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2015-08-31

Ah, venturosos e venturosas - Marina Tsvetáieva

Ah, venturosos e venturosas
que não sabem cantar. Para eles -
o derramar de lágrimas! Delícia -
derrama-se a dor como aguaceiro!

Para que trema algo sob a pedra.
Para mim - vocação a chicote -
no meio dos cantos fúnebres
manda o dever - cantar.

Porque David cantou reclinado
sobre o amigo que cortaram ao meio!
Se Orfeu não descesse ao Hades
mas mandasse lá a voz,

se apenas mandasse a voz às trevas
e se quedasse inútil à entrada,
Eurídice sairia pela voz
como por uma corda...

Por uma corda e para a luz,
sem regresso e às cegas
porque, se foi dada a voz,
poeta, foi-te tirado o resto.

Trad. Nuno Guerra e Filipe Guerra
in Rosa do Mundo, 2001 Poemas Para o Futuro, Assírio & Alvim, 2001

Marina Ivanovna Tsvetaïeva Марина Ивановна Цветаева (n. Moscovo 8 de outubro de 1892; Ielabuga, 31 de agosto de 1941)

Da mesma autoria: Ainda Ontem...

2015-08-30

POEMA AO HOMEM COMPLETO - Magdalena Léa

Quando a cabeça pouso no teu ombro sem pensamentos
quieta, tranqüila por alguns momentos
me sinto infantil.
De uma alegria toda pueril
o problema da vida num suspiro se esvai.
- És meu pai.

Quando, a passeios saímos de mãos dadas
pelas tardes ensolaradas
e paciente escutas minha tagarelice
de súbito retorno à meninice e, então,
- És meu irmão.

Quando me tomas o braço e me conduzes
pelos caminhos afastando as urzes
com o jeito seguro do companheiro amigo,
sei que sou feliz porque tu vais comigo
olhando ambos na mesma direção
nossos passos iguais e ritmados vão.
Já não sinto a fadiga pois que em ti repouso
- És meu esposo.

Quando tua cabeça em meu colo descansa
e assim num jeito muito meigo de criança
em meu seio colas tua face querida,
sinto que és vida de minha vida.
Puro é o amor que sinto no meu peito.
Puro é o olhar que me fitas de tão terno brilho.
- És meu filho.

Quando me buscas numa ânsia louca
e pões tua boca em minha boca
um imenso, e único, e prolongado beijo,
somos um só corpo, um só desejo.
Todo o Universo pára neste instante.
- És meu amante.


Extraído daqui

Magdalena Léa Barbosa Correia nasceu em 30 de agosto de 1913, no bairro de São Cristóvão, Rio de Janeiro, tendo falecido no dia doze de junho de 2001

2015-08-29

Morir, dormir - Manuel Machado


«Hijo, para descansar,
es necesario dormir,
no pensar,
no sentir,
no soñar...»

«Madre, para descansar,
morir».

Manuel Machado y Ruiz (n. Sevilha, 29 Ago 1874; m. Madrid, 19 Jan 1947).

Ler do mesmo autor no Nothingandall:
Adelfos;
O Jardim Negro;
O Querer;
Seguiriytas Ciganas;
La Toná de la Frágua (Seguiriyas Gitanas).

2015-08-27

A LÁSTIMA - Alvarenga Peixoto

Na masmorra da Ilha das Cobras,
lembrando-se da família


Eu não lastimo o próximo perigo,
Nem a escura prisão estreita e forte;
Lastimo os caros filhos e a consorte,
A perda irreparável de um amigo.

A prisão não lastimo, outra vez digo,
Nem o ver iminente o duro corte;
É ventura também achar a morte
Quando a vida só serve de castigo.

Ah! quão depressa então acabar vira
Este sonho, este enredo, esta quimera,
Que passa por verdade e é mentira.

Se filhos e consorte não tivera,
E do amigo as virtudes possuíra,
Só de vida um momento não quisera.

Inácio José de Alvarenga Peixoto (Rio de Janeiro, 1 de fevereiro 1742/1744 — Ambaca, Angola, 27 de agosto 1792)

Do mesmo autor: Estela e Nize

2015-08-26

Eu não quero - Joaquim Cardozo

Eu não quero o teu corpo
Eu não quero a tua alma,
Eu deixarei intato o teu ser a tua pessoa inviolável
Eu quero apenas uma parte neste prazer
A parte que não te pertence

in Poemas, 1947

Joaquim Maria Moreira Cardozo (n. no Recife, Pernambuco, a 26 de agosto de 1897; m. em Olinda a 4 de novembro de 1978)

Ler do mesmo autor neste blog:
Chuva de Caju
Poema do Amor Sem Exagero
Aquarela
A Várzea Tem Cajazeiras

2015-08-25

Que Vos Daria? - Luís Delfino

Se tiverdes um dia um capricho, senhora,
Um capricho, um delírio, uma vontade enfim,
Não exijas o carro azul que monta a Aurora
Nem da estrela da tarde o plaustro de marfim;

Nem o mar, que murmura e aí vai por mar em fora
Nem o céu d'outros céus, elos de céu sem fim,
Que se isso fosse meu, já vosso, há muito, fôra.
Fôra vosso o que é grande e anda em torno de mim...

Mostrásseis num só gesto ingênuo, um só desejo...
O universo que vejo e os outros que não vejo
Sofreriam por vós vosso último desdém.

Que faríeis dos sóis, grãos vis de areias d'ouro
Mulher! Pedi-me um beijo e vereis o tesouro
Que um beijo encerra e o amor que um coração contém.

LUÍS DELFINO dos Santos nasceu em Desterro, hoje Florianópolis (SC), a 25 de Agosto de 1834 e morreu no Rio a 31 de Janeiro de 1910.

Ler do mesmo autor neste blog: Cadáver de Virgem

2015-08-24

Cosmogonia - Jorge Luís Borges



Nem treva nem caos. A treva
Requer olhos que veem, como o som.

E o silêncio requer o ouvido,
O espelho, a forma que o povoa.

Nem o espaço nem o tempo. Nem sequer
Uma divindade que premedita

O silêncio anterior à primeira
Noite do tempo, que será infinita.

O grande rio de Heráclito o Escuro
Seu irrevogável curso não há empreendido,

Que do passado flui para o futuro,
Que do esquecimento flui para o esquecimento.

Algo que já padece. Algo que implora.
Depois a história universal. Agora.


(Tradução de Héctor Zanetti)

Jorge Luís Borges Acevedo (n. Buenos Aires, 24 de Agosto de 1899 — m. Genebra, 14 de Junho de 1986)

Ler do mesmo autor, neste blog:
Soneto do Vinho
Arte Poética
The Art of Poetry
Do que nada se sabe
Limites;
O Mar

2015-08-20

Recordando - Matias de Lima


Relembro as lindas tardes de poesia
Passadas docemente à beira-mar;
Passadas na amorável companhia
Dos bons poveiros, corações sem par.

A minha vida triste, ao sol sem manchas,
Foi bela! O mar regia a sua orquestra.
Com os poveiros encostados às lanchas,
Eu me entretinha em fraternal palestra.

De quando em quando ouvia aos mais idosos
Narrações de trabalhos singulares:
Inclemências, naufrágios pavorosos
Que levavam o luto a tantos lares!

Quanta vez comparava a sua lida
Com a dos Poetas! Uns, do mar profundo
Extraindo alimento para a Vida...
Outros, da alma febril, luz para o Mundo!

Uns, engolfados nesse mar fatal;
Outros, por infortúnios perseguidos,
Nautas da Dor no pélago do Ideal!
Tanta vez soçobrados e vencidos!

***

É doce recordar, chorando e rindo,
Momentos de ventura, passageiros.
Ai, que saudades desse mar tão lindo!
Ai, que saudades desses bons poveiros!

Extraído daqui

Matias Lima (Porto, 20 de agosto de 1885 - Porto, 9 de março de 1970)

Do mesmo autor: Tarde de Agosto

2015-08-18

SONHOS MORTOS - Hélio Ricciardi



Para meus sonhos mortos
não escrevam epitáfios.
Os pobrezinhos morreram
sem que ninguém notasse
seus pequenos anseios de glória.

Hélio Irajá Ricciardi dos Santos, nasceu em Alegrete, Rio Grande do Sul, em 18 de agosto de 1926, f. a 14 de fevereiro de 2015.

Do mesmo autor ler, neste blog:
Fantasias
Sábado XXX e Será

2015-08-17

A Despedida I - Fagundes Varela

Filha dos cerros onde o sol se esconde,
Onde brame o jaguar e a pomba chora,
São horas de partir, desponta a aurora,
Deixa-me que te abrace e que te beije.

Deixa-me que te abrace e que te beije,
Que sobre o teu meu coração palpite,
E dentro d'alma sinta que se agite
Quanto tenho de teu impresso nela.

Quanto tenho de teu impresso nela,
Risos ingênuos, prantos de criança,
E esses tão lindos planos de esperança
Que a sós na solidão traçamos juntos.

Que a sós na solidão traçamos juntos,
Sedentos de emoções, ébrios de amores,
Idólatras da luz e dos fulgores
De nossa mãe sublime, a natureza!

De nossa mãe sublime, a natureza,
Que nossas almas numa só fundira,
E a inspiração soprara-me na lira
Muda, arruinada nos mundanos cantos.

Muda, arruinada nos mundanos cantos,
Mas hoje bela e rica de harmonias,
Banhada ao sol de teus formosos dias,
Santificada à luz de teus encantos!

In Cantos do Ermo e da Cidade, 1869

Luís Nicolau Fagundes Varela nasceu em Santa Rita do Rio Claro (RJ) a 17 de agosto de 1841 e faleceu em Niterói (RJ) a 18 de fevereiro de 1875.

Ler do mesmo poeta, neste blog:
Ideal
Eu Passava Na Vida Errante;
Flor do Maracujá
Soneto: Desponta a estrela d'alva, a noite morre
Juvenília V

2015-08-16

Introdução + Paz! - António Nobre

MEMORIA
À MINHA MAE
AO
MEU PAI

Aquele que partiu no brigue Boa Nova
E na barca Oliveira, anos depois, voltou;
Aquele santo (que ê velhinho e já corcova)
Uma vez, uma vez, linda menina amou:
Tempos depois, por uma certa lua-nova,
Nasci eu... O velhinho ainda cá ficou,
Mas ela disse: — «Vou, ali adiante, à Cova,
António, e volto já ...» E ainda não voltou!
António é vosso. Tomai lá a vossa obra!
«Só» é o poeta-nato, o lua, o santo, a cobra !
Trouxe-o dum ventre: não fiz mais do que o escrever...
Lede-o e vereis surgir do Poente as idas mágoas,
Como quem vê o Sol sumir-se, pelas águas,
E sobe aos alcantis para o tornar a ver!


PAZ!

Paz! E a Vida foi, e é assim, e não melhora.
Esforço inútil, crê! Tudo é ilusão...
Quantos não cismam nisso mesmo a esta hora
Com uma taça, ou um punhal na mão!

Mas a Arte, o Lar, um filho, Antonio? Embora!
Quimeras, sonhos, bolas de sabão.
E a tortura do além e quem lá mora!
Isso é, talvez, minha única aflição...

Toda a dor pode suportar-se, toda!
Mesmo a da noiva morta em plena boda,
Que por mortalha leva... essa que traz...

Mas uma não: é a dor do pensamento!
Ai quem me dera entrar nesse convento
Que há além da Morte e que se chama A Paz


Extraído de «Só, António Nobre, Paris, Leon Vanier Editeur, 1892»
cópia digital de acesso livre aqui (com atualização da ortografia pelo autor do blog).

António Pereira Nobre (nasceu no Porto a 16 de Agosto de 1867 e foi vítima de tuberculose pulmonar, na Foz do Douro, Porto a 18 de Março de 1900).

Ler do mesmo autor, neste blog:
O Teu Retrato
À Luz de Lua
Ao Cair das Folhas
Virgens que passais
Carta ao Oceano
A Leão XIII
Ladainha
Purinha
E a vida foi, e é assim, e não melhora
Na Praia lá da Boa Nova um dia

2015-08-15

Opus ∞ +1 - Fiama Hasse Pais Brandão

Title Deutsch: Stilleben mit Flasche und Apfelkorb
Date 1890-1894; Medium Oil on canvas; 62 × 79 cm
Art Institute, Chicago

Paul Cézanne (19 Jan 1839; 23 Oct 1906)


Folhas novas em que a chuva
não penetra mas esvoaça. A dis
tância da chuva pela qual eu
posso deduzir da paisagem
que estou a imaginar a obra.
A separação em que parte
de mim reflui da nova arte
para a antiga vida decalca
da para sempre por alguns versos.


in Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI

Fiama Hasse Pais Brandão (Lisboa, 15 de agosto de 1938 — Lisboa, 19 de janeiro de 2007)

Ler do mesmo autor, neste blog:
Quarta-feira às três horas da tarde
Imagem Minha;
Olhar é o Amor Total;
Poetas do Amor.
Read More...
Do Amor IV

2015-08-13

Desterrado - Francisco Gomes de Amorim

Como são brancas as flores
Deste verde jasminal!
Recorda a sua fragrância
Perfumes dum laranjal …
Mas têm mais suave aroma
as rosas de Portugal!

O coração desses bosques
O brilhante e o oiro encerra;
São imensos estes rios,
imensos o vale e a serra …
Mas não têm a formosura
Dos campos da minha terra!

Estes astros são mais belos,
é mais belo o seu fulgor …
Mas luzem no céu do exílio;
não lhes tenho igual amor…
Ai, astros da minha terra,
quem me dera o vosso alvor!

Que me importam os esplendores,
prodígios que vejo aqui,
aves de vivas plumagens,
os cantos do juruty,
se lhes faltam as belezas
da terra onde eu nasci?

Lá, era a lua mais linda,
mais para os olhos as flores,
mais castos os beijos dados
em mais sinceros amores;
tinham seus bosques modestos
mais inspirados cantores.

Tudo aqui veste mais galas,
de mais viçoso matiz!
Ai que importa, se a saudade
ao proscrito sempre diz
que não há terra formosa
sem o sol do seu país?


Francisco Gomes de Amorim, nasceu em A-ver-o-mar, freguesia de Amorim, Concelho da Póvoa de Varzim, Portugal, em 13 de agosto de 1827. Faleceu em Lisboa em 4 de novembro de 1891.

2015-08-12

Solidão - Miguel Torga

Pouco a pouco, vamos ficando sós,
Esquecidos ou lembrados
Como nomes de ruas secundárias
Que a custo recordamos
Para subscritar
A urgência de um beijo epistolar
Ainda inutilmente apetecido.
Mortos sem ter morrido,
Lúcidos defuntos,
Vemos a vida pertencer aos outros.
E descobrimos, na maneira deles,
Que nada somos
Para além do seu dissimulado
Enfado
Paciente.
E que lá fora, diariamente,
Conforme arde no céu,
O sol aquece
Ou arrefece
Os versáteis e alheios sentimentos.
E que fomos riscados
No rol da humanidade
A que já não pertencemos
De maneira nenhuma.
E que tudo o que em nós era claridade
Se transformou em bruma.


Miguel Torga pseudónimo literário de Adolfo Correia da Rocha nasceu a 12 de agosto de 1907 em São Martinho da Anta, Trás-os-Montes, faleceu em 17 de janeiro de 1995.

Ler do mesmo autor, neste blog:
Boletim; ; Encontro; Procura; Ficam as Sombras; Sei um ninho; Queixa; Hora de amor; Mea culpa; Anátema; Livro de Horas; Quase um poema de amor; Perfil; Exorcismo; Bucólica; Arquivo; Rogo.

2015-08-11

LIra V (de Marília de Dirceu) - Tomás António Gonzaga

Eu não sou, minha Nise, pegureiro,
que viva de guardar alheio gado;
nem sou pastor grosseiro,
dos frios gelos e do Sol queimado,
que veste as pardas lãs do seu cordeiro.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha Estrela!

A Cresso não igualo no tesouro;
mas deu-me a sorte com que honrado viva.
Não cinjo coroa d'ouro;
mas Povos mando, e na testa altiva
verdeja a Coroa do Sagrado Louro.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha Estrela!

Maldito seja aquele, que só trata
de contar, escondido, a vil riqueza,
que, cego, se arrebata
em buscar nos Avós a vã nobreza,
com que aos mais homens, seus iguais, abata.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha Estrela!

As fortunas, que em torno de mim vejo,
por falsos bens, que enganam, não reputo;
mas antes mais desejo:
não para me voltar soberbo em bruto,
por ver-me grande, quando a mão te beijo.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha Estrela!

Pela Ninfa, que jaz vertida em Louro,
o grande Deus Apolo não delira?
Jove, mudado em Touro
e já mudado em velha não suspira?
Seguir aos Deuses nunca foi desdouro.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha Estrela!

Pretendam Anibais honrar a História,
e cinjam com a mão, de sangue cheia,
os louros da vitória;
eu revolvo os teus dons na minha idéia:
só dons que vêm do céu são minha glória
Graças, ó Nise bela,
graças à minha Estrela!


Tomás Antônio Gonzaga (Miragaia, Porto, 11 de agosto de 1744 — Ilha de Moçambique, 1810)

Ler do mesmo autor em Mothingandall:
Enquanto pasta alegre o manso gado (Lira XIX
Marília de Dirceu, Segunda Parte, Lira XV
Não sei, Marília, que tenho

2015-08-10

Sobre o lado esquerdo - Carlos de Oliveira

De vez em quando a insónia vibra com a nitidez
dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma:
partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua
harpa insuportável.

No segundo caso, o homem que não dorme pensa:
«o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim,
deslocando todo o peso do sangue sobre a metade
mais gasta do meu corpo, esmagar o coração».


in Sobre o Lado Esquerdo

Carlos Alberto Serra de Oliveira (n. em Belém do Pará, a 10 de agosto de 1921 e morreu em Lisboa a 1 de julho de 1981)

Ler do mesmo autor, neste blog:
Coração (composição 4)
Chave;
Carta a Angela;
Soneto; Sonnet (English version);
Canto
Insónia
Bilhete Postal

2015-08-09

Nenhum de nós passeia impune - Eduardo Pitta

Nenhum de nós passeia impune
pelos retratos: fazem-nos doer
os recessos da memória.

Deles saltam, por vezes, sustos,
primeiras noites, secreta
loucura, lábios que foram.

Interditam-nos sempre.
Trepam-nos pelo torpor
mais desprevenido, subsistem.

A sua perenidade é volátil
e cheia de venenosos ardis.
Um sopro no acetato.

Distintos, os seus contornos
não são nunca
os que supomos.


Eduardo Pitta nasceu em Lourenço Marques, atual Maputo, Moçambique, a 9 de Agosto de 1949.

Conclusão - Fernando Semana


Imagem daqui


Não quero concluir
Que o nosso amor foi uma invenção.
Agora que já vai longe a despedida
E a nau segue calma,
Nas marés sem correnteza,
Prefiro sentir na alma
A certeza:
De nós quem mudou fui eu!
Assim, como a noite sucede ao dia
A chama se desvaneceu
Depois da madeira ardida...

2015-08-08

Nomeei-te no meio dos meus sonhos - Ruy Belo

Nomeei-te no meio dos meus sonhos
chamei por ti na minha solidão
troquei o céu azul pelos teus olhos
e o meu sólido chão pelo teu amor.


Ruy de Moura Belo (n. em S. João da Ribeira, Rio Maior, em 27 de fevereiro de 1933; m. em Lisboa, a 8 de agosto de 1978).

Ler do mesmo autor:

2015-08-07

Amanhecer - Rosario Castellanos



Que se faz na hora de morrer? Volta-se

a cara contra a parede?

Agarra-se pelos ombros o que está perto e ouve?

Deita-se cada um a correr, como o que tem

as roupas incendiadas, para chegar ao fim?

Qual é o rito desta cerimónia?

Quem vela a agonia? Quem puxa o lençol?

Quem afasta o espelho por embaciar?

Porque a esta hora não há mãe nem parentes.

Já não há soluço. Nada, mais que um silêncio atroz.

Todos são uma face atenta, incrédula

de homem de outra margem.

Porque o que sucede não é verdade.


Trad. José Bento

in Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim

Rosario Castellanos (n. cidade do México, Mexico a 25 de maio de 1925 - m. em Telaviv, Israel, a 7 de agosto de 1974)

2015-08-06

Pintura - Albano Martins

Onde se diz espiga
leia-se narciso.
Ou leia-se jacinto.
Ou leia-se outra flor.
Que pode ser a mesma.

As flores
são formas
de que a pintura se serve
para disfarçar
a natureza. Por isso
é que
no perfil
duma flor
está também pintado
o seu perfume.

in "Castália e Outros Poemas"

Albano Dias Martins (n. Fundão, 6 de agosto de 1930)

Ler do mesmo autor, neste blog:
Gramática da noite e do teu corpo
Crepúsculo de Agosto
E me disseste: vem
Entardecer na Praia da Luz

DESTINO DO SER - Fernando de Lacerda (na efeméride dos 150 anos do nascimento)

Nascer... Lutar... Morrer... Será só isto a vida?
Morrer... Parar... Findar... Será só isto a morte?
Será o humano ser como a folha perdida,
Que em vendaval fortuito o Acaso em si transporte?


Nascer, sofrer, lutar! Que vã e inglória lida
Seria para ter tão miserável sorte!
Que inútil criação, que coisa incompreendida
Se o nosso ser findasse ao regelar da morte!

Que valia o viver nas garras da Tortura,
E o nosso esforço ingente em busca da verdade
No Amor, no Ideal, na Fé, no âmago da Natura,

Se o ser se aniquilasse, inútil, no morrer?
Mas não... Não se aniquila. É dele a Eternidade.
Morrer é progredir e acumular saber.

Fernando Augusto de Lacerda e Mello, melhor conhecido simplesmente como Fernando de Lacerda (Loures, 6 de agosto de 1865 – Rio de Janeiro, Brasil, 6 de agosto de 1918)

2015-08-04

Feiticeira - Delfim Guimarães

Nunca lhe confessara o amor ardente
Que ela em mim despertou, mal eu a vira;
Escondia-o no peito, avaramente,
Receando que alguém mo descobrira

Guardava-o p'ra comigo unicamente...
Arrancar-mo? Ninguém o conseguira!
Dizer-lho a ela? Nem sequer à mente
Essa ideia, confesso, me acudira.

Mas certo dia, em seu olhar tão doce
Vi fulgir um clarão, o quer que fosse
Que me intrigou...Interroguei-a a medo,

E soube então, surpreso e alvoroçado,
Que os seus olhos haviam desvendado
O que eu na alma guardava: o meu segredo!


in «Os Dias do Amor, um poema para cada dia do ano», recolha, selecção e organização de Inês Ramos, Ministério dos Livros

Delfim de Brito Guimarães (n. no Porto, em 4 de agosto de 1872; m. na Amadora em 6 de julho de 1933).

Ler do mesmo autor, neste blog:
A Primeira Palavra
A Hora da Partida
A Cor do Cabelo

2015-08-03

Testamento Aberto - Políbio Gomes dos Santos

Só para ver curar minhas pernas partidas
Nas dores eternas
Dos saltos gorados
Eu amo a aparente inconsciência dos loucos,
Embora fique aos poucos nos meus saltos
Desabridos e falhados

Apraz-me, no espelho, esta face esmagada,
à força de querer transpor o além
Da minha porta fechada...

Porém,
Seja o que for, que seja,
Se uma CERTEZA alcanço
E uma mulher me beija.

Que importa
Que eu fique molemente olhando a minha porta
Aberta,
Ou que eu parta e a morte me espreite
Num desfiladeiro?...
E quem virá chorar e quem virá,
Se a morte que vier for a de lá
Certeira e minha...
E merecida como um sono que se dorme
Após a noite perdida?...

E que piedade anda a escrever um frágil,
Na piedade dos ossos
Que trago emprestados...
Que deixarei ficar ao sol e à chuva
E que serão limados
No entulho dos calhaus que também foram rocha?...

Para quê, se mil vezes provoco
Os tombos do chegar e do partir?!
-A minha fragilidade
Foi-me dada
Para me servir


in Poemas Portugueses - Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, Selecção, organização, introdução e notas Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Porto Editora

Políbio Gomes dos Santos (n. Ansião, 7 de agosto de 1911 — m. Ansião, 3 de agosto de 1939)

Do mesmo autor, neste blog:
Epitáfio
Momento
Radiografia
Poema da Voz que Escuta
Genesis

2015-08-01

Gratidão que nem sabe a quem deve ser grata - António Osório

Gratidão de ser
por estes anos
e partículas restantes.

Pela amizade,
que chega a confundir o amor.

Pela bondade,
que torna a solidão desvalida.

Pela hombridade,
à altura do céu.

Pela beleza,
que só à santidade
sobrepassa.

E é flagrante, perdulária,
noutros renascente.

Gratidão
que nem sabe
a quem deve ser grata.

Pelas aves nutrindo os filhos
de penugem e voo.

Pela lentidão escrupulosa
da tartaruga, igual à de Plutão.

Pela leveza materna do vento
transportando pólen.

Pelo calor humílimo
da joaninha sobre a nossa mão.

E por estar na terra
uma só vez, ao sol,
nada pedindo, nenhum segredo,
como um velho lobo-do-mar.


António Osório , in "O lugar do Amor", Gota de Água, Porto, 1981

António Gabriel Maranca Osório de Castro nasceu em Setúbal a 1 de agosto de 1933

 Ler do mesmo autor, neste blog:
Paciências
Um Sentido
Aqui em Siena
Prado e Cofre