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2012-06-30

Vivo na esperança de um gesto - Reinaldo Ferreira

Vivo na esperança de um gesto
Que hás-de fazer.
Gesto, claro, é maneira de dizer,
Pois o que importa é o resto
Que esse gesto tem de ter.
Tem que ter sinceridade
Sem parecer premeditado;
E tem que ser convincente,
Mas de maneira diferente
Do discurso preparado.
Sem me alargar, não resisto
À tentação de dizer
Que o gesto não é só isto...
Quando tu, em confusão,
Sabendo que estou à espera,
Me mostras que só hesitas
Por não saber começar,
Que tentações de falar!
Porque enfim, como adivinhas,
Esse gesto eu sei qual é,
Mas se o disser, já não é...

Reinaldo Edgar de Azevedo e Silva Ferreira (n. em Barcelona, a 20 de Março de 1922; m. em Moçambique a 30 de Junho de 1959).
Duma outra infância inventada
Eu, Rosie, eu se falasse eu dir-te-ia
Quem dorme à noite comigo

Meu Quase Sexto Sentido
Uma Casa Portuguesa
Passemos Tu e Eu Devagarinho

POETAR É PRECISO - Raimundo Zurel

Ser poeta às vezes é engraçado;
é quando a gente pensa estar pardo
e vai viver apenas o dia a dia
e a singeleza de um beija-flor
ou a criança na rua, sem amor
nos faz ressuscitar a poesia.
E quando a gente pensa em Drummond,
que, além de ser poeta, era o BOM,
que fez a poesia ser linda,
a gente ainda insiste em ser poeta
e não desiste de alcançar a meta
alcançada por Elisa Lucinda.
Quando a gente pensa que há o amor,
mas que também ainda existe a dor,
ainda existe o triste preconceito,
então percebe que a poesia
tem que lutar, ainda, dia a dia,
pelo que é certo, pelo que é direito.
Algumas vezes faço um poemeto
bobo, outras vezes um soneto
obedecendo às regras da gramática.
De repente eu faço versos livres,
não metrifico, não rimo,
apenas sigo o ritmo,
deixo fluir a inspiração.
Estão vendo? Pelo menos no momento
não consigo palavras pra rimar
com a palavra gramática;
a não ser que eu diga
que sempre fui bom em português.
Em história, em inglês, em francês
E ruim em matemática.
Caramba! Consegui!
Mas se não conseguisse, não desistiria.
ainda assim, pra mim, o que eu faço
o tempo todo, todo dia, é pura poesia.
Por isso, continuo com amor
a fazer versos bons ou sem valor,
porém que fazem a minha alegria;
não sei se vale a pena, se há razão,
mas enquanto bater meu coração,
eu vou fazendo a minha poesia.
Eu vou fazendo a minha poesia,
vivendo a todo instante essa magia
de transformar a dor em um sorriso.
E faço isso porque simplesmente
não consigo tirar da minha mente
que, com certeza, poetar é preciso.

Raimundo Zurel Correia Borges, nasceu em 30 de junho de 1937 em Aracajú-SE, e faleceu em 25 de janeiro de 2011

2012-06-29

Soneto: Dou-te esperanças que não tenho... - Clodoaldo Freitas

Nota do webmaster:
 Soneto inspirado pela situação de doença do filho Lucídio de Freitas
 (1894-1921), padecendo de  tuberculose no que seria o leito da morte.

Dou-te esperanças que não tenho, e ponho
Nessa doce ilusão minha ventura...
Mártir do amor de pai, quanta amargura
Me punge ao despertar de cada sonho!

Eu nunca me postei ante os altares
Nem jamais invoquei de Deus o nome;
Vendo entretanto o mal que te consome,
Ergo, contrito, ao céu tristes olhares!

Bem sei que as leis fatais da natureza
Não se amolgam jamais ao nosso pranto,
Não têm jamais da nossa dor piedade!

Na agonia mortal dessa certeza,
Contemplo a definhar, cheio de espanto,
Gênio, glória, beleza e mocidade!

Extraído daqui

Clodoaldo Severo Conrado Freitas nasceu em 7 de Setembro de 1855, em Oeiras, Piauí – m. em Teresina, Piauí, a 29 de junho 1924)

Zingarella - Afonso Schmidt

Certa noite, na Itália, quando eu vinha
para meu quarto, achei-a junto à porta;
era tão bela, mas tão pobrezinha!
De sono e frio estava quase morta.


Ela, pálida e franzina,
eu, de sobretudo roto:
— Buona sera, signorina!
— Buona sera, giovanoto!


Ofereci-lhe o quarto de estudante,
de minha estreita cama fiz a sua,
e, enquanto ela dormia, palpitante,
eu vagava, sem teto, pela rua.


De manhã, voltando à casa,
perguntei o nome dela:
- Como ti chiami, regazza?
-Io mi chiamo Zingarella.


Depois... Eu tinha vinte e três janeiros,
ela contava quinze primaveras.
Eram tão juntos nossos travesseiros...
Veio a paixão. Amamo-nos deveras...


Foi o quadro mais risonho
desta vida fugidia:
— Zingarella, sei mio sogno!
— E tu sei la vita mia!


Mas, um dia, ao voltar do meu estudo,
cheio de mágoas, de ânsias e de frio,
não encontrei seus olhos de veludo:
o quarto estava gélido e vazio.


Grito embalde o nome dela,
Numa tristeza infinita:
— Dove sei, o Zingarella?
— Dove sei, o mia vita?


E a minha vida prosseguiu inglória...
Fiz coisas de rapaz... Não me envergonho
de recordar ainda aquela história,
quase desvanecida como um sonho:


ela, pálida e franzina,
eu, de sobretudo roto...
— Buona sera, signorina!
— Buona sera, giovanoto!


Publicado no livro Janelas abertas (1911)

Afonso Schmidt nasceu em Cubatão, Estado de São Paulo, a 29 de junho de 1890, m. em São Paulo a 3 de abril de 1964).


Ler do mesmo autor, neste blog:
Cubatão
Chromo
O Poema da Casa Que Não Existe
Simpatia (Poema infantil)

2012-06-28

PRECISA-SE - Arita Damasceno Pettená

Precisa-se de uma senhora
Sem hora…
Sem… ora – digamos…
Plena de vida,
Cheia de vida,
Para ocupar
Um espaço a dois.
Paga-se bem!
- Bem pra lá…
Bem pra cá.
E que ame tão bem.
E seja também tão amada!
Que um dia,
Ainda que longe,
Possamos dizer
Cheios de saudade:
Nunca estivemos sós!
Precisa-se de uma senhora
Sem hora…
Sem… ora – digamos…
Plena de vida
Para encher de vida
Alguém sedento de amor!




Arita Damasceno Pettená nasceu em Florianópolis, Santa Catarina, em 28 de Junho de 1932

2012-06-27

Fatalidade - Paulo Eiró

Que vista! O sangue se afervora e escalda!
Por que impulso fatal fui hoje à Igreja ?
Quer meu destino que, ao entrar, lá veja
Noiva gentil de cândida grinalda.

Nos olhos sem iguais, cor de esmeralda,
Lume de estrelas, plácido lampeja:
Seu branco seio de ventura arqueja;
Louros cabelos rolam-lhe da espalda.

Hora de perdição! Sim adorei-a;
Não tive horror, não tive sequer medo
De cobiçar uma mulher alheia.

Unem as mãos; o órgão reboa ledo;
Em alvas espirais, o incenso ondeia...
E eu só, longe do altar, choro em segredo!

Paulo Francisco Emílio de Sales (Paulo Eiró), nasceu em Vila de Santo Amaro [São Paulo] SP, em 15 de abril de 1836 e faleceu em 27 de junho de 1871 no Hospício dos Alienados em São Paulo

2012-06-26

Amanhã como estaremos?

Não sei se por esta hora vamos estar deprimidos a dizer mal de toda a gente onde se inclui Passos Coelho (que diz que não sabe o que fazer sob hipóteses de acontecimentos futuros) ou de Vítor Gaspar (que inteligentemente relembrou que no acordo da troika está prevista a tomada de medidas adicionais se for preciso, um neologismo lenitivo para "vamos cortar o subsídio de Natal aos trabalhadores dependentes da atividade privada") e claro o árbitro que era turco e, já se sabia, estava feito com os espanhóis ou se, pelo contrário, até ao fim da semana, pelo menos, esquecemos a crise, Cristiano Ronaldo é o maior! e metade da população está a beber umas cervejolas, até porque este calor desiderata...

Uns vão jogar melhor do que outros, não sei é quais - já assim diria o senhor de La Palice -. Mas uma coisa tenho a certeza! Imediatamente antes do início do jogo os portugueses vão estar a cantar o Hino Nacional, enquanto os jogadores espanhóis vão estar caladinhos quando tocar o deles. Não, não ... não se trata de táctica de poupança de energia...

PS: Aquando dos Quartos-de-final Paulo Bento dizia que já devia haver uns tantos que teriam comprado a bandeira da República Checa. Eu pergunto os "cinco" da arbitragem portuguesa estarão a torcer pela Espanha? Quanto ao PP se for tão português como benfiquista não tenho qualquer dúvida que já comprou a bandeira de Espanha (às escondidas é claro)...

Musical Suggestion of the Day - Alfredo Marceneiro desapareceu há 30 anos



Alfredo Rodrigo Duarte, de nome artístico Alfredo Marceneiro (nasceu em Lisboa, a 25 de Fevereiro de 1891 - m. Lisboa, 26 de Junho de 1982).

Que Mimo!... - Tobias Barreto

Tu és morena e sublime
Como a hora do sol posto.
E, no crepúsculo eterno
Que te envolve o lindo rosto,
O céu desfolha canduras
De alvoradas e jasmins,
E passam roçando n'alma
As asas dos querubins...

Teu corpo que tem o cheiro
De cem capelas de rosas,
Que t'enche a roupa de quebros,
De ondulações graciosas,
Teu corpo derrama essências
Como uma campina em flor:
Beijá-lo!... fôra loucura;
Gozá-lo!... morrer de amor...

Tobias Barreto de Meneses (n. Vila de Campos do Rio Real, 7 de junho de 1839 — m. em Sergipe, 26 de junho de 1889)

O Gênio da Humanidade
Ignorabimus
Namoro não é crime

2012-06-25

Pouso vazio - Alves de Faria

Unímo-nos, prendemo-nos e juntos
Vimos de um sonho para tal velhice,
Como dois tristes, como dois defuntos,
– duas máscaras doidas de meiguice.

Hoje estás velha e estás como eu predisse...
Sonhos jazem sepultos e conjuntos!
E eu nem sei mesmo quando a meninice
A frase me ensinou de outros assuntos.

És um campo talhado, oh! companheira!
Quando eu morrer que farás tu da vida?
Que farei eu, se fores a primeira?

Se até o amor que foi, pomba querida,
O altar-mor de nossa alma, forasteira,
Temendo o inverno levantou guarida!

Rodolfo Alves de Faria (Maceió, AL 23/3/1871 - Maceió AL 25/6/1899)

Poema extraído daqui
Do mesmo autor, neste blog: Soneto

2012-06-24

A Bela Encantada - Joaquim Manuel de Macedo

(Escrito no álbum de uma Senhora)

Mancebo imprudente, leviano mortal,
Ausenta-te, foge, se não, ai de ti!
Não fiques num sítio, qu'é sítio fatal,
Não pares aqui.

(...)

Se a visses... tão bela!... de branco vestida,
Coas negras madeixas no colo a ondear,
Tão só, qual princesa de um trono abatida,
Cismando ao luar...

Se a visses... tão branca, da lua ao palor
Uma harpa sonora então dedilhar,
E à margem do lago ternuras de amor
Essa harpa entornar...

Se então tu a visses... tão branca e tão bela
Com a harpa inclinada no seio ao revés,
Vertendo harmonias, com a lua sobre ela,
E o lago a seus pés...

Se a visses... não vejas, incauto mortal;
Ah! foge! ind'é tempo; não pares aqui;
Não fiques num sítio que é sítio fatal;
Se não — ai de ti!...

Não vejas a bela, que em vê-la há perigo;
Estila dos lábios amávio traidor;
Não vejas!... se a vires... — eu sei o que digo!... -
Tu morres de amor!

Rio de Janeiro, 17 de setembro de 1849

Extraído daqui
Joaquim Manuel de Macedo, nasceu em Itaboraí, RJ, em 24 de Junho de 1820, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 11 de Abril de 1882.

2012-06-23

Soneto - Eu Já Te Amava - Martins Fontes

Antes de conhecer-te, eu já te amava.
Porque sempre te amei a vida inteira:
Eras a irmã, a noiva, a companheira,
A alma gêmea da minha que eu sonhava.

Com o coração, à noite, ardendo em lava
Em meus versos vivias, de maneira
Que te contemplo a imagem verdadeira
E acho a mesma que outrora contemplava.

Amo-te. Sabes que me tens cativo.
Retribuis a afeição que em mim fulgura,
Transfigurada nos anseios da Arte.

Mas, se te quero assim, por que motivo
Tardaste tanto em vir, que hoje é loucura,
Mais que loucura, um crime desejar-te?


José Martins Fontes nasceu em Santos (SP) a 23 de Junho de 1884 e morreu a 25 de Junho de 1937.

Ler do mesmo autor:
Inconsolavelmente
Se eu fosse Deus
Incontentado
Minha Mãe

2012-06-22

Quadras Soltas - João Braz

Em época de santos populares fica bem a colocação destas Quadras Soltas relembrando o poeta algarvio João Braz Machado por altura do 19º. aniversário do seu desaparecimento:

Alguém que te viu contente,
Rojando sedas, na rua,
Afirmou a muita gente
Que és muito mais linda nua...

Não andas relacionada
Comigo, mas sei quem és...
Já me foste apresentada
Na má língua dos Cafés.

Não ergas com tal desdém
Por mim, o teu lindo olhar,
Se não eu conto a alguém
O que sei, para o baixar...

Nos mastros por onde andei,
O alecrim ardia aos molhos
E no fim, só me queimei
Na fogueira dos teus olhos...

Ó meu amor, não vás tanto
Rezar junto a Santo António...
- Não caia o pobre do Santo
Na tentação do demónio!

Se alguma vez, ao deitar,
Ao luar te mostras nua,
Nunca mais temos luar
A não ser na tua rua...

Nas bocas que sem desejo
Minha boca anda a beijar,
Mato saudades dum beijo
Que a tua não me quiz dar.

João Braz Machado (São Brás de Alportel, 13 de Março de 1912 - Portimão, 22 de Junho de 1993)

2012-06-21

Portugal nas meias finais do Euro... and that's beautiful!


Ai se Cristiano Ronaldo acertasse menos nos postes das balizas. Já são quatro... Golos: "apenas" três.

Na primeira parte, Portugal não assumiu, no campo, o favoritismo que lhe era atribuído; o jogo foi dividido e tacticamente fechado. Os jogadores a demonstrarem nervosismo e inadaptação ao estado escorregadio do campo. Oportunidades muito poucas... mas na parte final Portugal melhorou e esteve perto de marcar com um remate de Cristiano Ronaldo ... ao poste!

Postiga saiu lesionado mas este jogo até revelava características adequadas para Hugo Almeida. Na segunda parte, Portugal assumiu o jogo, dominou-o e as oportunidades sucediam-se. Cristiano Ronaldo... outra vez ao poste (de livre directo), Hugo Almeida... (ainda meteu a bola dentro da baliza aos 59' mas em posição irregular e não valeu), Nani...com um remate com selo de golo a ser desviado numa perna de um adversário e a sair por cima da baliza, Cech a defender grande remate de longe de João Moutinho (64'). Enfim começávamos a desesperar com a sorte, seja sina, seja Fado. Mas João Moutinho desmarca-se em velocidade para a linha de fundo pelo lado direito, após passe de Nani, e centra com Hugo Almeida a fazer-se ao cabeceamento mas a não chegar à bola, aparecendo Cristiano Ronaldo de trás, com balanço, a fazer um remate de cabeça excepcional. A bola bate no solo e desta vez nem Cech conseguiu evitar o golo de Portugal. Só faltavam dez minutos (mais os descontos) e foi tempo de trancas às portas. Entradas de Custódio (para o lugar de Nani) e de Rolando (para o lugar de Raúl Meireles). Também os checos, a perder, fizeram mais uma substituição (supostamente) ofensiva mas o melhor que conseguiram foi um pontapé de canto com o guarda-redes a incorporar-se na área ofensiva, a bola foi recuperada pelos portugueses e João Pereira em vez de tentar o lançamento para a baliza perdeu-se em fintas com um adversário...

Vitória justa em que Portugal deu a primeira parte de avanço... novamente não foi precisa a sorte para ganhar... mais do que justamente mas, mais uma vez, pela diferença escassa de um golo...

Ronaldo aumenta o score, ganha outra vez o título de "man of the match" mas tenho esperança de que ainda haja um jogo neste europeu em que marque mais golos do que as bolas que acerta nos postes....

Em tempos de crise financeira Portugal recuperou do financiamento (leia-se da derrota) nos quartos-de-final do Euro de 1996 (chapéu de Poborsky a Vítor Baía). Não cobramos juros... mas ainda temos hipóteses de melhorar o saldo da dívida se ganharmos as meias-finais (contra a Espanha ou a França, com quem também temos contas por ajustar). E quem sabe...já é tempo de termos um jogo de sorte... senão vejamos: a República Checa teve dois remates... Portugal teve vinte remates e nós ganhamos apenas por um golo de diferença!
Ficha do jogo:
Meias Finais do Campeonato da Europa de 2012
Estádio Nacional de Varsóvia
Árbitro: Howard Webb (ENG)
Rep. Checa: Petr Cech; Selassie, Sivok, Kadlek e Limbersky; Hübschman (Pekhart 86') e Plasil; Jirácek, Darida (Jan Rezek 61'), Pilar e Baros
Portugal: Rui Patrício, João Pereira, Bruno Alves, Pepe e Fábio Coentrão; Miguel Veloso, João Moutinho e Raul Meireles (Rolando 88'), Nani (Custódio 84'), Cristiano Ronaldo e Hélder Postiga (Hugo Almeida 41')

Golos: 0-1 Cristiano Ronaldo 79'

Disciplina:
26' Cartão Amarelo para Nani (Portugal).
27' Cartão Amarelo para Miguel Veloso (Portugal).
90' Cartão Amarelo para Limbersky (Rep. Checa).

MINHA MUSA - Machado de Assis

A MUSA, que inspira meus tímidos cantos,
É doce e risonha, se amor lhe sorri;
É grave e saudosa, se brotam-lhe os prantos.
Saudades carpindo, que sinto por ti.

A Musa, que inspira-me os versos nascidos
De mágoas que sinto no peito a pungir,
Sufoca-me os tristes e longos gemidos
Que as dores que oculto me fazem trair.

A Musa, que inspira-me os cantos de prece,
Que nascem-me d'alma, que envio ao Senhor.
Desperta-me a crença, que às vezes 'dormece
Ao último arranco de esp'ranças de amor

A Musa, que o ramo das glórias enlaça,
Da terra gigante - meu berço infantil,
De afetos um nome na idéia me traça,
Que o eco no peito repete: - Brasil!

A Musa, que inspira meus cantos é livre,
Detesta os preceitos da vil opressão,
O ardor, a coragem do herói lá do Tibre,
Na lira engrandece, dizendo: - Catão!

O aroma de esp'rança, que n'alma recende,
É ela que aspira, no cálix da flor;
É ela que o estro na fronte me acende,
A Musa que inspira meus versos de amor!

Joaquim Maria MACHADO DE ASSIS (nasceu no Rio de Janeiro a 21 de Junho de 1839 e aí faleceu a 29 de Setembro de 1908)

Ler do mesmo autor, neste blog:
Aspiração
Círculo Vicioso
Musa Consolatrix
Menina e Moça

2012-06-20

Loas à Chuva e ao Vento - Matilde Rosa Araújo

Chuva, porque cais?
Vento, aonde vais?
Pingue…Pingue…Pingue…
Vu…Vu…Vu…
Chuva, porque cais?
Vento, aonde vais?
Pingue…Pingue…Pingue…
Vu…Vu…Vu…
Ó vento que vais,
Vai devagarinho.
Ó chuva que cais,
Mas cai de mansinho.
Pingue…Pingue…
Vu…Vu…
Muito de mansinho
Em meu coração.
Já não tenho lenha,
Nem tenho carvão…
Pingue…Pingue…
Vu…Vu…
Que canto tão frio
Que canto tão terno,
O canto da água,
O canto do Inverno…
Pingue…
Que triste lamento,
Embora tão terno,
O canto do vento,
O canto do Inverno…
Vu…
E os pássaros cantam
E as nuvens levantam!

in  O Livro da Tila

Matilde Rosa Lopes de Araújo (n. Lisboa, 20 de Junho de 1921 - m. Lisboa, 6 de Julho de 2010)

Não se amam os poetas
Presente (poema infantil)

2012-06-19

Idílio - IV - Roberto de Mesquita

Sentámo-nos num largo, ao luar divino.
Eu fitava no céu pupilas sonhadoras.
No profundo silêncio um clamoroso sino
Com solene vagar bateu então dez horas.

Depois de acompanhar-te ao ninho onde tu moras,
Erguido num jardim virente e pequenino,
Fiquei a relembrar o teu corpo airoso e fino
E esses olhos de moura, escuros como amoras.

Por longo tempo ainda eu divaguei absorto
Entre prédios sem luz, dum ar soturno e morto,
Ouvindo ao longe o mar num salmo sonolento.

E ao mórbido luar, que ao sono nos impulsa,
A minh’alma bebia essa saudade avulsa
Que dimana da noite assim como o relento…


Augusto de Mesquita Henriques (n. em Santa Cruz das Flores, Açores a 19 de Jun 1871; m. em Santa Crus das Flores em 31 Dez 1923)

Ler do mesmo autor neste blog:
Abandonadas
Aves do Mar;
Universalidade II
Spleen

2012-06-18

Estranho consórcio hispano-germanico nestas coisas do Euro

Ontem um árbitro espanhol esteve no decisivo Alemanha-Dinamarca. Com o resultado em 1-1 e a cerca de um quarto de hora do final do jogo um jogador dinamarquês esgueira-se pelo centro da área e com avanço é agarrado, com veemência pela camisola, por um defesa alemão - ainda consegue rematar mas, em más condições, por cima da baliza. O árbitro deveria ter assinalado penalty e os alemães teriam de correr a bem correr para não serem eliminados (se o penalty fosse convertido, obviamente).

Hoje no Espanha-Croácia o favoritismo era para os espanhóis mas eu desconfiava que os croatas pudessem fazer uma surpresa. O que se viu? Um árbitro alemão. Esquisito não é? Com efeito não. Se considerarmos que existiram duas grandes penalidades favoráveis aos croatas que o árbitro não assinalou.

Devem pensar: «como só nos encontramos na final porque não nos ajudamos reciprocamente»? Aliás, acham que é pura coincidência estes erros e as afirmações do Sr. Platini ao prognosticar uma final Alemanha-Espanha? Uma vergonha...

Portugal que se acautele porque se passar às meias-finais pode encontrar os espanhóis...

PS: Vergonha que não será maior do que a se passa em Portugal! Conhecida a classificação dos árbitros vê-se que os primeiros classificados são aqueles que mais roubam o Benfica! Proença em primeiro - é claro - não foi ele que deu o título ao Porto no jogo da Luz e foi convidado de honra para o jogo dos festejos no Dragão com o Sporting?



O segundo classificado foi Benquerença. Esteve em risco tal classificação depois de ter estado muito tempo lesionado, mas aqueles dois penalties roubados ao Benfica no jogo com o Rio Ave conduziram-no ao segundo lugar. O terceiro foi Jorge Sousa - confesso que neste caso até fiquei ligeiramente surpreendido. Estava à espera que tivesse sido o Artur Soares Dias (foi quinto classificado) depois daquele penalty por marcar no primeiro minuto do jogo contra o Sporting ou até quem sabe o árbitro que esteve em Coimbra e não marcou aquele penalty do tamanho da Torre Eiffel sobre o Aimar convertido em falta contra os encarnados (Hugo Miguel ficou classificado em sexto).

É assim que se manipulam os campeonatos. Quem faz os jeitos a quem tem o poder acabam sempre bem classificados e são promovidos.


Xácara do Infinito - Mário Saa

Fazia papa-luaça
com lama azul dos paúis;
e embaciava a vidraça;
ou de olhos baços, azuis,
parados, largos, serenos,
como o silêncio dos mudos,
ou fitos, picos, pequenos,
venenos de ângulos agudos.

Ou gargalhava estridente
como um riscar de repente
de uma faúlha de luz
em escuros de urros e uuus
que arrefecia os cabelos!
E a dissonância em novelos
rolava fundo e medonho
a meio do chão... Catrapuz!...
como um vómito de luz
a estoirar dentro dum sonho!

Ou escancarava a vidraça
a rir pedradas de lata;
mas logo o feixe-desfeixe
porque a lata se desata
e cai em pata de pata
na lájea das cousas mortas
das mortas noites sem portas!

...........

E logo a Noite corria,
e a vista via... - não via:
porque entre o ver e o não ver
há uma distância a correr
que pode ser... - ou não ser
uma distância a valer!

Aquele espaço intervalo
dum cabelo ou duma unha
à sensação de ter unha
é uma distância a cavalo
como a distância da unha
ao movimento da unha!

É como a longa distância
que vai do ferro da lança
à sua prova de força,
que vai do salto da corça
à unha da própria corça!

Que vai da gente ao cabelo
- que será, ou não, distância... -
porque a gente não é pêlo,
nem tem a ânsia de sê-lo,
mas pode a gente ter ânsia
de ter ânsia de ser pêlo!

Que coisa ausente ou presente,
que ponte desune ou une
o meu sentir ao meu dente,
o que sente ao que não sente,
e como em mim se reúne?!

A sensação da Matéria
é não ser tudo o que falta:
que quem o é já não salta
por sobre a própria Matéria;
que quem o é... não é quem,
porque quem é ser alguém,
indivíduo é ser divíduo,
- dividido o aqui do além!

A parte que em nós não sente
arvorou no consciente
a sensação de ser gente
e da coisa inconsciente!

Deste tudo e deste nada
nasceu a forte razão
que separa o sim do não
e os valores de tudo e nada!


In Poemas Portugueses, Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, Porto Editora

Mário Paes da Cunha e Sá (Caldas da Rainha, 18 de Junho de 1893 — Ervedal, 23 de Janeiro de 1971)

2012-06-17

Já estou a ficar velho ... - António Franco Alexandre

Já estou a ficar velho, ainda que tenha
esta figura fixa sem idade,
e me mantenha em forma o aparelho
a que todos aqui somos sujeitos:
a correria cega, a suspensão elástica,
o salto em trave e trampolim de folhas,
e outras altas artes de ginástica.
Mas eu bem sei sentir além da aparência,
e já me aconteceu, ao visitar o canto
onde o mundo se acaba em chão de areia,
ali ver o meu fim anunciado.
Quando em tranquilo pouso assim medito,
peso, e calculo tudo aquilo
que não fiz, e não tive, e não alcanço
com o rosto extravagante que me deram,
já tudo bem pensado considero
se não devo encontrar algum consolo
na ciência que conduz o feiticeiro,
e acreditar também, como se diz,
que é, esta vida, emaranhada teia
de mal fiado, mal dobrado fio,
e a morte tão somente um singular casulo
de onde sairei transfigurado.
Mas não sei de que valha imaginar
um outro ser incólume e perfeito
que da minha substância seja feito
e tome, noutro mundo, o meu lugar;
se me não lembra, como serei eu?
Se for quem sou, ainda que mude a capa,
há-de voltar aqui, onde hoje estou,
viver o mesmo instante, e ver
escapar-lhe das mãos o que me escapa;
veloz embora, e exímio no salto,
o que hoje perco, há-de então perdê-lo,
e faltar-lhe outra vez o que me falta.


(Aracne 2004)
in Poemas Portugueses, Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, selecção, organização, introdução e notas de Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Prefácio de Vasco da Graça Moura, Porto Editora.

António Franco Alexandre nasceu em Viseu a 17 de Junho de 1944

Ler do mesmo poeta, neste blog:
Saudade
Nesta Última Tarde Em Que Respiro

Samaritana - António Bernardino



António Bernardino Pires dos Santos (Berna), nasceu em 20 de Agosto de 1941 em Óis da Ribeira, concelho de Águeda, faleceu em 17 de Junho de 1996

2012-06-16

Presídio - David Mourão-Ferreira

imagem daqui

Nem todo o corpo é carne… Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco…?

E o ventre, inconscientemente como o lodo?…
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor… Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo…

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono…
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!


Extraído de Poemas de Amor, Antologia de Poesia Portuguesa, Organização e Prefácio de Inês Pedrosa, Publicações Dom Quixote

David de Jesus Mourão-Ferreira (n. em Lisboa a 24 Fev. 1927; m. Lisboa a 16 Jun 1996)

Ler do mesmo autor:
Casa
E Por Vezes
Ilha
Nocturno
Paraíso
Ternura
Labirinto
Penelope
Primavera
Equinócio
Soneto do Cativo

2012-06-15

A Sombra Sou Eu - Almada Negreiros

A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei do que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e que não me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!

José Sobral de Almada Negreiros (n. em S. Tomé e Príncipe a 7 Abr 1893; m. 15 de Junho de 1970 em Lisboa)

Ler do mesmo autor, neste blog:
Ode a Fernando Pessoa
Mãe! Vem ouvir...
Esperança
Homem transportando o cadáver de uma mulher
Taça de Chá

2012-06-14

As Coisas / Las Cosas - Jorge Luís Borges

A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro,
Um livro e em suas páginas a ofendida
Violeta, monumento de uma tarde,
De certo inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas e taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão muito além de nosso olvido:
E nunca saberão que havemos ido.

Trad. de Ferreira Gullar (extraído daqui)

ORIGINAL

LAS COSAS

El bastón, las monedas, el llavero,
la dócil cerradura, las tardías
notas que no leerán los pocos días
que me quedan, los naipes y el tablero,
un libro y en sus páginas la ajada
violeta, monumento de una tarde
sin duda inolvidable y ya olvidada,
el rojo espejo occidental en que arde
una ilusoria aurora. Cuántas cosas,
limas, umbrales, atlas, copas, clavos,
nos sirven como tácitos esclavos,
ciegas y extrañamente sigilosas
durarán más allá de nuestro olvido;
no sabrán nunca que nos hemos ido.

In: Elogío de la Sombra, 1969

Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (n. em Buenos Aires a 24 de agosto de 1899; f. Genebra 14 de junho de 1986).

Ler do mesmo autor, neste blog:
Cosmogonia
Soneto do Vinho
Arte Poética
The Art of Poetry
Do que nada se sabe
Limites;
O Mar

2012-06-13

Dá a Surpresa de Ser - Fernando Pessoa

Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro,
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?


Extraído de 366 poemas que falam de amor, uma antologia organizada por Vasco Graça Moura, Quetzal

FERNANDO António Nogueira PESSOA nasceu a 13 de Junho de 1888 e faleceu em Lisboa a 30 de Novembro de 1935).
Mais poemas de Fernando Pessoa, neste blog:
Nada Sou, Nada Posso, Nada Sigo
Se Alguém Bater
Aguardo - Ricardo Reis
Tanho Uma Grande Constipação (Álvaro de Campos)
Deus Sabe Melhor Do Que Eu
Suspense / Ansiedade
Tabacaria
Liberdade
Não Quero Recordar Nem Conhecer-me (Ricardo Reis)
Intervalo - Bernardo Soares
O guardador de rebanhos - X (Alberto Caeiro)
O guardador de rebanhos - XXI (Alberto Caeiro)
O guardador de rebanhos - XXVIII (Alberto Caeiro)
O Tejo é mais belo ...
Não sei se é sonho se é realidade
Odes - Ricardo Reis
Cruz na porta da tabacaria
Fragmentos do Livro do desassossego - Bernardo Soares
Afinal a melhor maneira de viajar é sentir...
Todas as cartas de amor são...
Se te queres matar ...
Dai-me rosas e lírios...
Sou vil, sou reles como toda a gente...
Não sei se é amor que tens
O que há em mim é sobretudo cansaço
Mar português
Ode marcial - h
Lycanthropy
Conselho
Para além da curva da estrada (Alberto Caeiro)
Sopra demais o vento
Poema da Canção sobre a Esperança
Soneto 1 de 35 sonetos (Poesia Inglesa) - em português
Sonnet 1 (from 35 Sonnets)
O amor é uma companhiaQuando vier a Primavera (Alberto Caeiro)

2012-06-12

Torna un pensier d'amore / Torna um pensar de amor - Sandro Penna

Torna un pensier d'amore
nel cuore stanco, come
nel tramonto invernale
ritorna contro il sole
il fanciullo alla casa.


Em português

Torna um pensar de amor
ao seio exausto, como
no entardecer de inverno
regressa contra o sol
o jovem a casa

Trad. Jorge de Sena

in Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro, Assírio Alvim

Sandro Penna (n. em Perugia a 12 Jun 1906; m. 21 Jan 1977)

Do mesmo autor:
A Lição de Estética
De come è forte il rumore

2012-06-11

Mater Dolorosa - Gonçalves Crespo

foto: Angústia, quadro de David Alfaro Siqueiros

Quando se fez ao largo a nave escura,
na praia essa mulher ficou chorando,
no doloroso aspecto figurando
a lacrimosa estátua da amargura.

Dos céus a curva era tranquila e pura;
das gementes alcíones o bando
via-se ao longe, em círculos, voando
dos mares sobre a cérula planura.

Nas ondas se atufara o Sol radioso,
e a Lua sucedera, astro mavioso,
de alvor banhando os alcantis das fragas...

E aquela pobre mãe, não dando conta
que o Sol morrera, e que o luar desponta,
a vista embebe na amplidão das vagas...

António Cândido Gonçalves Crespo (n. Rio de Janeiro a 11 Mar 1846; m. em Lisboa a 11 Jun 1883)

Ler do mesmo autor:
O Coveiro
Na Aldeia
O Relógio
Nunca eu te lesse, balada!
Na Roça

2012-06-10

Soneto das Luzes - António Carlos Secchin (na passagem do 60º aniversário do poeta)

Uma palavra, outra mais, e eis um verso,
doze sílabas a dizer coisa nenhuma.
Trabalho, teimo, limo, sofro e não impeço
que este quarteto seja inútil como a espuma.

Agora é hora de ter mais seriedade,
para essa rima não rumar até o inferno.
Convoco a musa, que me ri da imensidade,
mas não se cansa de acenar um não eterno.

Falar de amor, oh pastor, é o que eu queria,
porém os fados já perseguem teu poeta,
deixando apenas a promessa da poesia,

matéria bruta que não coube no terceto.
Se o deus frecheiro me lançasse a sua seta,
eu tinha a chave p'ra trancar este soneto.

in A Circulatura do Quadrado, Alguns dos Mais Belos Sonetos de Poetas cuja Mátria É a Língua Portuguesa, Unicepe

Antônio Carlos Secchin (nasceu no Rio de Janeiro a 10 de junho de 1952)

2012-06-09

Ah! Se acontecesse enfim qualquer coisa! - José Gomes Ferreira

Rosa Vermelha/ Red Rose
Ah! Se acontecesse enfim qualquer coisa!

Se de repente saísse da terra um braço
e atirasse uma rosa
para o espaço!

Mas não.

Lá está o sol do costume
com a exactidão
duma bola de lume
desenhada a compasso...

...sol que à noite continua
a andar em redor
nas entranhas da lua
- que é sol com bolor...

e desde que nasci,
haja paz ou guerra,
nunca vi outra coisa.

Ah! Como queres que acredite em ti
- braço que hás-de romper a terra
e atirar uma rosa?

José Gomes Ferreira (n. no Porto a 9 Jun 1900, m. em Lisboa a 8 Fev 1985)

Ler do mesmo autor, neste blog:

Nota do webmaster: Pois, caso para dizer e se hoje acontecesse enfim qualquer coisa! Que um simples jogo de futebol mantivesse a esperança viva e os sonhos despertos. Ah! Se Portugal e a Grécia se apurassem e que os expulsos do Euro fossem, afinal, os poderosos Alemanha e a França. Que em vez da crueza nua da verdade sobreleve o manto diáfano da fantasia... Ah ... se... hoje acontecesse enfim qualquer coisa!

2012-06-08

Um Pouco Mais de Nós - José Jorge Letria

Podes dar uma centelha de lua,
um colar de pétalas breves
ou um farrapo de nuvem;
podes dar mais uma asa
a quem tem sede de voar
ou apenas o tesouro sem preço
do teu tempo em qualquer lugar;
podes dar o que és e o que sentes
sem que te perguntem
nome, sexo ou endereço;
podes dar em suma, com emoção,
tudo aquilo que, em silêncio,
te segreda o coração;
podes dar a rima sem rima
de uma música só tua
a quem sofre a miséria dos dias
na noite sem tecto de uma rua;
podes juntar o diamante da dádiva
ao húmus de uma crença forte e antiga,
sob a forma de poema ou de cantiga;
podes ser o livro, o sonho, o ponteiro
do relógio da vida sem atraso,
e sendo tudo isso serás ainda mais,
anónimo, pleno e livre,
nau sempre aparelhada para deixar o cais,
porque o que conta, vendo bem,
é dar sempre um pouco mais,
sem factura, sem fama, sem horário,
que a máxima recompensa de quem dá
é o júbilo de um gesto voluntário.

E, afinal, tudo isso quanto vale ?
Vale o nada que é tudo
sempre que damos de nós
o que, sendo acto amor, ganha voz
e se torna eterno por ser único e total.


José Jorge Alves Letria nasceu em Cascais a 8 de junho de 1951

Ler do mesmo autor, neste blog:
O Sono
O Amor Tudo Mata Quando Morre
Quando Eu For Pequeno

2012-06-07

Aviso aos Náufragos - Paulo Leminski

Esta página, por exemplo
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ler pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pró galho,
muito depois de caída.

Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?

in Poesia Brasileira do Século XX Dos Modernistas à Actualidade, selecção, introdução e notas de Jorge Henrique Bastos, Edições Antígona

Paulo Mendes Leminski(n. em Curitiba, Paraná, a 24 de Agosto de 1944; m. em Curitiba a 7 de Junho de 1989)

Ler do mesmo autor:
Sintonia para Pressa e Presságio
Amor bastante - Paulo Leminski;
Amor, então;
Iceberg

2012-06-06

Pensar alto - Malangatana



Sim
às marrabentas
às danças rituais
que nas madrugadas
criam o frenesi
quando os tambores e as flautas entram a fanfarrar

fanfarrando até o vermelho da madrugada fazer o solo sangrar
em contraste com o verdurar das canções dos pássaros
sobre o já verduzido manto das mangueiras
dos cajueiros prenhes
para em Dezembro seus rebentos
dançarem como mulheres sensualíssimas
em cada ramo do cajual da minha terra


mas, sim ao orgasmo
das mafurreiras
repletas de chiricos
das rolas ciosas pela simbiose que só a natureza sabe oferecer

mas sim
ao som estridente do kulunguana
das donzelas no zig-zague dos ritos
quando as gazelas tão belas
não suportam mais quarenta graus à sombra dos canhueiros em flor

enquanto as oleiras da aldeia, desta grande aldeia Moçambique
amassam o barro dos rios
para o pote feito ser o depositário
de todo o íntimo desse Povo que se não cala disputando
ecoosamente com os tambores do meu ontem antigo.


Malangatana Valente Ngwenya (n. 6 de Junho de 1936, Matalana, distrito de Marracuene, Moçambique - m. 5 de Janeiro de 2011, Matosinhos, Portugal)

2012-06-05

Romance Sonâmbulo - Federico Garcia Lorca

Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramos.
O navio sobre o mar,
o cavalo na montanha.
Com sombra pela cintura,
ela sonha na varanda,
verde carne, trança verde,
e olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
À luz da lua cigana,
as coisas estão-na fitando
sem ela poder fitá-las.

*

Verde que te quero verde.
Grandes estrelas de escarcha
seguem o peixe de sombra
que anuncia a madrugada.
A figueira esfrega o vento
com a lixa dos seus ramos
e o monte, gato matreiro,
eriça piteiras bravas.
Mas quem virá? E por onde?
Ela segue na varanda,
verde carne, trança verde,
a sonhar ondas amargas.

*

Compadre, quero trocar
o potro por sua casa,
os arreios por seu espelho,
a faca por sua manta.
Compadre, venho a sangrar
já desde os portos de Cabra.
Ah, se eu pudesse, mocito,
este contrato fechava.
Porém eu já não sou eu
nem minha é já minha casa.
Compadre, quero morrer
decente na minha cama.
E de aço, se puder ser,
mas com lençóis de bretanha.
Não vês a ferida que tenho
do peito até à garganta?
Trezentas rosas morenas
leva o teu peitilho branco.
Teu sangue ressuma e cheira
em redor da tua faixa.
Porém eu já não sou eu,
nem minha é já minha casa.
Deixai-me subir ao menos
até às altas varandas,
deixai-me subir!, deixai-me
até às verdes varandas.
Às balaustradas da lua,
aonde rebenta a água.

*

Já sobem os dois compadres
até àS altas varandas.
Deixando um rasto de sangue.
Deixando um rastro de lágrimas.
Tremulavam nos telhados
faróis de folha de lata.
Mil pandeiros de cristal
feriam a madrugada.

*

Verde que te quero verde.
verde vento, verdes ramos.
Os dois compadres subiram.
O vento deixa na boca
um raro sabor a fel,
manjerico e hortelã.
Compadre!, diz-me onde está
a tua menina amarga?
Quantas vezes te esperou!
Quantas vezes te esperara,
fresca, de cabelo negro,
aqui na verde varanda!

*

Sobre o rosto da cisterna
agitava-se a cigana.
Verde carne, trança verde,
e olhos de fria prata.
Cristais de neve e de lua
a sustém sobre a água.
Íntima se pôs a noite
como pequenina praça.
Bêbados guardas-civis
estão a sacudir a porta.
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramos.
O navio sobre o mar.
O cavalo na montanha.

Trad. Eugénio de Andrade
in Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim

Federico García Lorca (Fuente Vaqueros, 5 de junho de 1898 — Granada, 19 de agosto de 1936)

2012-06-04

Uma Pequenina Luz - Jorge de Sena

Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla... em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indeflectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não: brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha.

Jorge de Sena nasceu em Lisboa, a 2 de Novembro de 1919, e faleceu em Santa Barbara, Califórnia, a 4 de Junho de 1978.

Ler neste blog do mesmo autor:
Carta a Meus Filhos Sobre os Fuzilamentos de Goya
Como Queiras, Amor...
Génesis VI
Suma Teológica
Glosa À Chegada do Outono
Amo-te muito meu amor
Fidelidade
A diferença que há...
Rígidos seios de redondas, brancas..

2012-06-02

Regresso - Bernardo de Passos

Minha aldeia, voltei! Avé-Marias…
Teu crepúsculo de oiro até parece
Que me canta e me embala e me adormece,
A florir a amargura dos meus dias…

Como a urze das tuas serranias,
Poeta aqui nasci, sem que o soubesse,
E aqui, -visão de estrelas e de prece,-
Vi meu primeiro amor, quando me vias!

Minha aldeia, voltei! –Anoiteceu…
Sobre o meu coração como um ninho,
Estendes a asa de oiro do teu céu…

E ele dorme e sorri, -o abandonado!-
Como dorme e sorri um passarinho,
Sob a asa da mãe agasalhado.

Bernardo Rodrigues de Passos (nasceu em São Brás de Alportel (Algarve) a 29 de Outubro de 1876 e morreu em Faro a 2 de Junho de 1930)

Ler do mesmo autor:
Sombra,
Soneto e
Quadras Soltas

Encontro de Assombrar na Catedral - Ana Cristina Cesar

Frente a frente, derramando enfim todas as
palavras, dizemos, com os olhos, do silêncio que
não é mudez.
E não toma medo desta alta compadecida
passional, desta crueldade intensa que te
toma as duas mãos.

Ana Cristina Cruz Cesar (Rio de Janeiro, 2 de junho de 1952 — Rio de Janeiro, 29 de outubro de 1983)

2012-06-01

Paciencia - Camilo Castelo Branco

Quem pode conceber que Deus creasse
Tanta obra perfeitissima, esmaltada
Pelo espaço infinito, e a desgraçada
Raça humanal de imperfeições manchasse?
Quem pode conceber o acerbo enlace
De miserias que esmagam, condemnada
A creação mais nobre, atormentada
Desde o berço até ás ancias do trespasse?
É certo que as desgraças são enormes;
Mas tu, Deus abscondito, não dormes,
Quando eu te invoco a divinal clemencia.
Ao dar-me as penas com que me torturas,
Um thesouro me deste de venturas:
Chama-se este thesouro a PACIENCIA.
Soneto X de Nas Trevas Sonetos sentimentaes e humoristicos
LISBOA LIVRARIA EDITORA, TAVARES CARDOSO & IRMÃO
6, LARGO DO CAMÕES, 6
— 1890

Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco (Lisboa, Encarnação, 16 de Março de 1825 — Vila Nova de Famalicão, São Miguel de Seide, 1 de Junho de 1890)