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2013-11-30

Poema em linha reta - Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


FERNANDO António Nogueira PESSOA nasceu a 13 de Junho de 1888 e faleceu em Lisboa a 30 de Novembro de 1935.

Mais poemas de Fernando Pessoa, neste blog:
Passava eu na estrada pensando impreciso
Dá a Surpresa de Ser
António de Oliveira
Os Ratos
Nada Sou, Nada Posso, Nada Sigo
Se Alguém Bater
Aguardo - Ricardo Reis
Tanho Uma Grande Constipação (Álvaro de Campos)
Deus Sabe Melhor Do Que Eu
Suspense / Ansiedade
Tabacaria
Liberdade
Não Quero Recordar Nem Conhecer-me (Ricardo Reis)
Intervalo - Bernardo Soares
O guardador de rebanhos - X (Alberto Caeiro)
O guardador de rebanhos - XXI (Alberto Caeiro)
O guardador de rebanhos - XXVIII (Alberto Caeiro)
O Tejo é mais belo ...
Não sei se é sonho se é realidade
Odes - Ricardo Reis
Cruz na porta da tabacaria
Fragmentos do Livro do desassossego - Bernardo Soares
Afinal a melhor maneira de viajar é sentir...
Todas as cartas de amor são...
Se te queres matar ...
Dai-me rosas e lírios...
Sou vil, sou reles como toda a gente...
Não sei se é amor que tens
O que há em mim é sobretudo cansaço
Mar português
Ode marcial - h
Lycanthropy
Conselho
Para além da curva da estrada (Alberto Caeiro)
Sopra demais o vento
Poema da Canção sobre a Esperança
Soneto 1 de 35 sonetos (Poesia Inglesa) - em português
Sonnet 1 (from 35 Sonnets)
O amor é uma companhia
Quando vier a Primavera (Alberto Caeiro)

2013-11-29

Vozes mulheres - Conceição Evaristo

A voz da minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.

A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.

in Poemas da recordação e outros movimentos

Maria da Conceição Evaristo de Brito (Belo Horizonte, 29 de novembro de 1946)

Da mesma autora, em Nothingandall: Recordar é preciso

2013-11-28

Tela Íntima - Campos de Figueiredo

Artist in His Studio - RembrandtArtist in His Studio, Rembrandt Harmensz. van Rijn.
In the collection of Boston's Museum of Fine Art.


Lá fora, a noite escura... o vento aos ais,
A soluçar e a rir - doido soturno,
É um violinista trágico e nocturno
Wagnerizando a voz dos temporais!

Lá fora, a chuva fria das procelas...
E cá dentro, ao calor da nossa casa,
O nosso coração a arder em brasa
E o silêncio divino das estrelas

Tu embalas ao colo a nossa Filha...
A luz, a arder, que em nossos rostos brilha,
Dá-lhes um tom rosado de manhã...

E com a estranha e misteriosa tinta,
Com que Deus ao Sol-Posto as coisas pinta;
Nós formamos um quadro de Rembrandt!

José Campos de Figueiredo nasceu em Cernache (Coimbra) a 6 de Maio de 1899 e faleceu em Coimbra a 29 de Novembro de 1965.

Ler do mesmo autor:
Sonho
Momento Lírico
O Milagre das Rosas
Autocrítica
Fingimento

2013-11-27

NUM ÁLBUM - Soares de Passos

Do sofrimento o arcanjo lamentoso
Sobre a face do mundo estende o braço:
Um diadema ofertava, e pavoroso:
"Para o que mais sofreu!" gritou no espaço.

Eis logo imensa turba se atropela,
Todos querem ganhar a prenda infausta;
Mas nenhum dos que chegam por obtê-la
Mostrava a taça da amargura exausta.

"Afastai-vos!" lhes brada o génio esquivo,
"Nenhum tocou do sofrimento a meta:
"Tu, só tu mereceste o prémio altivo;
"Ergue a fronte, coroa-te, poeta!"


António Augusto Soares de Passos (Porto, 27 de Novembro de 1826 – Porto, 8 de Fevereiro de 1860)

Ler do mesmo autor:
Amor e Eternidade
O Firmamento
Partida
O Noivado do Sepulcro

2013-11-26

Sem Regresso - Torquato da Luz (no dia em que completaria 70 anos)

Tomou na vida o autocarro errado
e em vez de sair na primeira paragem
continuou a viagem
para nenhum lado.

Perdeu-se do passado que não teve
e do futuro que não tem,
mero episódio de novela breve
que não acaba bem.

E um fumo pesado e espesso

diz-lhe que não há regresso.


Extraído daqui


Do mesmo autor: À Espera


Torquato da Luz (nasceu em Alcantarilha, concelho de Silves, a 26 de Novembro de 1943 - faleceu em 24 de Março de 2013).

2013-11-25

O Soneto - Alfredo da Cunha

Dos seus versos no pórfiro sagrado,
se o Amor o inspira, o Génio dos poetas
modela imagens firmemente rectas,
como em nicho precioso e rendilhado.

Mas, se é da Morte o lúgubre inspirado
(como, em tampas de túmulos quietas,
frias estátuas de feições correctas),
molda o vulto dum ídolo chorado.

E, qual se fora em mármores esculpida,
à imagem bela da mulher querida
dão forma e graça as quadras do soneto:

nelas assenta como em leves penas,
o corpo, de que os pés apenas
o estofo abrocadado do terceto.



Extraído de «A Circulatura do Quadrado - Alguns dos Mais Belos Sonetos de Poetas cuja Mátria é a Língua Portuguesa. Introdução, coordenação e notas de António Ruivo Mouzinho. Edições
Unicepe - Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto, 2004.

Alfredo Carneiro da Cunha nasceu no Fundão a 21 de Dezembro de 1863 e faleceu em Lisboa a 25 de Novembro de 1942.

2013-11-24

Antífona - Cruz e Sousa

Ó formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluídas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...

Formas do Amor, constelarmente puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dotências de lírios e de rosas...

Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Requiem do Sol que a Dor da Luz resume...

Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...

Infinitos espíritos dispersos,
Inefãveis, edênicos, aéreos
Fecundai o Mistério destes versos,
Com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, todas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.

Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça
De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas e áureas corrientezas...

Cristais diluídos de clarões alacres,
Desejos, vibrações, ânsias, alentos
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...

Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantâlicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...

João da Cruz e Sousa (n. em Desterro, hoje Florianópolis a 24 Nov 1861; m. na Estação de Sítio, Minas Gerais a 19 Mar 1898)

2013-11-22

O dia e a noite - Fernando Semana

Estatísticas, códigos, formulários,
Impostos, enigmas, calendários,
Taxas, derramas, adicionais
E preencher um inquérito mais...
Cenários, simulações, contingências,
Relatórios, inspeções, e auditorias!
Assim, invariavelmente, passam os dias...

À noite: livre, a fantasia
da poesia.


Fernando Semana

2013-11-21

À NOITE - Luís Filipe Castro Mendes

Que a noite diga à noite o que ilumina
e nos ordene o verso. Vem, noite antiga,
desprendida da lua e das fogueiras,
retira às coisas vãs toda a medida,
vem despir-te solene à minha beira.

Seja outra noite a noite. Outro o caminho.
Outro o vento a perder-se nas bandeiras.

(Outras Canções)
in Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea, um panorama
organização e introdução de Alberto da Costa e Silva e Alexei Bueno
Rio de Janeiro, Lacerda Editores

Luis Filipe Castro Mendes nasceu em Idanha-a-Nova em 21 de Novembro de 1950

2013-11-20

A maior mágoa - Marta Mesquita da Câmara

Cá dentro da minh'alma de mulher,
Alma feita de sonho e de incerteza,
Sedenta de afeição e de beleza,
Quantas coisas sonhei p'ra te dizer!...

Quantas coisas sonhei p'ra te escrever!...
Jamais mulher alguma, com certeza,
Cantou com tanto amor, tanta tristeza,
O bem que desejou sem nunca o ter!...

Porque a chaga mais viva, que mais dói,
Não é saudade do que a vida foi...
Ninguém nos rouba um doce bem vivido.

A mágoa do que foi é suportável;
É bem mais funda a mágoa irreparável
Daquilo que pudera, enfim ter sido!...


Marta de Mesquita da Câmara nasceu a 24 de Agosto de 1895 no Porto, onde morreu a 20 de Novembro de 1980

Ler também, neste blog, da mesma autora:
Contra senso
General em Miniatura
A Tua Amada


2013-11-19

Já temos os bilhetes para o Brasil e Cristiano Ronaldo provou que é o melhor do Mundo!


Suécia 2 - 3 Portugal


Portugal foi a única seleção nos play-off europeus de acesso ao Mundial do Brasil a ganhar os dois jogos! Cristiano Ronaldo marcou todos os golos de Portugal: na Luz fez o único golo do jogo e agora em Estocolmo marcou os três golos!

Portugal mostrou que é melhor do que a Suécia e Cristiano Ronaldo que é o melhor do Mundo. Ainda sofremos um tanto quando os suecos por Ibrahimovic marcou dois golos consecutivos de bola parada (pontapé de canto com golo que pareceu em falta sobre Bruno Alves) e livre direto após falta de Miguel Veloso. Ainda faltava um quarto de hora e a Suécia ficou a um golo de distância mas o super Ronaldo resolveu a questão: fez o segundo e ainda marcou o terceiro. Quatro golos der Portugal contra a Suécia todos de Cristiano Ronaldo!!!

A França (de Ribéry) foi levada ao colo pela arbitragem (o segundo golo em claro offside) e venceu 3-0 a Ucrânia (que cedo ficou a jogar com apenas dez jogadores) ultrapassando o 0-2 da primeira mão. A Croácia venceu a equipa com que toda a gente queria jogar - a Islândia - ao ganhar por 2-0 após um nulo na Islândia. A Grécia resolveiu logo a questão ao marcar em primeiro lugar na Roménia adicionando esse golo de vantagem ao 3-1 obtido em casa. A equipa de Fernando Santos ainda sofreu o empate mas passou bem à larga.

Vítima da Moda - Maria O'Neill

Todos notam com dó quando ela passa
A curiosa figura em que se pôs:
Creme Simon, carmim e pó d'arroz;
Olheira falsa por lhe dar mais graça!

Vai contente de si e da elegância
Com que a despe um vestido de Gandon.
Através da vidraça do lorgnon
Olha os homens com arte e petulância.

Tem um ar imperial... o passo breve,
Que a modista a seu grado limitou:
E vai pensando essa cabeça leve,
Que a todos, que a fitaram, deslumbrou!

Comentário deles
:

- Se lhe cair o chapéu
Arrasa a terra coitada!
- Uma cara assim pintada
E não saber pôr um véu!
- Nota como o fato acusa
a sua forma animal!
- Já vi. Acho natural
É que é de raça Andaluza!
- O passo, vê, que tortura
A moda às vezes impõe!
- De todos quantos dispõe
Transforma em caricatura.
- Não tem vantagem
- Subida!
Por bem que finja a mulher
Dá-nos a justa medida
Do tino que ela tiver


in A Sátira, Revista humorística de caricaturas, Ano I, nº. 1, 1 de fevereiro de 1911
Editor José Stuart Carvalhaes, Lisboa

Maria da Conceição Infante de Lacerda Pereira de Eça Custance O'Neill (Lisboa, 19 de novembro de 1873 - Costa brasileira, 23 de março de 1932)

2013-11-18

NUMA ESTAÇÃO DE METRO - Manuel António Pina (no dia em que completaria 70 anos)

A minha juventude passou e eu não estava lá.
Pensava em outra coisa, olhava noutra direcção.
Os melhores anos da minha vida perdidos por distracção!

Rosalinda, a das róseas coxas, onde está?
Belinda, Brunilda, Cremilda, quem serão?
Provavelmente professoras de Alemão
em colégios fora do tempo e do espa-

ço! Hoje, antigamente, ele tê-las-ia
amado de um amor imprudente e impudente,
como num sujo sonho adolescente
de que alguém, no outro dia, acordaria.

Pois tudo era memória, acontecia
há muitos anos, e quem se lembrava
era também memória que passava,
um rosto que entre outros rostos se perdia.

Agora, vista daqui, da recordação,
a minha vida é uma multidão
onde, não sei quem, em vão procuro
o meu rosto, pétala dum ramo húmido, escuro


in Um sítio onde pousar a cabeça, 1981

Manuel António Pina (nasceu em 18 de Nov. 1943 no Sabugal, faleceu em 19 de outubro de 2012)

Ler do mesmo autor, neste blog:
Completas
Uma Sombra
Lugares da Infância
Amor como em casa
Café do Molhe
Saudade da Prosa

2013-11-17

Deitei agora mesmo o açúcar no cinzeiro - Mário Dionísio (na passagem dos 20 anos do seu desaparecimento)

Deitei agora mesmo o açúcar no cinzeiro
Caiu-me a cinza no café
Onde pensei azul vejo vermelho
E a linha como tonta alheia e brusca se desprende
e furta à intenção da mão que a traça

O que o dia todo desenhei
eu próprio olho espantado e espantado não sei
em verdade o que é

Rigoroso analista que nos outros tudo entende
que se passa?


in Memória dum pintor desconhecido, Portugália Editora, 1965

Mário Dionísio (Lisboa, 16 de Julho de 1916 - Lisboa, 17 de Novembro de 1993)

2013-11-15

Minha Sombra - Jorge de Lima (no 60º aniversário do seu desaparecimento)

De manhã a minha sombra
Com meu papagaio e o meu macaco
Começam a me arremedar.
E quando saio
A minha sombra vai comigo
Fazendo o que eu faço
Seguindo os meus passos.

Depois é meio-dia.
E a minha sombra fica do tamaninho
De quando eu era menino.
Depois é tardinha.
E a minha sombra tão comprida
Brinca de pernas de pau.

Minha sombra, eu só queria
Ter o humor que você tem,
Ter a sua meninice,
Ser igualzinho a você.

E de noite quando escrevo,
Fazer como você faz,
Como eu fazia em criança:
Minha sombra
Você põe a sua mão
Por baixo da minha mão,
Vai cobrindo o rascunho dos meus poemas
Sem saber ler e escrever.


Em: Antologia Poética para a infância e a juventude, de Henriqueta Lisboa, Rio de Janeiro, INL:1961.

Jorge Mateus de Lima (União dos Palmares, 23 de abril de 1893 — Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1953)

2013-11-14

O que os resíduos demonstram sobre a nossa vida...

Fiquei espantado com o título central a duas páginas (página 2 e 3) do Jornal de Notícias de hoje «ESGOTO REVELA 1 DOSE DE COCA POR 50 PESSOAS». Ou seja, «a primeira análise à presença de metabolitos de cocaína nas águas residuais, que indiciam o consumo da substância, encontrou uma dose diária de 0,1 grama por 50 pessoas».

Não estou em condições de discutir o grau de cientificidade do teste realizado nem sequer se as conclusões assim reportadas são corretas... (se calhar fizeram a recolha diretamente da sanita de algum traficante que despejara antes o produto para fugir a uma rusga policial...)! Mas lembrei-me que se fossem feitas análises à urina do Cardozo certamente iriam encontrar «elevados vestígios de golos ao Sporting»!...

Já quanto a mim... estou certo que me encontrariam «vestígios excessivos de taxas de impostos»!...

Como esses bois que andam... - Alberto Bramão

Como esses bois que andam puxando às noras,
em passo melancólico e ronceiro,
sem alterar a marcha do ponteiro,
o meu relógio vai marcando as horas

Quer no céu brilhem rútilas auroras
ou caia e morra o sol no mar fragueiro,
o tempo segue o curso rotineiro,
sem paragens, sem pressas ou demoras.

Somente quando o nosso olhar enxuto
tem clarões de ventura fugidia,
cada hora é mais curta que um minuto...

Mas, nas horas de dor ou desengano,
cada minuto dura mais que um dia
e cada dia dura mais que um ano!


D. Alberto Allen Pereira de Sequeira Bramão (n. Almada, Nov. 1865; m. Lisboa, 14 Nov 1944)

in A Circulatura do Quadrado - Alguns dos Mais Belos Sonetos de Poetas cuja Mátria é a Língua Portuguesa- 2004 Edição Unicepe-Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto, CRL.

2013-11-13

É tarde, meu amor - Maria Aurora Carvalho Homem

É tarde, meu amor
É muito tarde.
O tempo implacável me consome
E destrói o vigor do corpo moço:
Apagou o fulgor do meu olhar
Roubou a altivez do seio cheio
Secou o rio manso do meu ventre
Cobriu de pergaminho a minha mão
É tarde, muito tarde
Mas… por dentro
Ainda bate, por ti, o coração.


(in Discurso Amoroso, Porto 2006)

Aurora Augusta Figueiredo de Carvalho Homem, que usou os pseudónimos literários de Maria Aurora e de Maria Aurora Carvalho Homem, nasceu em Sátão (Viseu), 13 de novembro de 1937 - m. no Funchal, 11 de junho de 2010.

2013-11-12

Versos Íntimos - Augusto dos Anjos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!


Nota do webmaster: A poesia também serve para traduzir «a nudez crua da verdade sob o manto diáfano da fantasia». Ao ler este soneto de Augusto dos Anjos não posso deixar de lembrar-me de «Palavras Cínicas» de Albino Forjaz de Sampaio. Pois, «a mão que afaga é a mesma que apedreja».. a boca que beija é a mesma que escarra... É a vil verdade!... Aproveita o afago e o beijo ... enquanto duram...

Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (n. no Engenho Pau d'Arco, Paraíba, no dia 20 de abril de 1884; m. em Leopoldina em 12 de novembro de 1914.

Ler do mesmo autor:
O Sonho, a Crença e o Amor
Ao Luar
A Ideia;
Tempos Idos;
Versos Intimos;
Soneto (canta teu riso...)
O Fim das Coisas
Budismo Moderno
O sonho, a crença e o amor
A Esperança
Contrastes
Psicologia de Um Vencido
Debaixo do Tamarindo

2013-11-11

Confusões: O acordo ortográfico e o Sr. Juiz

«nos tribunais, pelo menos neste, os factos não são fatos, as actas não são uma forma do verbo atar, os cágados continuam a ser animais e não algo malcheiroso e a Língua Portuguesa permanece inalterada até ordem em contrário» - diz Rui Teixeira, juiz do tribunal de Torres Vedras que terá enviado uma nota à Direção Geral de Reinserção Social (DGRS) em abril onde se podia ler, que esta «fica advertida que deverá apresentar as peças em Língua Portuguesa e sem erros ortográficos decorrentes da aplicação da Resolução do Conselho de Ministros 8/2011 (...) a qual apenas vincula o Governo e não os tribunais»

Fonte:aqui

O juiz lá na casa dele pode exigir o que quiser mas de português ao que parece sabe pouco, porque em Portugal e mesmo após o acordo ortográfico factos continuam a ser factos e ... cágado continua a ser um animal e não é o acordo ortográfico que lhe manda chamar «algo mal cheiroso» (o acento agudo na primeira sílaba da palavra que é exdrúxula não cai...). Enfim...

Z - António Maria Lisboa

As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro

e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento

e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços

a tua figura era ao que me lembro da cor do jardim.


in "Ossóptico e Outros Poemas"

António Maria Lisboa (nasceu em Lisboa, 1 de Agosto de 1928 — m. Lisboa, 11 de Novembro de 1953)

Ler do mesmo autor, no Nothingandall:
Projecto de Sucessão
Rêve Oublié

2013-11-10

Citação do Dia - Friedrich Schiller

Só a fantasia permanece sempre jovem; o que nunca aconteceu nunca envelhece.

Johann Christoph Friedrich Schiller (b. 10 Nov. 1759, Marbach am Neckar, Württemberg — d. 9 May 1805, Weimar, Saxe-Weimar)

2013-11-08

Além de mim - Teixeira de Pascoaes

Quando o sol é um sorriso desfazendo
A escuridão soturna,
Nos meus olhos, também amanhecendo,
É beijo aceso a lágrima nocturna…
E quando a noite, espectro de outro mundo,
Por sobre a terra desce,
Todo o meu ser—tão pálido!—arrefece
E se torna sem margens e sem fundo…
Assim a minha vida é o fim das Cousas,
Seu estranho e fantástico destino!
As serras fragorosas
E o sol, astro divino,
Perdem-se no meu corpo em tempestade…
Meu corpo…ignoto mar;
Enlouquecida estátua de saudade,
A sonhar, entre nuvens, e a falar…
Que existe além de mim?
Silêncio, fria treva, solidão;
Um vago Azul sem fim,
A sombra da futura Criação


Extraído de Cem Poemas Portugueses do Adeus e da Saudade, selecção, organização e introdução de José Fanha e José Jorge Letria, Terramar

Teixeira de Pascoaes (Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos) nasceu em 8 Nov 1877 (*) em Amarante; m. em 14 Dez. 1952.
(*) Conforme assento oficial de nascimento; de algumas fontes biográficas consta a data de 2 de novembro

Ler também do mesmo autor:
Ao Crepúsculo
O Poeta
A sombra do Tâmega;
Canção da Névoa
À Minha Musa
A Sombra da Vida (excerto)
Elegia do Amor;
Quem és tu? De onde vens?...

2013-11-07

As minhas penas - Fernando Caldeira na voz de Maria Teresa de Noronha, na passagem do aniversário de ambos




Como diferem das minhas
As penas das avezinhas
Que de leves leva o ar
Só as minhas pesam tanto
Que às vezes nem já o pranto
Lhes alivia o pesar

Os passarinhos têm penas,
Que em lindas tardes amenas
Os levam por esses montes!
De colina em colina,
Ou pela extensa campina
A descobrir horizontes!

As minhas penas não caem
Nem voam nunca, nem saem
Comigo desta amargura
Mostram apenas na vida
A estrada já conhecida
Trilhada pelos sem ventura

Passam dias, passam meses
Passam anos, muitas vezes
Sem que uma pena se vá
E se uma vem, mais pequena
Ai, depois nem vale a pena
Porque mais penas me dá

Que felizes são as aves
Como são leves, suaves,
As penas que Deus lhes deu
Só as minhas pesam tanto
Ai, se tu soubesses quanto...
Sabe-o Deus e sei-o eu


poema de Fernanod Caldeira

Fernando Afonso Geraldes Caldeira (n. em Águeda a 7 de novembro de 1841; m. em Lisboa a 2 de Abril 1894)

D. Maria Teresa do Carmo de Noronha (n. em Lisboa a 7 de novembro de 1918; m. em Lisboa a 5 de julho de 1993)


Ler do mesmo autor neste blog:
Fases da Vida
Eu sonhei que ia provando...

2013-11-06

Tarde - Sophia de Mello Breyner Andressen

                                      Gaivotas na Apúlia daqui


O que queria dizer-te nesta tarde
Nada tem de comum com as gaivotas



Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no Porto a 6 de Novembro de 1919; m. Lisboa, 2 de Jul 2004.

Ler da mesma autora, neste blog:
Pátria
Partida
Espera
Soneto
A Forma Justa
Apolo Musageta
Eis-me
Mar Sonoro
Porque
Promessa
Liberdade
Pudesse eu

Musical suggestion of the day: Meu amigo está longe - Gisela João



Gisela João nasceu em Barcelos a 6 de novembro de 1983

Ao ouvir este magnífico fado mas na voz de Amália Rodrigues escrevi ao final duma invernosa tarde de domingo:

Ouço Amália a cantar Ary
«Tudo raso de ausência, tudo liso de espanto»,
com música de Oulman
e desse compositor mor - a Natureza -
com a percussão ritmada da chuva
e som de cordas do vento,
a acrescentar mais beleza.
Leio Torga e bebo um gole
dum quente néctar alentejano:
sabor a amoras e frutos vermelhos,
com leves tons de alcatrão
- diz a prova - é muito bom!
Grande invento feito de uva…

Na mesa uma fatia de bolo
…E o Benfica marca um golo!

O que é preciso mais para a felicidade?

(Que mania de fazer sempre tantas coisas juntas
E, mais ainda, de dormir tenho vontade...)

Nunca temos o momento perfeito se pensamos
E se não pensamos não gravamos o momento
Triste filosofia e lamento
É meu fado… ou será da idade?

Há sempre alguma coisa a mais ou que falta
E no meu coração mora a saudade
A triste ausência do teu olhar…
«E a saudade é tão grande»

2013-11-05

Tornou-me o pôr-do-sol um nobre entre os rapazes - Sosígenes Costa

Queima sândalo e incenso o poente amarelo
perfumando a vereda, encantando o caminho.
Anda a tristeza ao longe a tocar violoncelo.
A saudade no ocaso é uma rosa de espinho.

Tudo é doce e esplendente e mais triste e mais belo
e tem ares de sonho e cercou-se de arminho.
Encanto! E eis que já sou o dono de um castelo
de coral com portões de pedra cor de vinho.

Entre os tanques dos reis, o meu tanque é profundo.
Entre os ases da flora, os meus lírios lilases.
Meus pavões cor-de-rosa, os únicos do mundo.

E assim sou castelão e a vida fez-se oásis
pelo simples poder, ó pôr-do-sol fecundo,
pelo simples poder das sugestões que trazes.


Sosígenes Costa (n. em Belmonte BA, 11 Nov.1901 - m. no Rio de Janeiro RJ, em 5 Nov. 1968).
Ler do mesmo autor:
Duas Festas no Mar
Chuva de Ouro
O Pavão Vermelho

2013-11-04

A CASA DA VOVÓ - Augusta Faro

Na casa da vovó havia
uma enorme varanda
a rede alvinha
onde deitava
meus sonhos
e via o luar
nas telhas de vidro
medalhas de prata!
Na casa da vovó
relógio tão lindo, muito antigo
cantando as horas
horas vividas e ouvidas ...

Há grande silêncio agora,
os anos roubaram devagarinho...
a varanda enorme, o relógio antigo
o luar nas telhas de vidro
o cantinho de vovó
o pilão, os quitutes
o presépio, o quartão...

Escondidas
moram em repouso
no aconchego eterno
de meu coração triste.


Augusta Faro Fleury de Melo é natural de Goiânia, Goiás, Brasil onde nasceu a 4 de novembro de 1948.

2013-11-03

O que me coube - Ivan Junqueira

Pois foi só o que me coube:
o que eu quis e nunca houve.
o sonho que se fez logro,
como o daquele, o do Horto,
que na cruz pendeu exposto.

Foi só isto. E mais o açoite
que me vergasta o do aço do osso,
o vinagre, o fel na boca.
o céu ao reverso, torto,
e Deus, déspota, deposto.

Foi o sabor que me soube:
o da maçã, que era insossa,
o do vinho (azedo) no odre
e o do pão, estrito joio
sem trigo nenhum no miolo.


Foi só isto o que me trouxe
a vida (essa morte em dobro
a quem faço ouvidos moucos),
além de uns parcos amores,
de um Pégaso avesso ao vôo,
de uma flébil flauta doce,
do corvo a chorar Lenora
e de Apolo aquele torso
a transmutar-se num outro.
Foi só. Mais nada. Acabou-se.


Ivan Junqueira (Rio de Janeiro, 3 de novembro de 1934)

2013-11-02

A Canalha - Jorge de Sena

Como esta gente odeia, como espuma
por entre os dentes podres a sua baba
de tudo sujo nem sequer prazer!
Como se querem reles e mesquinhos,
piolhosos, fétidos e promíscuos
na sarna vergonhosa e pustulenta!
Como se rabialçam de importantes,
fingindo-se de vítimas, vestais,
piedosas prostitutas delicadas!
Como se querem torpes e venais
palhaços pagos da miséria rasca
de seus cafés, popós e brilhantinas!
Há que esmagar a DDT, penicilina
e pau pelos costados tal canalha
de coxos, vesgos, e ladrões e pulhas,
tratá-los como lixo de oito séculos
de um povo que merece melhor gente
para salvá-lo de si mesmo e de outrem.


Publicado na revista Hífen, Porto, nº 6, Fevereiro de 1991

in Dedicácias, Mécia de Sena, 1999. Três Sinais, editores

Jorge Cândido de Sena (n. em Lisboa a 2 Nov 1919; m. em Santa Bárbara, Califórnia a 4 Jun 1978)

Ler neste blog do mesmo autor:
Suma Teológica
Carta a meus filhos sobre os fusilamentos de Goya
Glosa À Chegada do Outono
O Corpo Não Espera
Génesis VI
Entre-Distância
Amo-te muito meu amor
Como queiras amor
Fidelidade
A diferença que há...
Rígidos seios de redondas, brancas...

2013-11-01

Instante - Saul Dias

Desse instante
o longínquo rumor
ouço-o ainda.
A ténue ressonância
da melodia finda...!

Tal
se de uma ave morta
só o voo
passasse à minha porta.


in Vislumbre (1979)

Saul Dias, mais precisamente, Júlio Maria dos Reis Pereira nasceu em Vila do Conde a 1 de Novembro de 1902 e faleceu em 17 de janeiro de 1983, na mesma cidade.

Sofro de não te ver
O Poeta no café de província