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2014-09-30

Canção do Poeta pequenino - José Eduardo Pizarro Drummond


O poeta pequenino
Olhava-me, e a toda gente,
Com olhinhos de quem sente;
Mas não sabia falar...

Ficava horas inteiras
Olhar vago... a meditar.

Certa vez o vi tão triste
Que parecia chorar.

Outras o vi tão contente!
Todo a sorrir e a cantar...

- Mas que cantava o poeta?
Ninguém sabia explicar!

0 poeta morreu menino.

Ai! poeta pequenino
Que não sabia falar...


in Antologia da Nova Poesia Brasileira, J. G . de Araujo Jorge - 1a ed. 1948

José Eduardo Pizarro Drummond nasceu em 30 de setembro de 1925, em São Paulo. Faleceu em 18 de outubro de 2007, na cidade do Rio de Janeiro.

2014-09-29

Sem outro intuito - Luís Miguel Nava


Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.


in Vulcão, Lisboa, Quetzal, 1994

Luís Miguel de Oliveira Perry Nava (nasceu em Viseu, 29 de setembro de 1957 — m. Bruxelas, 10 de maio de 1995)

As ondas que se encontram
Os Pratos da Balança
O Último Reduto

2014-09-28

Como a Noite Descesse - Emílio Moura

Como a noite descesse e eu me sentisse só, só e desesperado
diante dos horizontes que se fechavam
gritei alto, bem alto: ó doce e incorruptível Aurora! e vi logo
só as estrelas é que me entenderiam.

Era preciso esperar que o próprio passado desaparecesse,
ou então voltar à infância.
Onde, entretanto, quem me dissesse
ao coração trêmulo:
- É por aqui!

Onde, entretanto, quem me dissesse
ao espírito cego:
- Renasceste: liberta-te!

Se eu estava só, só e desesperado,
por que gritar tão alto?
Por que não dizer baixinho, como quem reza:
- Ó doce e incorruptível Aurora...

se só as estrelas é que me entenderiam?


Emílio Guimarães Moura (n. Dores do Indaiá, Minas Gerais, em 14 de agosto de 1902 — f. em 28 de setembro de 1971, em Belo Horizonte, Minas Gerais)

Pernmanência do Poema
Canção
Sombras Fraternas

2014-09-27

Numa Tarde Macia - Rodrigues de Abreu

Quando a tarde agoniza, eu sonho. E então levanto
o meu sonho de amor para o céu, como santo,
pois sei que uma mulher vem, mansa como a brisa,
colher meu sonho bom, quando a tarde agoniza...

Como uma procissão de freiras tristes, passa
a lenta procissão das sombras. No ar esvoaça
tênue aroma, sutil sonho da terra mansa
que adormece em silêncio e em incerta esperança...
Na tarde, as flores têm desejos de pecar:
o Desejo desdobra as asas, voa no ar,
quando a primeira estrela aparece no fundo
do firmamento, para enamorar o mundo...
O céu é um grande espelho embaciado de sangue...
E há no céu e há na terra uma tão pura e langue
agonia de sons, que, nessa hora, parece
que o Mundo se ajoelha em postura de prece!

O Santo Sonho plange, em soluços, nos sinos,
e erra, brancas, no espaço as almas dos violinos...
A tarde, na agonia, interpreta, sonora,
Schumann, Schubert, Chopin, pois uma tarde chora...

Como eu, o vale pensa, e no alto, a nuvem pensa...
A mesma alma que vem do céu e, triste e imensa,
erra na tarde, vive em mim, cheia de sono:
minha alma é tarde triste e musical de Outono...

Quando a tarde agoniza e suave chora, quanto
envolve as coisas, numa angústia, a alma do pranto,
os anjos descem do alto, abraçando violetas
e colhem, suavemente, os sonhos dos poetas...
Foi numa tarde assim, quando os anjos desciam
do céu e os sonhos bons, suavemente, colhiam,
que uma mulher tomou a forma de anjo e veio,
entre os anjos, colher a flor do meu anseio...
E ela veio, e colheu meu sonho, e, comovida,
se tornou a minha Ânsia e a Só na minha vida...

Eis porque, quando a tarde agoniza, eu levanto
o meu sonho de amor para o céu como um santo:
pois ela sempre vem, nas asas de uma brisa,
colher meu sonho bom, quando a tarde agoniza...


(A Sala dos Passos Perdidos)


Benedito Luís RODRIGUES DE ABREU (nasceu em Capivari (SP) a 27 de setembro de 1897 e morreu em Bauru (SP) a 24 de novembro de 1927).

Ler do mesmo autor, neste blog:
Casa Destelhada
Mar Desconhecido
Ao Luar
Suprema Glória
Crianças
As Andorinhas

Sorrisos da Califórnia - Ramiro Dutra

Lagos de anil, poentes de carmim,
Pomares que rescendem no calor,
Manadas branco e pretas sem ter fim,
Colinas prenhes de pão e de amor.

Vinhal fecundo, imenso jardim,
Por ti eu rendo graças ao Senhor,
Por tudo que me deu e sinto em mim,
Por tudo que contemplo ao meu redor.

E se algum ignorante ou esquecido
Tentar cobrir no fundo do olvido
Teus sorrisos e graças, tuas cores,

Lembrarei que do mar no outro lado,
Doutro jardim à beira-mar plantado
É que vieram muitas destas flores.


Ramiro Carvalho Dutra nasceu a 27 de setembro de 1931, na ilha de São Miguel, Açores.

Tua mão em mim - Marina Colasanti

Você me acorda no meio da noite
e eu que navegava tão distante
cravada a proa em espumas
desfraldados os sonhos
afloro de repente entre as paradas ondas dos lençóis
a boca ainda salgada mas já amarga
molhada a crina
encharcados os pêlos
na maresia que do meu corpo escorre.
Cravam-se ao fundo os dedos do desejo.
A correnteza arrasta.
Só quando o primeiro sopro escapar
entre os lábios da manhã
levantarei âncora.
Mas será tarde demais.
O sol nascente terá trancado o porto
e estarei prisioneira da vigília.


Marina Colasanti (Sant'Anna) nasceu em 26 de setembro de 1937, em Asmara (Eritréia), Etiópia (Possui nacionalidade brasileira e naturalidade italiana).

Da mesma autora: Frutos e Flores

2014-09-25

poema sobre o amor eterno - valter hugo mãe

inventaram um amor eterno. trouxeram-no em braços para o meio das pessoas e ali ficou, à espera que lhe falassem. mas ninguém entendeu a necessidade de sedução. pouco a pouco, as pessoas voltaram a casa convictas de que seria falso alarme, e o amor eterno tombou no chão. não estava desesperado, nada do que é eterno tem pressa, estava só surpreso. um dia, do outro lado da vida, trouxeram um animal de duzentos metros e mil bocas e, por ocupar muito espaço, o amor eterno deslizou para fora da praça. ficou muito discreto, algo sujo. foi como um louco o viu e acreditou nas suas intenções. carregou-o para dentro do seu coração, fugindo no exacto momento em que o animal de duzentos metros e mil bocas se preparava para o devorar

in 'contabilidade'

Valter Hugo Mãe nasceu em Saurimo, Angola, em 25 de Setembro de 1971.

Do mesmo autor, ler:
brincávamos a cair nos braços um do outro
se o corpo é um

2014-09-24

Outono - Fernando Semana



Quedam as folhas ocres, rumores subtis,
Extintas são as alegrias primaveris...
E as penumbras das tardes purpúricas
Alimentam o sonho das artes pictóricas.

Mas oco, vago, pelo jardim perambulo
Como, na madrugada, um sonâmbulo.
Com o imo silêncio me desgoverno
Na antecâmara do prenunciado Inverno.

Vai… Ultrapassa essa diáfana calma
Antes quero o calor tórrido, o frio agreste
E à brisa suave prefiro o vento leste…

Onde param as tardes esperançosas
Das noites magníficas e voluptuosas
Em que refulgiam o corpo e a alma?


Fernando Semana nasceu em Valbom, concelho de Gondomar a 12 de Outubro de 1957

TARDE CINZENTA - Geraldo Coelho Vaz

Tenho medo da tarde cinzenta
porque ela me traz
um enorme desejo de ser infeliz.

E nesse instante,
mais que um instante,
a voz grave do coração
me cerca e procuro fugir.

Os sinos da minha terra
gritam o pavor corpóreo
do homem que desconheço
e o horror da vida
e do mistério
que sempre me acompanham.

Tenho medo da tarde cinzenta.


Extraído daqui


Geraldo Marmo Coelho Vaz nasceu em Goiânia, Goiás, em 24 de setembro de 1940

2014-09-23

E porque hoje começou o outono: Outonal - Florbela Espanca


Caem as folhas mortas sobre o lago;
Na penumbra outonal, não sei quem tece
As rendas do silêncio... Olha, anoitece!
- Brumas longínquas do País do Vago...

Veludos a ondear... Mistério mago...
Encantamento... A hora que não esquece,
A luz que a pouco e pouco desfalece,
Que lança em mim a bênção dum afago...

Outono dos crepúsculos doirados,
De púrpuras, damascos e brocados!
- Vestes a terra inteira de esplendor!

Outono das tardinhas silenciosas,
Das magníficas noites voluptuosas
Em que eu soluço a delirar de amor...


Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"

Sem segredo algum - António Ramos Rosa

Rodeio-te de nomes, água, fogo, sombra,
 vagueio dentro das tuas formas nebulosas.
Como um ladrão aproximo-me entre palavras e nuvens.
Não te encontrei ainda. Falo dentro do teu ouvido?
Entre pedras lentas, oiço o silêncio da água.

A obscuridade nasce. Tens tu um corpo de água
ou és o fogo azul das casas silenciosas?
Não te habito, não sou o teu lugar, talvez não sejas nada
ou és a evidência rápida, inacessível,
que sem rastro se perde no silêncio do silêncio.

O que és não és, não há segredo algum.
Selvagem e suave, entre miséria e música,
o coração por vezes nasce. As luzes acendem-se na margem.
Estou no interior da árvore, entre negros insectos.
Sinto o pulsar da terra no seu obscuro esplendor.


in Volante Verde (1986)

António Víctor Ramos Rosa nasceu em Faro a 17 de outubro de 1924 e faleceu em Lisboa a 23 de setembro de 2013.


Ler do mesmo autor neste blog:
Ninguém me disse: Vai por este caminho de água
A Festa do Silêncio
Este Viver Comum
Vertentes
Não posso adiar o amor...
Poema Dum Funcionário Cansado

2014-09-22

Tudo é Merda - Damasceno Bezerra


O mundo é simplesmente merda pura
E a própria vida é merda engarrafada;
Em tudo vive a merda derramada,
Quer seja misturada ou sem mistura.

É merda o mal e o bem merda em tintura,
A glória é merda apenas e mais nada.
A honra é merda e merda bem cagada;
É merda o amor, é merda a formosura.

É merda e merda rala a inteligência!
De merda viva é feita a consciência,
É merda o coração, merda o saber.

Feita de merda é toda a humanidade,
E tanta merda a pobre terra invade,
Que um soneto de merda eu quis fazer...

Antônio Damasceno Bezerra nasceu em Natal em 22 de setembro de 1902, falecendo em 14 de setembro de 1947

2014-09-20

Negra - Noémia de Sousa

Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos
quiseram cantar teus encantos
para elas só de mistérios profundos,
de delírios e feitiçarias...
Teus encantos profundos de África.

Mas não puderam.
Em seus formais e rendilhados cantos,
ausentes de emoção e sinceridade,
quedas-te longínqua, inatingível,
virgem de contactos mais fundos.
E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual,
jarra etrusca, exotismo tropical,
demência, atracção, crueldade,
animalidade, magia...
e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias.

Em seus formais cantos rendilhados
foste tudo, negra...
menos tu.

E ainda bem.
Ainda bem que nos deixaram a nós,
do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma,
sofrimento,
a glória única e sentida de te cantar
com emoção verdadeira e radical,
a glória comovida de te cantar, toda amassada,
moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE


Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares nasceu a 20 de setembro de 1926, em Lourenço Marques (hoje Maputo), Moçambique, e faleceu a 4 de dezembro de 2002, em Cascais, Portugal.

Da mesma autora:
Se me quiseres conhecer
Se este poema fosse

2014-09-19

MENINA VESTIDA DE NOITE - Maria Rosa Colaço

Menina de preto
Tão triste! Tão nua!
Corpinho de fome
Olhinhos da lua

De lua de luto
Da lua de dó
Menina de preto
Tão triste! Tão só!

Menina, menina
Tão rica de nada
Dá a tua mão
De flor desfolhada

Dá-me a tua mão
Anda ver a vida
Menina calada
De preto vestida.


Maria Rosa Colaço nasceu no Torrão, Alcácer do Sal, em 19 de setembro de 1935 e faleceu em Lisboa a 13 de outubro de 2004)

Da mesma autora, neste blog: Outra Margem

2014-09-18

Poema X de Brasões [Fim de tarde serena e violentada] - Bernardino Lopes

Fim de tarde serena e violetada ...
No céu — duas estrelas, e arrepios
Na safira do mar, toda coalhada
De emaranhados mastros de navios.

Longe, entre névoas, traços fugidios
De uma cidade branca derramada
— Casas, torreões e coruchéus esguios,
Por toda a clara fita da enseada.

Aqui bem peno, aqui, na argêntea praia,
Contra um rochedo nu, calcáreo e rudo,
Do poente a frouxa claridade estampa,

Balançando-se n’água, uma catraia;
E, agasalhados no gibão felpudo,
Pescadores que vão subindo a rampa...


in Brasões (1895)

Bernardino da Costa Lopes (n. em Boa Esperança, Rio Bonito, Rio de Janeiro, a 19 de Jan. de 1859; m. em 18 de Set. 1916, no Rio de Janeiro).

Ler do mesmo autor, neste blog:
Namorados
Velho Muro
Berço
Cromo
Paraíso Perdido

Poema do Silêncio - José Régio

Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
- Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.


in "As Encruzilhadas de Deus"

José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira (Vila do Conde, 17 de setembro de 1901 — Vila do Conde, 22 de dezembro de 1969)

Ler do mesmo autor neste blog:
Narciso
Adeus
Soneto de Amor
Toada de Portalegre
Cântico Negro
Fado Português
Os Epitáfios: Epitáfio Para Um Poeta
Quando eu Nasci
Meu Menino Ino, Ino
Poema do Silêncio

2014-09-16

O Artista - António Carneiro

Da saleta na luz esmaecida
O perfil se lhe esbate, eterizado.
Toca... e o seu gesto é, como o som, alado...
E a música é mais funda e mais diluída...

Em tarantela mágica no ambiente
Erram, presos a um único destino,
Os silfos e os acordes do violino...
Fremem anseios, misteriosamente...

Toca... Do seu olhar a ígnea chama
Constrói, alenta e, pródiga, derrama
Magas vidas que bailam em redor.

E escutando-o, nessa hora de beleza,
Meu coração mordido de incerteza,
Reencontra com a paz um novo ardor.

in Solilóquios Sonetos Póstumos

António Teixeira Carneiro Júnior nasceu em Amarante a 16 de setembro de 1872 e faleceu no Porto a 31 de março de 1930.

Ler do mesmo autor neste blog: Caminho da Verdade

Loveliest Poem - Arvo Turtiainen

The loveliest poem is born
when you are close to someone,
when tenderness,
simple and boundless,
without questions
flows from one to the other.

You do not forget the loveliest poem.
It is stamped on your forehead, eyes,
lips and heart,
stamped for lovers to read,
for lovers to surrender.


Arvo Turtiainen (Helsinqui, 16 september 1904 - 8 october 1980)

2014-09-15

O Relógio - Rubem Alves

Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores, escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas… De dia, tudo era luminoso. Mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio… De dia, ele estava lá também. Só que era diferente. Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar, e suas músicas eram seus sonhos, iguais aos de todos os outros relógios. De noite, ao contrário, quando todos dormiam, ele acordava, e começava a contar estórias. Só muito mais tarde vim a entender o que ele dizia: “Tempus fugit“. E eu ficava na cama, incapaz de dormir, ouvindo sua marcação sem pressa, esperando a música do próximo quarto de hora. Eu tinha medo. Hoje, acho que sei por quê: ele batia a Morte. Seu ritmo sem pressa não era coisa daquele tempo da minha insônia de menino. Vinha de muito longe. Tempo de musgos crescidos em paredes húmidas, de tábuas largas de assoalho que envelheciam, de ferrugem que aparecia nas chaves enormes e negras, da senzala abandonada, dos escravos que ensinaram para as crianças estórias de além-mar “dinguele-dingue que eu vou para Angola, dingue-ledingue que eu vou para Angola“ de grandes festas e grandes tristezas, nascimentos, casamentos, sepultamentos, de riqueza e decadência… O relógio batera aquelas horas – e se sofrera, não se podia dizer, porque ninguém jamais notara mudança alguma em sua indiferença pendular. Exceto quando a corda chegava ao fim e o seu carrilhão excessivamente lento se tomava num pedido de socorro: “Não quero morrer…“ Aí, aquele que tinha a missão de lhe dar corda – (pois este não era privilégio de qualquer um. Só podia tocar no coração do relógio aquele que já, por muito tempo, conhecesse os seus segredos) – subia numa cadeira e, de forma segura e contada, dava voltas na chave mágica. O tempo continuaria a fugir… Todas aquelas horas vividas e morridas estavam guardadas. De noite, quando todos dormiam, elas saíam. O passado só sai quando o silêncio é grande, memória do sobrado. E o meu medo era por isto: por sentir que o relógio, com seu pêndulo e carrilhão, me chamava para si e me incorporava naquela estória que eu não conhecia, mas só imaginava. Já havia visto alguns dos seus sinais imobilizados, fosse na própria magia do espaço da casa, fosse nos velhos álbuns de fotografia, homens solenes de colarinho engomado e bigode, famílias paradigmáticas, maridos assentados de pernas cruzadas, e fiéis esposas de pé, ao seu lado, mão docemente pousada no ombro do companheiro. Mas nada mais eram que fantasmas, desaparecidos no passado, deles, não se sabendo nem mesmo o nome. "Tempus fugit". O relógio toca de novo. Mais um quarto de hora. Mais uma hora no quarto, sem dormir… Sentia que o relógio me chamava para o seu tempo, que era o tempo de todos aqueles fantasmas, o tempo da vida que passou. Depois o sobradão pegou fogo. Ficaram os gigantescos barrotes de pau-bálsamo fumegando por mais de uma semana, enchendo o ar com seu perfume de tristeza. Salvaram-se algumas coisas. Entre elas, o relógio. Dali saiu para uma casa pequena. Pelas noites adentro ele continuou a fazer a mesma coisa. E uma vizinha que não suportou a melodia do “Tempus fugit“ pediu que ele fosse reduzido ao silêncio. E a alma do relógio teve de ser desligada.

Tenho saudades dele. Por sua tranqüila honestidade, repetindo sempre, incansável, “Tempus fugit“. Ainda comprarei um outro que diga a mesma coisa. Relógio que não se pareça com este meu, no meu pulso, que marca a hora sem dizer nada, que não tem estórias para contar. Meu relógio só me diz uma coisa: o quanto eu devo correr, para não me atrasar. Com ele, sinto-me tolo como o Coelho da estória da Alice, que olhava para seu relógio, corria esbaforido, e dizia: “Estou atrasado, estou atrasado…“

Não é curioso que o grande evento que marca a passagem do ano seja uma corrida, corrida de São Silvestre?

Correr para chegar, aonde?

Passagem de ano é o velho relógio que toca o seu carrilhão.

O sol e as estrelas entoam a melodia eterna: “Tempus fugit“.

E porque temos medo da verdade que só aparece no silêncio solitário da noite, reunimo-nos para espantar o tenor, e abafamos o ruído tranqüilo do pêndulo com enormes gritarias. Contra a música suave da nossa verdade, o barulho dos rojões…

Pela manhã, seremos, de novo, o tolo Coelho da Alice: “Estou atrasado, estou atrasado…“

Mas o relógio não desiste. Continuará a nos chamar à sabedoria:

Quem sabe que o tempo está fugindo descobre, subitamente, a beleza única do momento que nunca mais será…


Extraído daqui dos Badulaques de Rubem Alves

Rubem Alves (Boa Esperança, Minas Gerais, 15 de setembro de 1933 — Campinas, São Paulo, 19 de julho de 2014)

2014-09-14

Voltando à Casa - Padre António Tomás

Passei um mês, um mês inteiro, fora
Do meu lar, sem ouvir os passarinhos,
Sem ver o louro bando de amiguinhos
Que aí deixei! Triste e cruel demora.

Mas, afinal, eis-me de volta agora,
E na ânsia de ver os coitadinhos,
Que suspiram talvez por meus carinhos,
Fustigo o meu corcel, que o chão devora.

Avisto a casa além, dobro a tortura
Que dela me separa...Oh! que ventura
Eu sinto na alma ao ir-me aproximando!

Chego ao portal, puxo o ferrolho e entro,
E me recebem pela sala a dentro
Crianças rindo e pássaros cantando.


Padre Antônio Thomaz Sales (nasceu em Acarati, Ceará a 14 de setembro de 1868 e faleceu em Fortaleza, Ceará, a 16 de julho de 1941).

Ler do mesmo autor, neste blog:
A Morte do Jangadeiro
Contraste
Pesca da Pérola
Desenganos

2014-09-13

Bilhete para amigo ausente - Natália Correia

Lembrar teus carinhos induz
a ter existido um pomar
intangíveis laranjas de luz
laranjas que apetece roubar.

Teu luar de ontem na cintura
é ainda o vestido que trago
seda imaterial seda pura
de criança afogada no lago.

Os motores que entre nós aceleram
os vazios comboios do sonho
das mulheres que estão à espera
são o único luto que ponho.


in "O Vinho e a Lira"

Natália de Oliveira Correia (n. na Ilha de S. Miguel, Açores a 13 de setembro de 1923; m. em Lisboa a 16 de março de 1993).

Ler da mesma autora:
A recusa das imagens evidentes
O Espírito
Queixa das almas jovens censuradas
Poema destinado a haver domingo
O Sol nas noites e o Luar nos dias
Retrato Talvez Saudoso da Menina Insular
Boletim Meteorológico
Nictofagia
Na Câmara de Reflexão IV
A luz meridional que, rigorosa
Fiz um conto para me embalar
Poema dirigido ao deputado João Morgado

2014-09-12

Como se podem influenciar conclusões através de estatísticas...

O jornal «A Bola» de hoje a propósito da seleção nacional de futebol e sobre a «performance« dos treinadores diz que «apenas Humberto Coelho, José Augusto, António Oliveira e Luiz Filipe Scolari têm médias de vitórias superiores» a Paulo Bento.

Em primeiro lugar importa dizer que até nem é verdade! A Bola apesar de apresentar na tabela os resultados do selecionador Manuel Luz Afonso que é, afinal, de todos, o que tem maior percentagem de vitórias: 15 em 20 jogos ou seja 75%, esquece-o no texto.

Não se percebe é porque se elegeu como critério de análise de «performance» do selecionador o número de vitórias num desporto em que existem três resultados possíveis: vitória, empate e derrota. Para o critério seguido pel'A Bola ter empatado ou perdido os jogos em que não se conseguiu ganhar passa indiferentemente quando bem se sabe que as conclusões que se devem tirar devem ser (e são!) bem diversas.

Assim, o critério de média de pontos obtidos (considerando um patamar mínimo de jogos disputados) é estatisticamente um critério muito mais adequado do que a % de vitórias. Neste caso atribuindo 3 pontos à vitória e 1 ponto ao empate (o que até já valoriza significativamente a vitória em relação ao empate quando se sabe que durante muito tempo a vitória correspondia apenas a 2 pontos e o empate a um) o ranking dos treinadores alterar-se-ia ficando Carlos Queiroz à frente de Paulo Bento.

A Bola, que considero a Bíblia do futebol, ultimamente tem vindo - no meu entendimento, é claro - a reduzir drasticamente o seu rigor de análise.

Para além de esquecer Manuel de Luz Afonso - o selecionador, esse sim, que teve maior percentagem de vitórias e também o de maior percentagem de pontos conquistados, merecendo o destaque no artigo (e sobre ele não há uma única referência!!!)- elege um critério (% de vitórias) que não atende aos três resultados possíveis do jogo. Enquanto a percentagem de vitórias de Paulo Bento é de 55,3% à frente de Carlos Queiroz que só teve 51% de vitórias, a realidade é que nos jogos em que não houve vitórias da seleção portuguesa Queiroz teve 16 empates e apenas 8 derrotas enquanto Paulo Bento teve 9 empates e 12 derrotas!

É um pequeno factor mas como dizia o outro faz toda a diferença!

Ranking de % de vitórias:

Manuel da Luz Afonso 75,0%
Humberto Coelho 66,7%
José Augusto 60,0%
António Oliveira 59,1%
Luis Filipe Scolari 56,8%
Paulo Bento 55,3%
Carlos Queiroz 51,0%
...

Ranking por média de pontos (V=3p. E=1p.)

Manuel da Luz Afonso 2,35 p
Humberto Coelho 2,17
José Augusto 2,07
António Oliveira 2,00
Luis Filipe Scolari 1,95
Carlos Queiroz 1,86
Paulo Bento 1,85
...

Noites Amadas - Auta de Souza


Ó noites claras de lua cheia!
Em vosso seio, noites chorosas,
Minh’alma canta como a sereia,
Vive cantando n’um mar de rosas;

Noites queridas que Deus prateia
Com a luz dos sonhos das nebulosas,
Ó noites claras de lua cheia,
Como eu vos amo, noites formosas!

Vós sois um rio de luz sagrada
Onde, sonhando, passa embalada
Minha Esperança de mágoas nua...

Ó noites claras de lua plena
Que encheis a terra de paz serena,
Como eu vos amo, noites de lua!

Macaíba - Agosto de 1898.

Auta de Sousa nasceu em Macaíba, RN, no dia 12 de setembro de 1876; f. Natal, 7 de fevereiro de 1901.



Ler da mesma autoria:
Ao Luar
Ao Pé do Túmulo
Caminho do Sertão
Elegia número 16

2014-09-11

Nirvana - Antero de Quental

A Guerra Junqueiro

Para além do Universo luminoso,
Cheio de formas, de rumor, de lida,
De forças, de desejos e de vida,
Abre-se como um vácuo tenebroso.

A onda desse mar tumultuoso
Vem ali expirar, esmaecida...
Numa imobilidade indefinida
termina ali o ser, inerte, ocioso...

E quando o pensamento, assim absorto,
emerge a custo desse mundo morto
E torna a olhar as coisas naturais,

À bela luz da vida, ampla, infinita,
Só vê com tédio, em tudo quanto fita,
A ilusão e o vazio universais.


Sonetos (1861)

Antero Tarquínio de Quental (n. Ponta Delgada, S.Miguel, Açores a 18 de abril 1842; m. em Ponta Delgada, a 11 setembro 1891)

Ler do mesmo autor, neste blog:
Despondency
Visita
Idílio
Consulta
O Que Diz a Morte
Ideal
Versos escritos num exemplar das «Flores do Mal»
Velut Umbra
Pepa (excerto)
Palácio da Ventura
Mors-Amor

2014-09-10

Aprendizado - Ferreira Gullar

Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão

Que a vida só consome
o que a alimenta.


in Barulhos (1987)

José Ribamar Ferreira, que usa o pseudónimo literário de FERREIRA GULLAR, nasceu em São Luís, Maranhão, Brasil, a 10 de setembro de 1930 e é Prémio Camões (2010).

Ler do mesmo autor, no Nothingandall:
Neste leito de ausência em que me esqueço
No Corpo
Cantiga para não morrer
Um Instante
Traduzir-se

2014-09-09

Nihil - Guimarães Passos

Sem aos outros mentir, vivi meus dias
desditosos por dias bons tomando,
das pessoas alegres me afastando
e rindo às outras mais do que eu sombrias.

Enganava-me assim, não me enganando;
fiz dos passados males alegrias
do meu presente e das melancolias
sempre gozos futuros fui tirando.

Sem ser amado, fui feliz amante;
imaginei-me bom, culpado sendo;
e se chorava, ria ao mesmo instante.

E tanto tempo fui assim vivendo,
de enganar-me tornei-me tão constante,
que hoje nem creio no que estou dizendo.


Sebastião Cícero dos Guimarães Passos nasceu em Maceió, Alagoas, no dia 22 de março de 1867, e faleceu em Paris, no dia 9 de setembro de 1909.

Ler do mesmo autor, neste blog:
Dilema
Paradoxo
Mea Culpa
...Depois
Pubescência
XLI - Crianças fomos, como tal, tu, louca...

2014-09-08

Realidade - Isabel de Sá

Por causa de um livro
vieste ao meu encontro.
Era Verão, não sabias de nada
nem isso interessava. Palavras
amavam-se fora de ti,
no atropelo das emoções.
Lá chegaria a primeira vez,
o encontro apressado num lugar
público. Desfeito o erro
ao toque da pele, não sei
se havia medo, a paixão queria-me
no lugar exacto do teu coração.
Palavras enrolaram-se na sombra
da vida a dor do sentimento.

Atingido o espírito, o tempo
da infância, a realidade. Em ti
a solidão que o prazer
não mata. Quero a beleza
dos versos revelada.
Alguns anos passaram sobre
a nossa história que não acabou.
A tarde envelhece e escrevo isto
sem saber porquê.
A Erosão dos Sentimentos, 1997


Extraído de Poemas de Amor. Antologia de poesia portuguesa. Organização e prefácio de Inês Pedrosa.
Publicações Dom Quixote

Isabel de Sá nasceu em Esmoriz a 8 de setembro de 1951.

2014-09-07

Ao longe os barcos de flores - Camilo Pessanha

Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil na escuridão tranquila.
-Perdida voz que de entre as mais se exila
-Festões de som dissimulando a hora

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta fébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...


in Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, de Eugénio de Andrade,
Campo das Letras

CAMILO de Almeida PESSANHA nasceu em Coimbra a 7 de setembro de 1867 e morreu, tuberculoso, em Macau (China) a 1 de março de 1926.

Ler neste blog, do mesmo autor:
Interrogação
Singra o navio. Sob a água clara
Castelo de Óbidos
Água Morrente
Fonógrafo
Desce em Folhedos Tenros a Colina
Estátua
Foi um dia de inúteis agonias
Quem poluiu quem rasgou os meus lençois de linho
Floriram por engano as rosas bravas
Caminho I
Queda

2014-09-06

Oásis - Pedro Homem de Mello, na passagem dos 110 anos do nascimento do poeta portuense

Aquela praia-contraste
Entre a liberdade e a lei
(Aquela praia ignorada!)
Foste tu que ma mostraste
Ou fui eu que a inventei?
Lençol de seda ou de linho?
Lençol de linho bordado?
Deitei-me nele ao comprido...
Lençol de seda ou de linho?
Lençol de espuma comprido...
Lençol de areia queimado!
Ai! aquela praia! Aquela
Que, na minha embriaguez
Manchei sem dó! Fiquei triste
Logo da primeira vez
Em que a vi... Não o sentiste?
Agora, lembro-me dela
Como de um lençol de renda
Rasgado por minha mão...
E fico triste, tão triste!
Todas as praias são brancas
E só aquela é que não!
Moinhos que andais no vento,
Leite que escorres na Lua,
Quero pedir-vos perdão!
Mas é tão grande, tão grande
Ai! é tão grande o contraste
Entre a liberdade e a Lei
Que, às vezes até nem sei
Se aquela praia ignorada
Foste tu que me mostraste
Ou fui eu que a inventei...


in 366 poemas que falam de amor, uma antologia organizada por Vasco da Graça Moura, Quetzal Editores

Pedro da Cunha Pimentel Homem de Mello (n. Porto em 6 de Setembro de 1904 - m. Porto, 5 de Março de 1984).

2014-09-05

Madrigal LIII [Tu és no campo, ó Rosa,] - Silva Alvarenga

imagem daqui

Tu és no campo, ó Rosa,
A flor de mais beleza
De quantas produziu a Natureza
Que em tuas perfeições foi cuidadosa.
E se Glaura formosa
No seio dos prazeres te procura,
Qual outra flor será de mais ventura,
Ou mais digna de amor ou mais mimosa?
Tu és no campo, ó Rosa,
A flor de mais ventura e mais beleza
De quantas produziu a Natureza.

Manuel Inácio da Silva Alvarenga (Vila Rica, atual Ouro Preto MG, 5 de setembro de 1749* - Rio de Janeiro RJ, 1 de novembro de 1814).

* a data de nascimento, que na maior parte das fontes não é precisa, consta a páginas 26 de «Vida e Obra de Castro Alves», de Múcio Teixeira, Bahia, Tip. e Encadernação do »Diário da Bahia», 1896

2014-09-04

a criança em ruínas I - José Luís Peixoto

fico admirado quando alguém, por acaso e quase sempre
sem motivo, me diz que não sabe o que é o amor.
eu sei exactamente o que é o amor. o amor é saber
que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.
o amor é saber que vamos perdoar tudo a essa parte
de nós que não é nossa. o amor é sermos fracos.
o amor é ter medo e querer morrer.


José Luís Peixoto (nasceu em Galveias, Ponte de Sor, em 4 de setembro de 1974)

Do mesmo autor:
Explicação da Eternidade
Na Hora de Pôr a Mesa

Isso até me agrada. Que me deitem fora - Raul de Carvalho, na passagem dos trinta anos sobre o seu desaparecimento

Isso até me agrada. Que me deitem fora
Que me deixem livre de compromissos afectivos.
Ficar ligeiro por dentro; ser como casca só. 
Não tropeçar nos detritos humanos
Que me cercam, 
Não ter altivez nenhuma nisso. 
Ser simplesmente um andante.
Ter o caminho livre.


Raul Maria Penedo de Carvalho (n. em Alvito, Baixo Alentejo, a 4 de setembro de 1920; m. no Porto a 3 de setembro de 1984).

Ler do mesmo autor, neste blog:
Mesa da Solidão
Guio-me
Amíude
Quando eu nasci, minha Mãe
Coração Sem Imagens;
Serenidade És Minha

2014-09-02

Retrato da Minha Cidade - Carlos Maul

Minha cidade verde, aberta às claridades
Que o céu derrama em turbilhão de estrelas,
Não me espicaçam pontas de saudades,
Nem existem motivos para tê-las..

É que eu te sinto em mim, tal como outrora
Ainda te vejo em teus primeiros dias,
Como a cantar numa perpétua aurora
De nossa infância as lindas melodias.

Ouço os passos da marcha dos pioneiros
Nas picadas da serra
Batem machados, tombam robles altaneiros,
E na queda um rumor se levanta
Como um grito de dor escapo da garganta
Da terra.

Ouço os passos da marcha dos pioneiros...
Lá vão eles, vão subindo, vão subindo,
Vão sofrendo, vão cantando, vão sorrindo,
Heróis sem nome, mas heróis porque os primeiros...
Quanto tempo durou a caminhada...
Chuva e sol, calmaria e tempestade,
Nada os deteve nessa ríspida escalada
Para a conquista da felicidade...

Dias rudes de sombra, os músculos retezos
No manejo da enxada e dos terçados,
Viveram eles ao trabalho escravizados,
mas alegres, à luz de um sonho presos.

Ouço os passos da marcha dos pioneiros...

Apenas a esperança os acompanha
Nessa dura ascensão. E como são ligeiros!...
E assim nasceu das mãos desses pioneiros
Minha linda cidade da montanha...
Escuto-lhes a voz nas marcha da subida...
Parece um canto-chão
De homens que vêm da morte para a vida
Cheios de fé no coração.

Oh! Minha cidade verde,
Não me emocionam as chaminés das tuas fábricas,
Nem a trepidação das tuas máquinas,
Nem os palácios que se escondem nos teus bosques
Envergonhados da própria opulência.
A civilização mudou tua fisionomia,
Deu-te outras formas, transformou-te as linhas,
Mas na minha fantasia
Continuas a ser a aldeia pequenina,

Fresca juvenil e perfumada,
Com ares de menina
Na verdura a correr de madrugada
Como ninfa nascida da neblina.

És mais formosa assim, e em tuas águas espelhas
Os perfis dos teus montes,
A sombra das tuas pontes,
Das tuas pontes vermelhas...
Vem-me às narinas o teu cheiro agreste,
E eu te vejo melhor nos teus traços antigos:
Uma candura, uma expressão celeste
Na carícia das mãos, nos afagos amigos...

E o mesmo luar com que iluminavas as estradas
Nas noites frias das tuas doces primaveras,
Sinto-o agora, talvez mais claro e mais risonho
Do que nos dias das fulgentes alvoradas
Em que eras
A verdadeira fonte do meu sonho...

Encantada visão do alto da serra
Em cujos fogos minha alma se incendeia,
És a mesma feiticeira
Que vinha, sorrateira,
Para apagar a luz dos lampeões da terra
Se no céu se acendia a lua cheia.

Ouço o canto orfeônico dos órgãos das tuas igrejas
Onde aprendi a crer...
Minha terra cristã dos meus primeiros anos,
Quero que nesses templos me revejas
Com teus bondosos frades franciscanos
Que me ensinaram a ler...

Ressurges das tuas brumas a meu lado,
Na macia brancura de inocente,
Ressoa em mim a voz desse passado,
Que de tão vivo está em mim presente.
Com ternura penetro-te os refolhos,
De tuas claridades me ilumino,
E suponho que em dias de menino
Roubei do céu o azul para os meus olhos.

De mil belezas te douras
Nesse esplêndido fulgor
Do teu eterno arrebol.
E em teu regaço entesouras,
- Cidade do meu amor –
Crianças fortes e louras,
De cabecinhas de sol...


Carlos Maul nasceu em 2 de setembro de 1887, em Petrópolis e faleceu em 13 de março de 1973

Da mesma autoria: A Montanha de Cristo

2014-09-01

Madrugada - Marcelino Mesquita

Dentre a relva orvalhada, a cotovia
Encastela no ar cantando e rindo;
O vago azul do céu vão colorindo
Os largos tons de luz, núncios do dia.

Desfaz-se lentamente a névoa fria
Como véu que se rasga e vão caindo,
Como bagas de anoso tamarindo
Para a terra, os cristais que a noite cria.

Fumegam chaminés pelas aldeias
E, correm para o mar, além, distante,
Os rios semelhando enormes veias.

Aqui e além soturno caminhante...
Os rebanhos beijando as valas cheias,
Na rubra luz do sol purpureante.


Marcelino Mesquita nasceu no Cartaxo a 1 de Setembro de 1856 e faleceu a 7 de Junho de 1919