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2012-06-18

Xácara do Infinito - Mário Saa

Fazia papa-luaça
com lama azul dos paúis;
e embaciava a vidraça;
ou de olhos baços, azuis,
parados, largos, serenos,
como o silêncio dos mudos,
ou fitos, picos, pequenos,
venenos de ângulos agudos.

Ou gargalhava estridente
como um riscar de repente
de uma faúlha de luz
em escuros de urros e uuus
que arrefecia os cabelos!
E a dissonância em novelos
rolava fundo e medonho
a meio do chão... Catrapuz!...
como um vómito de luz
a estoirar dentro dum sonho!

Ou escancarava a vidraça
a rir pedradas de lata;
mas logo o feixe-desfeixe
porque a lata se desata
e cai em pata de pata
na lájea das cousas mortas
das mortas noites sem portas!

...........

E logo a Noite corria,
e a vista via... - não via:
porque entre o ver e o não ver
há uma distância a correr
que pode ser... - ou não ser
uma distância a valer!

Aquele espaço intervalo
dum cabelo ou duma unha
à sensação de ter unha
é uma distância a cavalo
como a distância da unha
ao movimento da unha!

É como a longa distância
que vai do ferro da lança
à sua prova de força,
que vai do salto da corça
à unha da própria corça!

Que vai da gente ao cabelo
- que será, ou não, distância... -
porque a gente não é pêlo,
nem tem a ânsia de sê-lo,
mas pode a gente ter ânsia
de ter ânsia de ser pêlo!

Que coisa ausente ou presente,
que ponte desune ou une
o meu sentir ao meu dente,
o que sente ao que não sente,
e como em mim se reúne?!

A sensação da Matéria
é não ser tudo o que falta:
que quem o é já não salta
por sobre a própria Matéria;
que quem o é... não é quem,
porque quem é ser alguém,
indivíduo é ser divíduo,
- dividido o aqui do além!

A parte que em nós não sente
arvorou no consciente
a sensação de ser gente
e da coisa inconsciente!

Deste tudo e deste nada
nasceu a forte razão
que separa o sim do não
e os valores de tudo e nada!


In Poemas Portugueses, Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, Porto Editora

Mário Paes da Cunha e Sá (Caldas da Rainha, 18 de Junho de 1893 — Ervedal, 23 de Janeiro de 1971)

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