odylo Costa, Filho nasceu em São Luís do Maranhão, em 14 de dezembro de 1914 - faleceu no Rio de Janeiro, a 19 de agosto de 1979)

ESPERANÇA E TRISTEZA - Teixeira de Pascoaes

Minha tristeza é pior que a tua dor.
Um dia, no teu ventre sentirás
Reencarnar para o mundo o teu amor:
A mesma alma, o mesmo olhar… verás!…

Eu sei que há de voltar; e assim terás
A alegria primeira, ainda maior…
E então, de novo, alegre ficarás;
Será primeiro o teu segundo amor!

Mas eu que, antes do tempo, já declino,
Quem sabe se verei o teu Menino,
Numa idade em que possa compreender?

E partirei talvez sem lhe deixar,
Na memória, esse interno e fundo olhar,
A comovida imagem do meu ser…

in Elegias, 1912

Na Dedicatória do livro, de onde se extraiu o poema acima, o autor escreve:

Este pequeno livro é para ti,
Minha irmã. Has de lê-lo com amor,
Pois nele encontrarás o que sofri
E uma sombra talvez da tua dor.
E nele, embora em nevoa, encontrarás
A Imagem de teu Filho…
Ó minha irmã,
Sei que és a campa viva onde ele jaz;
Sei que este livro é cinza, poeira vã
Que eu espalho em redor da tua cruz…
Mas ante a negra dor que me tortura,
Quiz vingar-me da Morte, e ergui á luz,
Cantando, este meu calix de amargura.

Teixeira de Pascoaes (Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos) nasceu em 8 Nov 1877 (*) em Amarante; m. em 14 Dez. 1952.

(*) Conforme assento oficial de nascimento; de algumas fontes biográficas consta a data de 2 de novembro

Ler também do mesmo autor, no Nothingandall:
Ao Crespúsculo
Além de mim
O Poeta
A sombra do Tâmega;
Canção da Névoa
À Minha Musa
A Sombra da Vida (excerto)
Elegia do Amor;
Quem és tu? De onde vens?...

2013-12-13

O LEQUE DE MARFIM - Pereira de Sousa

Ela estava bonita a enlouquecer a gente!
Viva, fresca, feliz... gostei de vê-la assim!
Da música ao murmúrio estremecia ardente
E, rindo, machucava o leque de marfim.

Seus olhos eram negros, veludosos, puros...
Dois abismos! Dois céus! Fitei-os a tremer!
Costumado a trilhar caminhos sempre escuros,
Tenho medo da luz... Meu Deus, eu não quis ver.

Mas ela fascinava... Era um olhar, mais nada...
Rebelde, o coração nessa hora me traiu!
Aos dedos dessa virgem a ânfora sagrada
Entornando perfume à luz do sol se abriu.

Encostei-me ao piano. A chácara viçosa
Entoava das flores lânguida canção.
Eu cismava... - sei lá! - no céu, no mar, na rosa...
E minh'alma se foi nas asas da paixão.

Bem como o viajante em regiões polares
Que recorda chorando o seu torrão natal,
E avista de repente, incendiando os mares,
O divino esplendor da aurora boreal,

Assim eu triste, só, sem sombra d'esperança,
Dos gelos da descrença aonde vim parar
Sondei aquele riso! Amei essa criança,
Foi-me aurora de amor o negrejante olhar.

Brilhe embora uma vez... Banhou-me a luz divina
Vale uma eternidade um dia sempre assim...
Sempre hei de me lembrar da cândida menina
Que rindo machucava o leque de marfim.


Pedro Luís Pereira de Sousa nasceu em Araruama, Rio de Janeiro, a 13 de Dezembro de 1839 e faleceu em Bananal, São Paulo, a 16 de Julho de 1884.

2013-12-12

Realidade - Alberto de Serpa

Há uma realidade aparente
perigosa. É necessário
saber o fundo e o fim
daquilo com que jogamos
na vida.

Ninguém se deixe levar
pelas ordens dos sentidos!
Eles são como os insectos
que uma luz chama e consome.

Vêde!
O mar deslumbra os nossos olhos
e nas suas ondas está a morte...

O amor é atracção contínua
e no fim do amor é o cansaço...


Alberto de Serpa Esteves de Oliveira (nasceu no Porto a 12 de Dezembro de 1906 - m. na mesma cidade a 8 de Outubro de 1992)

in «Varanda»

Ler do mesmo autor, neste blog:
Interferência
Amores Infelizes
Incerteza
Um Jovem Camarada
Poema III
Névoa

2013-12-11

O rio divide-te... - Manuel Gusmão

O rio divide-te entre
as margens montanhosas
pelas pedras
que saltando
vais de
onde vens
rosto de quem
uma borboleta
brilha na claridade
do súbito assombro.

[in Pequeno Tratado das Figuras, Assírio & Alvim, 2013]

MANUEL GUSMÃO nasceu em Évora a 11 de dezembro de 1945

Ler do mesmo autor, no Nothingandall:
Já ali não estavas
As Claras Imagens
A Terceira Mão
A Velocidade da Luz (excerto)

2013-12-10

Lúcida em excesso - Clarice Linspector

Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.


Extraído de Aprendendo a viver, Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004

Clarice Lispector (nascida Haia Lispector em Chechelnyk, Ucrânia a 10 de dezembro de 1920 — m. Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1977)

Ler da mesma autoria, neste blog:
Meu Deus... me dê coragem
Mas Há a Vida
Amor à Terra

2013-12-09

NÃO ÉS TU - Almeida Garrett

Era assim, tinha esse olhar,
A mesma graça, o mesmo ar,
Corava da mesma cor,
Aquela visão que eu vi
Quando eu sonhava de amor,
Quando em sonhos me perdi.

Toda assim; o porte altivo,
O semblante pensativo,
E uma suave tristeza
Que por toda ela descia
Como um véu que lhe envolvia,
Que lhe adoçava a beleza.

Era assim; o seu falar,
Ingénuo e quase vulgar,
Tinha o poder da razão
Que penetra, não seduz;
Não era fogo, era luz
Que mandava ao coração.

Nos olhos tinha esse lume,
No seio o mesmo perfume,
Um cheiro a rosas celestes,
Rosas brancas, puras, finas,
Viçosas como boninas,
Singelas sem ser agrestes.

Mas não és tu...ai! não és:
Toda a ilusão se desfez.
Não és aquela que eu vi,
Não és a mesma visão,
Que essa tinha coração,
Tinha, que eu bem lho senti.


(Folhas Caídas 1853)

Extraído de Poemas Portugueses, Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, Porto Editora

João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett (n. no Porto a 4 de Fev. 1799; m. em Lisboa 9 Dez. 1854)

Ler do mesmo autor:
Não Te Amo
A Rosa - Um Suspiro
Os Meus Desejos
Seus Olhos
Este Inferno de Amar
Rosa sem Espinhos
Destino

2013-12-08

O Nosso Livro - Florbela Espanca

Livro do meu amor, do teu amor,
Livro do nosso amor, do nosso peito…
Abre-lhe as folhas devagar, com jeito,
Como se fossem pétalas de flor.

Olha que eu outro já não sei compor
Mais santamente triste, mais perfeito
Não esfolhes os lírios com que é feito
Que outros não tenho em meu jardim de dor!

Livro de mais ninguém! Só meu! Só teu!
Num sorriso tu dizes e digo eu:
Versos só nossos mas que lindos sois!

Ah, meu Amor! Mas quanta, quanta gente
Dirá, fechando o livro docemente:
"Versos só nossos, só de nós os dois!…"


Florbela Espanca (n. Vila Viçosa, 8 Dez. 1894; m. Matosinhos em 8 Dez. 1930)

Ler neste blog da mesma autora:
Horas Rubras
Tarde de Mais
Ser poeta é
À Morte
Amar!
Soror Saudade
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha
Cantigas leva-as o vento

2013-12-06

Símbolo d'Arte - Félix Pacheco

Foto: Crisantemos Roxos

Se o meu verso não fora o agonizar de um lírio,
E o suave funeral de um crisântemo roxo,
Diluindo-se, murchando, à vaga luz de um círio,
Entre o planger de um sino e o gargalhar de um mocho;

Se, essas flores do mal, em pleno desabrocho,
Eu não sentira em mim, num êxtase e em delírio,
Meu orgulho de rei julgara vesgo e frouxo,
Pois a glória de um sol não vale esse martírio.

Se, na terra que piso, algum prêmio ambiciono,
É o deserto, a cabala, o claustro, a esfinge, o outono,
O calmo encanto da noite e a augusta paz da morte...

E o meu símbolo d'arte, o ideal que me fascina,
É a tristeza a florir a graça feminina,
Como um farol pressago a iluminar o norte!


poema extraído daqui

José Félix Alves Pacheco (n. em Teresina a 2 Ago. 1879; m. no Rio de Janeiro a 6 Dez. 1935)

Ler do mesmo autor Estranhas Lágrimas; Visita Infalível

2013-12-05

Semente do Deserto - Humberto de Campos

No alto sertão da minha terra
Cai, misteriosa, uma semente
Que a outras sementes move guerra.

onde ela nasce, de repente,
— Seara de mão cruel e ignota —
A relva murcha, suavemente.

E nas planícies onde brota,
E onde nem sempre é conhecida,
Toda a campina se desbota...

(Semente bárbara e remota,
Quem te semeou na minha vida?)


Humberto de Campos Veras (n. em Miritiba, Maranhão, 25 de outubro de 1886 — m. no Rio de Janeiro, 5 de dezembro de 1934)

Ler neste blog, do mesmo autor:



2013-12-04

INCONTENTAMENTO - Filinto de Almeida

Viste que tudo foi tempo perdido
E todo emprego foi mal empregado...
Mas foste - Poeta em vida desgraçado -
Pelo teu próprio génio redimido.

Eu, que não posso a ti ser comparado,
Nem por tantas desgraças fui ferido,
Por infortúnios julgo-me oprimido
E não ando contente com o meu fado.

Incontentável trovador, que aspira
A erguer a grande altura a voz da lira
E só lhe arranca os sons tíbios e roucos,

Sem que o poder do génio me redima,
Vou gemendo sem brilho, rima a rima,
Mágoas da vida - que se extingue aos poucos.

Francisco Filinto de Almeida (n. no Porto em 4 Dez. 1857; m. no Rio de Janeiro, RJ, em 28 Jan. 1945).

Ler do mesmo autor:
Amor e Razão
Chama da Vida
Misteriosa
Funesta
Último Apelo

2013-12-03

A Minha Terra - Cândido Guerreiro

Minha terra embalada pelas ondas,
Lindo país de moiras encantadas,
Onde o amor tece lendas e onde as fadas
Em castelos de lua dançam rondas…

Oh meu Algarve, quero que me escondas…
Que na treva da morte haja alvoradas!
Hei de sonhar com moiras encantadas,
Se eu dormir embalado pelas ondas…

Quando o sol emergir de trás da serra,
Sempre será o sol da minha terra
A fecundar-me o chão da sepultura…

Ao pé dos meus, na minha aldeia querida,
A morte será quase uma ventura,
A morte será quase como a vida…


Francisco Xavier Cândido Guerreiro (nasceu em Alte no dia 3 de Dezembro de 1871; faleceu em Lisboa, no dia 11 de Abril de 1953).

Ler do mesmo autor, neste blog:
3-XII-1871
Do Meu Pequeno Quarto de Estudante
Porque Nasci ao Pé de Quatro Montes
A Minha Terra
HOMO

2013-12-02

Apagou-se, por fim, o incerto lume ... - Alfredo Guisado

Lume imagem daqui

Apagou-se, por fim, o incerto lume,
que, em volta do meu ser, ainda ardia,
e o velho alfange, de inquietante gume,
cortou o voo que meu sonho erguia.

Apagou-se, por fim, o lume incerto…
e fiquei-me entre as urzes, hesitante,
no local que pr’a o além era o mais perto
e pr’a voltar a mim o mais distante.

Abandonada, então, essa charneca,
vestida de silêncio, árida e seca,
rodeou-me a minha alma sonhadora.

Afastei-me. Acabei por me perder:
sem poder atingir o que quis ser
e sem poder voltar ao que já fora.


Alfredo Pedro de Meneses Guisado nasceu a 30 de Outubro de 1891 em Lisboa, onde faleceu a 2 de Dezembro de 1975. De ascendência galega, completou o curso de Direito, em 1921, na sua cidade natal, mas nunca exerceu a advocacia, dedicando-se antes ao jornalismo e à intervenção cívica: deputado do Partido Republicano Português, chegou a ser governador civil substituto e director-adjunto do diário «República». Colaborador da revista «Orpheu», foi um poeta paúlico e sensacionista, mais afim de Sá-Carneiro do que de Pessoa. Bilingue, tanto escrevia em português («Distância», 1914) como em galego («Xente d' Aldea», 1921) e ora assinava Alfredo Guisado ora Pedro de Meneses.

Soneto e nota biobibliográfica extraídos de «A Circulatura do Quadrado - Alguns dos Mais Belos Sonetos de Poetas cuja Mátria é a Língua Portuguesa. Introdução, coordenação e notas de António Ruivo Mouzinho. Edições Unicepe - Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto, 2004.

Recordar
Outrora
O Baloiço
Um Poema de "Elogio da Desconhecida"
As Exéquias da Princesa II A Princesa a Seus Lábios Durante a Morte

2013-12-01

ENQUANTO SE ESCREVE - Jacob Pinheiro Goldberg (na passagem do 80º aniversário)

Enquanto se escreve
Alguém procura
um assalto na televisão
e um frio entardecer
empalidece.

uma linha de chumbo se esgota
e um aluno reprovado se arrola.

Um borrifo de água suja percorre o cimento armado
e um viva de aniversário se comemora.
O agonizante geme
e um recém-nascido limpa sua capa esverdeada.

Enquanto se escreve
uma cicatriz reabre seu ferimento
e uma viola plange
a sua rústica mensagem.

Um homem trai
e é traído.
Um berço se desfaz e uma coroa se arroja,
um eu se tinge e um teu marrom se constrói,
enquanto se escreve.

Na suave mentira da pena que se vende,
da pena que se compra,
dum sentido que se afirma,
da alma que viveu um dia.

Enquanto se escreve,
uma suave ilusão se apaga,
da final trama que se
conspira.


in Tempo Exilado

(JPG, In Tempo Exilado, 1968) Enquanto se escreve, tantas coisas ...

Jacob Pinheiro Goldberg nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais a 1 de dezembro de 1933