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2015-07-31

Soneto: Pára-me de repente o pensamento - Angelo de Lima

Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz, do esquecimento...

Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado...
Pára e fica e demora-se um momento.

Pára e fica na doida correria...
Pára à beira do abismo e se demora
E mergulha na noite escura e fria

Um olhar de aço que essa noite explora...
Mas a espora da dor seu flanco estria
E ele galga e prossegue sob a espora.


Do livro: "Líricas Portuguesas", seleção, prefácio e notas de Cabral do Nascimento, Portugália Editora, 1945, Portugal

Ângelo de Lima (n. Porto 31 de julho de 1872; m. Lisboa 14 de agosto de 1921)

2015-07-30

Canção do Amor Imprevisto - Mário Quintana

Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.

Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,
Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos…

E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender nada, numa alegria atônita…
A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos.

Mário Quintana (n. in Alegrete, Rio Grande do Sul a 30 de julho de 1906; m. em Porto Alegre, Rio Grande do Sul a 5 de maio de 1994).

Ler do mesmo autor, neste blog:

2015-07-28

O golpe está dado!

Caros benfiquistas. O golpe consumou-se. Depois de uma vida inteira de arbitragem a prejudicar o Benfica (foi assim, que chegou ao lugar que chegou!) - não conheço nenhuma pessoa no Mundo que me tenha causado mais danos psicológicos do que essa personagem, a coberto de se dizer "benfiquista, heterossexual e de esquerda" - eis que o senhor PP é eleito presidente da Liga!! Nem sequer se quis ficar pelo Conselho de Arbitragem! Tem agora este senhor os plenos poderes na Liga sob o background do FCP (pois claro - quantos campeonatos esse senhor lhes ofereceu?!) e do Sporting. É assim, o futebol, como na economia e na política ... há que ter as pessoas certas nos lugares certos...

Com esse senhor a mandar no futebol português, o Benfica já estará arrependido de ter defendido as nomeações na arbitragem. O sorteio sempre daria menos margem de manobra... para manobras.

Depois da perda de JJ, de Maxi, de Lima, das derrotas na pré-época, o Benfica já sabe que o tri voou para outro lado - e o campeonato ainda nem sequer começou!...

PS: Não percebo, nunca percebi, é como o Benfica nunca expulsou PP de sócio!

SONETO IMPERFEITO DA CAMINHADA PERFEITA

Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
em que os poetas são os próprios versos dos poemas
e onde cada poema é uma bandeira desfraldada.

Ninguém fala em parar ou regressar.
Ninguém teme as mordaças ou algemas.
- O braço que bater há-de cansar
e os poetas são os próprios versos dos poemas.

Versos brandos... Ninguém mos peça agora.
Eu já não me pertenço: Sou da hora.
E não há mordaças, nem ameaças, nem algemas

que possam perturbar a nossa caminhada,
onde cada poema é uma bandeira desfraldada
e os poetas são os próprios versos dos poemas.


Sidónio Muralha, “Passagem de Nível” (1942)
in Obras Completas do Poeta. Lisboa, Universitária Editora, 2002

Sidónio Muralha (nasceu na Madragoa, Lisboa a 28 de julho de 1920; m. a 8 de dezembro de1982 em Curitiba, Paraná, Brasil).

2015-07-27

MEU CORAÇÃO - Félix Araújo

Meu coração, este país tristonho,
Em que Deus periclita e o Inferno avança,
Tem as florestas negras do meu Sonho
E as cordilheiras verdes da Esperança.

Doira-o, às vezes, um clarão risonho:
- É a crença morta que ressurge, mansa...
Mas sobrevém o temporal tristonho
Da Dúvida cruel brandindo a lança.

Brilham, no céu, os astros em delírio.
No meu país, de onde fugiu a calma,
Brotam, chorando, as rosas do martírio.

Maldito coração, que Deus te açoite!
De que valem os sóis que tenho n'alma
Se existe em mim a maldição da Noite?

Félix de Souza Araújo (Cabaceiras, Paraíba, 22 de dezembro de 1922 — Campina Grande, Paraíba, 27 de julho de 1953)

2015-07-26

CAMPOS DE SÓRIA (IV) - Antonio Machado




As figuras do campo sobre o céu!
Dois lentos bois lavram
numa colina, ao começar o Outono,
e entre as negras testas recurvadas
sob o pesado jugo,
pende um cesto de juncos e giesta,
que é um berço de um menino;
e atrás da junta avançam
um homem que se inclina para a terra
e uma mulher que nos regos abertos
lança a semente.
Sob uma nuvem de carmim e chamas,
no oiro fluido e esverdeado
do poente, as sombras agigantam-se.

Trad. de José Bento.

in Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim

Antonio Cipriano José María y Francisco de Santa Ana Machado y Ruiz (n. Sevilha, Espanha, 26 julho 1875 – m. Colliure, França, 22 fevereiro 1939).

2015-07-25

QUASE EXÍLIO - Rui Augusto

Nem só a cidade em que nascemos
é bela.

Assim ó poeta
rasga as saudades
do que te é tão familiar
e parte...

Teu coração universal
deixa-o ubíquo vogar
(o mundo é grande!)

Longe
no marulhar das vozes
em infinitas ondas
há-de haver
timbre igual!

Parte pois ó poeta
enquanto é cedo
e não te mancha
ainda as mãos
uma espada...


Rui Augusto Ribeiro da Costa nasceu em 25 de Julho de 1958, Camabatela, província do Kwanza Norte, Angola.

2015-07-24

Eu gosto de ler gostando - Solano Trindade

Eu gosto de ler gostando,
gozando a poesia,
como se ela fosse
uma boa camarada,
dessas que beijam a gente
gostando de ser beijada.
Eu gosto de ler gostando
gozando assim o poema,
como se ele fosse
boca de mulher pura
simples boca libertada
boca de mulher que pensa…
dessas que a gente gosta
gostando de ser gostada.


Solano Trindade (Recife, 24 de julho de 1908 — Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 1974)

2015-07-23

Amália Rodrigues Canta Amália Rodriges: Lágrima


Cheia de penas,
Cheia de penas me deito
E com mais penas,
Com mais penas me levanto
No meu peito,
Já me ficou no meu peito
Este jeito,
O jeito de te querer tanto

Desespero
Tenho por meu desespero
Dentro de mim
Dentro de mim o castigo
Não te quero
Eu digo que não te quero
E de noite
De noite sonho contigo

Se considero
Que um dia hei-de morrer
No desespero
Que tenho de te não ver
Estendo o meu xaile,
Estendo o meu xaile no chão
Estendo o meu xaile
E deixo-me adormecer

Se eu soubesse
se eu soubesse que morrendo
Tu me havias
Tu me havias de chorar
Uma lágrima,
Por uma lágrima tua
Que alegria
Me deixaria matar

in O Fado da Tua Voz Amália e os Poetas, Vítor Pavão dos Santos, Bertrand Editora


...



Amália Rodrigues nasceu em Lisboa a 23 de julho de 1920*, m. a 6 de outubro de 1999 em Lisboa

*Data que consta dos registos oficiais. Amália sempre defendeu que nascera em 1 de Julho de 1920.

2015-07-22

O Novo Colosso /The New Colossus - Emma Lazarus


Não como o gigante bronzeado de grega fama,
Com pernas abertas e conquistadoras a abarcar a terra
Aqui nos nossos portões banhados pelo mar e dourados pelo sol, se erguerá
Uma mulher poderosa, com uma tocha cuja chama
É o relâmpago aprisionado e seu nome
Mãe dos Exílios. Do farol de sua mão
Brilha um acolhedor abraço universal; Os seus suaves olhos
Comandam o porto unido por pontes que enquadram cidades gémeas.
“Mantenham antigas terras sua pompa histórica!” grita ela
Com lábios silenciosos “Dai-me os seus fatigados, os seus pobres,
As suas massas encurraladas ansiosas por respirar liberdade
O miserável refugo das suas costas apinhadas.
Mandai-me os sem abrigo, os arremessados pelas tempestades,
Pois eu ergo o meu farol junto ao portal dourado".


Extraído daqui



ORIGINAL

Not like the brazen giant of Greek fame,
With conquering limbs astride from land to land;
Here at our sea-washed, sunset gates shall stand
A mighty woman with a torch, whose flame
Is the imprisoned lightning, and her name
Mother of Exiles. From her beacon-hand
Glows world-wide welcome; her mild eyes command
The air-bridged harbor that twin cities frame.
“Keep, ancient lands, your storied pomp!" cries she
With silent lips. “Give me your tired, your poor,
Your huddled masses yearning to breathe free,
The wretched refuse of your teeming shore.
Send these, the homeless, tempest-tost to me,
I lift my lamp beside the golden door!"

in Emma Lazarus: Selected Poems and Other Writings (2002)

Emma Lazarus (july 22, 1849, New York City, New York — november 19, 1887, New York City, New York)

2015-07-21

I love my Jean - Robert Burns

Anda alegria no vento
sempre que vem do sol-pôr:
lá donde vive a serrana
que me enfeitiçou d’amor…
Lá nos montes, pelas fontes,
pelos pinhais, vai sozinha…
A cada momento, o vento
me faz lembrar — Joaninha!

Vejo-a nas florinhas tenras,
que dá graça de as olhar;
ouço-a no trilo das aves
que põe bruxedo no ar:
a papoila que floresce
por entre a messe, ou a vinha,
o rouxinol que gorjeia,
só me dizem — Joaninha!


(original)

Of all the airts the wind can blaw
I dearly like the west
For there the bonnie Lassie lives
The Lassie I love best
There’s wild-woods grow, and rivers row
And mony a hill between
But day and night my fancy’s flight
Is ever way my Jean

I see her in the Dewy flowers
I see her sweet and fair
I hear her in the tuneful birds
I hear her charm the air
There’s not a bonnie flower, that springs
By a fountain, shaw, or green
There’s not a bonnie bird that sings
But minds me o‚ my Jean

Robert Burns (b. 25 January 1759, Alloway, Ayrshire, Scotland – d. 21 July 1796, Dumfries, Scotland)

2015-07-20

Tudo de pernas para o ar (poesia infantil) - Luísa Ducla Soares

Numa noite escura, escura,
o sol brilhava no céu.
Subi pela rua abaixo,
vestido de corpo ao léu.

Fui cair dentro de um poço
mais alto que a chaminé,
vi peixes a beber pão,
rãs a comerem café.

Construí a minha casa
com o telhado no chão
e a porta bem no cimo
para lá entrar de avião.

Na escola daquela terra
ensinavam trinta burros.
O professor aprendia
a dar coices e dar zurros.


In "Poemas da Mentira e da Verdade", Livros Horizonte

Luísa Ducla Soares (n. Lisboa, 20 de julho de 1939)

2015-07-19

Deslumbramentos - Cesário Verde


Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!…

Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina…
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.

Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!

José Joaquim Cesário Verde (n. em Lisboa a 25 de fevereiro de 1855, m. a 19 de julho de 1886)

Ler ainda do mesmo autor, neste blog:

2015-07-18

JANGADA TRISTE - Gilberto Freyre



Ao longe, mui longe, no horizonte,
além, muito além daquele monte,
como ave que voa desdenhada,
flutua tristemente uma jangada.

Nos zangados soluços do oceano,
quase desaparece o canto humano
de quem no mar e céu inda confia
porque em terra tudo lhe é melancolia.

Isso de terra firme e mar traiçoeiro
nem sempre é certo para o jangadeiro
mais preso ao fiel sal que à incerta areia.

Mistura ao grande azul as suas mágoas
e encontra no vaivém das verdes águas
consolo às negras dores cá da terra.

in Talvez Poesia, Prefácio Mário Mota. Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1962.

Gilberto de Mello Freyre (Recife, Pernambuco, Brasil, 15 de março de 1900 — Recife, 18 de julho de 1987)

2015-07-17

Uma Vida Pequena - João José Cochofel

Uma vida pequena
para que é que serviu?
Rasto de poeira
em tarde de estio.

Que sonhos, que pragas,
que fogos em vão
calcados de terra
reacenderão?

Chora a infância, chora.
Não a que tiveste.
Mas a que na troca
do tempo apetece.

in 'Os Dias Íntimos' 1944-1958

João José de Melo Cochofel Aires de Campos (n. Coimbra, 17 Jul 1919, m. Lisboa a 14 Mar 1982)

Ler do mesmo autor:
Pórtico
Tarde
O Verão Estala Por Todos os Poros
Sensibilidade
Mói Música um Realejo
Breve
Ânsia
Sensibilidade

2015-07-16

ARTE POÉTICA - Mário Dionísio

Mário Dionísio, O Músico, 1948,
 tinta de esmalte sobre tela, 130 x 97 cm 


A poesia não está nas olheiras imorais de Ofélia
nem no jardim dos lilases.
A poesia está na vida,
nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores constantes,
na bicha de automóveis rápidos de todos os feitios e de todas as cores,
nas máquinas da fábrica e nos operários da fábrica
e no fumo da fábrica.
A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,
no vaivém de milhões de pessoas conversando ou prague­jando ou rindo.
Está no riso da loira da tabacaria,
vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na doca,
nos braços negros dos carregadores de carvão,
no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
— e só durou esse minuto.
A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas do comboio a caminho, a caminho, a caminho
de terras sempre mais longe,
nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.
A poesia está na luta dos homens,
está nos olhos abertos para amanhã.

in Mário Dionísio Poemas, Colecção Novo Cancioneiro nº 2, Coimbra, 1941

Mário Dionísio (n. Lisboa, 16 de julho de 1916 — m. Lisboa, 17 de novembro de 1993)


Do mesmo autor:
Para ser lido mais tarde
Depois de Mim
Deitei agora mesmo o açúcar no cinzeiro
Complicação

2015-07-15

EQUILÍBRIO - Henriqueta Lisboa

Estar não estando
no riso e no pranto.
Possuir sem domínio
dentro do possível.
Ser de si o oposto
sem deixar de ser.
Imóvel movente
que só por angústia
de tempo resvala
para achar o fluxo
do plectro em refluxo.
Pendente da sorte
do imã da força
dos próprios recuos,
o pêndulo pende
mediante a tangência
de eflúvios

que estuam
adversos

à inércia.

in Miradouro e Outros Poemas, Nova Fronteira, Rio de Janeiro
 
Henriqueta Lisboa (nasceu em Lambari, Minas Gerais, em 15 de julho de 1901; faleceu em Belo Horizonte, no dia 9 de outubro de 1985).

Ler da mesma autoria, neste blog: 

2015-07-14

Ode À Alegria - António Quadros

Na hora matinal do ser,
a face diurna
no tempo da infância
eu canto a alegria, eu canto a alegria.

Alegria de estar vivo
e ser a seiva a brotar
e ser a vida a brotar
e ser o impulso viril
que abre os caminhos, que sobe as montanhas,
que descobre outra vez o que já fora esquecido
que refresca, que renova, que retoma
e dá o passo que ainda não fora dado.
Na hora matinal do ser,
no riso da criança,
no sorriso do velho,
o mundo nasce outra vez,
o homem separa-se da argila,
regenera-se o ímpeto criador
e a alma humana, genesíaca,
levanta ao alto o universo.
Na hora matinal do ser,
na gargalhada do jovem,
no canto da mãe,
desvela-se, da terra, o enigma,
revela-se, da água, o segredo,
mostra-se, do ar, o sentido
e descobre-se, do fogo, o mistério,
não decerto por razões e por conceitos,
mas sim por dizer sim,
Senhor, sim, sim
na confiança,
na euforia,
na esperança
e na alegria que brota, espontânea,
do diálogo franco,
dos olhos nos olhos,
das mãos estendidas,
das vozes sinceras,
a infância revivida
na idade transcendida.
Na hora matinal do ser,
na face diurna,
inesperada e fugaz surge a alegria,
fugaz e breve,
rápida como um clarão,
aleatória,
surpreendente,
ela chega não sei de que esferas longínquas,
atravessando não sei que paragens sombrias…
No seio da viscosa indiferença,
no ritmo mecânico da árida utilidade,
na perversão do vício
ou no sacrifício sem grandeza,
na própria câmara asfixiante do sofrimento,
para além das mil máscaras da dor,
nos olhos febris do doente,
nos olhos ardentes do revoltado,
nos olhos cansados do vencido,
nos olhos fugidios do humilhado,
nos olhos desesperados do escravo,
nos olhos vazios do miserável,
ela nasce,
espontânea e fugaz,
flor da rocha,
flor da lama,
flor absurda em terra absurda,
e desabrochando, radiante,
ainda que só por um instante,
vem trazer à corrupção
o protesto da vida,
a afirmação do ser,
o sinal da perene mocidade do mundo,
o signo da renovação
o signo da ressurreição.


Na hora matinal do ser
- a manhã renasce em todos os momentos - ,
na face diurna
- depois da noite, sempre o dia chega -,
no tempo da infância
- a infância é eterna -,
Perdoai-me, Senhor,
eu canto a alegria, eu canto a alegria,
eu canto a alegria…


in Imitação do Homem, Espiral, Lisboa, 1966.

António Gabriel de Quadros Ferro (n. Lisboa, 14 de julho de 1923 — f. Lisboa, 21 de março de 1993)

2015-07-13

Amar ou Odiar - Fausto Guedes Teixeira

Amar ou odiar: ou tudo ou nada
O meio termo é que não pode ser
A alma tem de estar sobressaltada
Para o nosso barro se sentir viver

Não é uma cruz a que não for pesada
Metade de um prazer, não é um prazer!
E quem quiser a vida sossegada
Fuja da vida e deixe-se morrer!

Vive-se tanto mais quanto se sente
Todo o valor está no que sofremos
Que nenhum homem seja indiferente!

Amemos muito como odiamos já!
A verdade está sempre nos extremos
Pois é no sentimento que ela está.


Fausto Guedes Teixeira (nasceu em Lamego, 11 de outubro de 1871 — morreu em Lamego, 13 de julho de 1940)

2015-07-12

Soneto XVII - A Dança - Pablo Neruda


Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
Ou flecha de cravos que propagam fogo:
Te amo como se amam certas coisas obscuras,
Secretamente, entre a sombra e a alma.

Te amo como a planta que não floresce e
Leva dentro de si, oculta, a luz daquelas flores.
E graças a teu amor, vive oculto em meu
Corpo o apertado aroma que ascende da terra.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde.
Te amo diretamente sem problemas nem orgulho;
Assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

Senão assim, deste modo, em que não sou nem és.
Tão perto de tua mão sobre meu peito é minha,
Tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.

 Trad. Albano Martins

No te amo como si fueras rosa de sal, topacio
o flecha de claveles que propagan el fuego:
te amo como se aman ciertas cosas oscuras,
secretamente, entre la sombra y el alma.

Te amo como la planta que no florece y lleva
dentro de sí, escondida, la luz de aquellas flores,
y gracias a tu amor vive oscuro en mi cuerpo
el apretado aroma que ascendió de la tierra.

Te amo sin saber cómo, ni cuándo, ni de dónde,
te amo directamente sin problemas ni orgullo:
así te amo porque no sé amar de otra manera,

sino así de este modo en que no soy ni eres,
tan cerca que tu mano sobre mi pecho es mía,
tan cerca que se cierran tus ojos con mi sueño.

Cien sonetos de amor (1959)

Pablo Neruda [Ricardo Eliecer Neftalí Reyes Basoalto] (n. 12 Jul 1904, Parral, Chile; m. 23 Set 1973 em Santiago, Chile).

Mais poemas de Pablo Neruda, neste blog:
Para que tu me ouças
Poema 1 de Vinte Poemas de amor e uma canção desesperada: Corpo de Mulher
Poema 18: Aqui te amo
A Noite na Ilha
Unidade
Uma Canção Desesperada
La Canción Desesperada
Tonight I Can Write Saddest Lines
If You Forget Me
Puedo Escribir los versos mas tristes esta noche
Poema LXVI : Não te quero senão porque te quero
Poema 15: Me gustas cuando callas...
Poema 15: (em português) Gosto de ti calada...
Para Meu Coração Basta Teu Peito
Para Mi Corazon Basta Tu Pecho
Tua Risa / Teu Riso / Your Laughter
Corpo de Mujer
Canto XII From Heights of Macchu Picchu

2015-07-11

Hipótese de Maio - Lélia Coelho Frota


Sobre a mesa o relógio
anuncia meu tempo
que se desfaz em crivo
de aflito pensamento.
De que jardins me evado
de que amores provenho
de que enredo impreciso
se armara o que estou sendo
entre meus dicionários
fragmentos de retratos
os rútilos canários
enfunadas cortinas.
Os amigos inquietos
o silêncio a aumentar
concêntrico, severo
em torno das conversas
além da ausência,
além dos constantes afetos.
Resíduos de passeios
em paisagens alheias
empinham-se em gavetas —
cartas de amor nos seus
macios envelopes
risadas e conchinhas
a voz que fala sempre
no fundo da sonata
diletantes poemas
todos concordemente
citando o Coração
ladeado de flores
zéfiros sorridentes
(e os sabiá chorosos).
As gavetas estufam
o que nelas se havia
adquire vida própria
um sitiado encanto
e explusa da memória
de que participava
com escassa competência
eu, que leve o lembrava.
O conteúdo humano
desse ditoso espólio
palpita, e entretanto
— semicerrados olhos
agitar de cambraia —
invencível o sono
se engolfa na dolência.
Sono maior que o escuro
a corromper a luz
diuturna nostalgia
de um sonho, não sei mais
ao certo o que seria.
Coágulo sombrio
adensando-se em zona
fechada, onde me perco
neste mês-de-maria
pensando o que seria
de mim, no dissolvido
rumor que me povoa
sem conduzir à fala
da sempre poesia
sem revelar o muito
de amar que pretendia
antes de antes, não sei
ao certo o que seria.
Mas bem que perfazia
um circuito profundo
onde a primeira imagem
(início e ata finda)
que ainda se reflete
é a da jovem correndo
pela campina, soltos
cabelos, e as glicínias
a descer pelos ombros
prendendo-se na boca
primavera garrida
pelo azul florentino.
Na mão direita tinha
uma roseira viva
juritis entoavam
campestres ladainhas
e pela transparência
de sua carnação
via-se-lhe o coração
com um só nome gravado
a rubro, fulcro infenso.
Corria na campina
fantástica, e ainda
posso lembrar que em fuga
amava sempre, e ria.


Lélia Coelho Frota (Rio de Janeiro 11 de julho de 1938 - 27 de maio de 2010 )

Happy Birthday Emily Shaw


Emily Florence Shaw born on July 11, 1991 in Redhill, United Kingdom

2015-07-10

Responde Tu - Nicolás Guillén

Tú, que partiste de Cuba,
responde tú,
¿dónde hallarás verde y verde,
azul y azul,
palma y palma bajo el cielo?
Responde tú.

Tú, que tu lengua olvidaste,
responde tú,
y en lengua extraña masticas
el güel y el yu,
¿cómo vivir puedes mudo?
Responde tú.

Tú, que dejaste la tierra,
responde tú,
dónde tu padre reposa
bajo una cruz,
¿dónde dejarás tus huesos?
Responde tú.

Ah desdichado, responde,
responde tú,
¿dónde hallarás verde y verde,
azul y azul,
palma y palma bajo el cielo?
Responde tú.

Ouçamos agora este poema na voz de Ana Belen


Tú, que partiste de Cuba,
responde tu,
- onde acharás verde e verde,
azul e azul,
palmeiras e palmeiras sob o céu ?
Responde tu.

Tu, que tua língua esqueceste,
responde tu,
e em língua estrangeira mastigas o
well e o you,
como podes viver mudo?
Responde tu.

Tu, que deixaste a terra,
responde tu,
onde teu pai repousa
sob uma cruz,
- onde deixarás teus ossos ?
Responde tu.

Ah infeliz, responde,
responde tu,
-onde acharás verde e verde,
azul e azul,
palmeiras e palmeiras sob o céu ?
Responde tu.

Trad. de José Bento

in Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro

Nicolás Cristóbal Guillén Batista (nasceu em Camaguey, Cuba a 10 de julho de 1902 ; m. em Havana a 16 de julho de 1989)


2015-07-09

Soneto do amor total - Vinicius de Moraes

Amo-te tanto, meu amor ... não cante
O humano coração com mais verdade ...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.


Extraído de Vinicius de Moraes - Antologia Poética, Publicações Dom Quixote

Vinicius de Moraes (n. Rio de Janeiro a 19 de outubro de 1913; m. Rio de Janeiro, 9 de julho de 1980)

Ler neste blog do/sobre o autor:
A Ausente
Sonata do Amor Perdido
Se o amor quiser voltar
Saudades do Brasil em Portugal
Soneto do Amor Total
Poética I
Mar
Poema de Todas as Mulheres
Soneto de Fidelidade
Pela luz dos olhos teus
Dialectica
Aquarela
Amigos
Vinícius de Morais (n. 1913 m. 9 Jul 1980)

Cala-te - José Gomes Ferreira

Cala-te, voz que duvida
e me adormece
a dizer-me que a vida
nunca vale o sonho que se esquece.

Cala-te, voz que assevera
e insinua
que a primavera
a pintar-se de lua
nos telhados,
só é bela
quando se inventa
de olhos fechados
nas noites de chuva e de tormenta.

Cala-te, sedução
desta voz que me diz
que as flores são imaginação
sem raiz.

Cala-te, voz maldita
que me grita
que o sol, a luz e o vento
são apenas o meu pensamento
enlouquecido….

(E sem a minha sombra
o chão tem lá sentido!)

Mas canta tu, voz desesperada
que me excede.
E ilumina o Nada
Com a minha sede.

José Gomes Ferreira (n. no Porto a 9 de junho de 1900, m. em Lisboa a 8 de fevereiro de 1985)

Ler do mesmo autor, neste blog:

2015-07-08

De Profundis - Branca de Gonta Colaço

… E silenciosamente

morri, de morte humilde, humildemente,
numa longínqua torre,

num triste anoitecer ...

…………………………

Não é quando se acaba que se morre;
é quando acaba o gosto de viver.

in As Anthologias, Poetisas de Hoje,
Collecção Patrícia dirigida por Albino Forjaz de Sampaio
Empresa do Diário de Notícias, 1931

Branca Eva de Gonta Syder Ribeiro Colaço (n. Lisboa, 8 de julho de 1880 — m. Lisboa, 22 de março de 1945)

O QUE EU VI (Soneto I de Deus e a Alma) - Manuel de Arriaga

Saí um dia a contemplar o mundo,
Por ver quanto há de belo e quanto brilha
Na múltipla e gloriosa maravilha,
Que anda suspensa em o azul profundo!

Vi montes, vales, árvores e flores,
Límpidas águas, múrmuras torrentes,
Do grande mar as músicas plangentes,
Dos céus sem fim os trémulos fulgores!

Trouxe os olhos tão ricos de beleza,
O coração tão cheio de harmonia,
De quanto havia em terra, mar e céus,

Que interpretando a sós a Natureza:
Dentro de mim esplêndido fulgia,
N'um círculo de luz, teu nome, oh Deus!


in Cantos Sagrados, Manoel D'Arriaga, Lisboa, Manoel Gomes Editor, 1899
(ortografia atualizada)

Manuel José de Arriaga Brum da Silveira e Peyrelongue (Horta, Matriz, 8 de julho de 1840 — Lisboa, 5 de março de 1917

2015-07-07

VELHA ANEDOTA - Artur de Azevedo


Tertuliano, frívolo peralta,
Que foi um paspalhão desde fedelho,
Tipo incapaz de dar um bom conselho,
Tipo, morto, não faria falta.

Lá um dia deixou de andar à malta,
E indo à casa do pai, honrado velho,
A sós na sala, em frente de um espelho,
À própria imagem disse em voz bem alta:

-Tertuliano, és um rapaz formoso!
És simpático, és rico, és talentoso!
Que mais no mundo se faz preciso?

Penetrando na sala, o pai sisudo
Que por trás da cortina ouvira tudo,
Severamente respondeu: - Juízo!

Artur Nabantino Belo Gonçalves de Azevedo nasceu em São Luís (MA) a 7 de julho de 1855 e faleceu no Rio de Janeiro a 22 de outubro de 1908.

Ler, neste blog, do mesmo autor:
Arrufos
Por Decoro
Eterna Dor

2015-07-06

Posfácio À Toca do Lobo - Tomaz de Figueiredo

- Pai, vem da morte e vamos às perdizes.
Vejo a aurora, que tinge do seu rajo
de dente a dente a Serra de Soajo...
- Ciprestes, desatai-o das raízes!

- Este Inverno as perdizes estão em barda:
criaram-se as ninhadas sem granizo.
Vamos chumbar dos perdigões o guizo,
anda matar securas da espingarda.

A tua Holland... O animal de presa...
O azul brunido... Velha e como nova...
Bem a merecias a alegrar-te a cova.
Penou-te de saudades, com certeza.

Aqui a tens. Porque era ver-te, olhá-la,
sequer um dia que não fosse vê-la.
Olha deluz-se a derradeira estrela,
já folga a luz no lustra aqui da sala.

Trinta anos depois, caçar contigo,
e sempre conversando e à chalaça...
Mais que perdizes, hoje, melhor caça
É matar fomes do caçar antigo.

Ver-te sorrir à escapatória sonsa
da velha que não viu «perdiz nem chasco!»
E o Lorde a anunciá-la sob o fasco,
e tu lambendo o cigarrinho de onça...

Ó pai, se não vivias há trinta anos,
também há trinta eu não vivia, pai!
O sol, reacendido, vem e vai
divagando no aço inglês dos canos.

Ali, agora, o nosso amigo Lorde,
que tornou da raiz a laranjeira...
Dá aos queixos, marrado, na tojeira.
Vê cinco da bandada. Cinco morde.

O amigo espera. Vê. Petrificou-se.
Esperam as perdizes que medusa.
Vai lá tu só. Desacolcheta a blusa.
Secundaste a chumbada! Pai, que fouce!

Como na morte nem perdeste a mão
De pôr a Holland à cara e desfechar!
Na mesa o nosso Lorde o seu narrar,
E a vista, o faro, o tento e a paixão!

Tens sede... Oiço a chamar-nos uma fonte...
Vamos beber de borco, à antiga moda.
Sentemo-nos na relva, amando em roda,
ouvindo as idas falas do horizonte.

À moda muito nossa, de poetas...
Eu a falar de bulhas, bofetões,
a perdigões contando os esporões
e, sob a cauda, as régias pintas pretas.

À nossa moda antiga e hoje a mesma...
Traz-nos o vento lemes de penisco.
Desce a beber na fonte, agora, um pisco,
assustando os pauzinhos duma lesma.

E tu a perguntares dos meus estudos...
Que tal o meu Francês, o meu Latim?
«Ó pai, quando ao Latim, assim-assim...»
Ah! pai, que somos dois soluços mudos!

Lá vejo a nossa casa. Estás a vê-la?
O nosso tanque, a fonte, o laranjal?
E a Maria Velha, no quintal,
com um cesto de roupa e a estendê-la?

Ah! Meu pai, que até vejo pelos muros!
Lá te alcanço, da mesa à cabeceira.
Também deitando achas à lareira
(E todos nós, da vida tão seguros...)

A bica ali da fonte era de vento,
as perdizes, sequer embalsamadas,
o Lorde, sombra de asas afogadas,
falcão de frio e fome, o pensamento.

Ah! pai, que me repassam os nordestes,
que vejo além ferrugens de mil cruzes:
de dia, embora, palpitando luzes
e a palma de verdete dos ciprestes.

  in 'Aos Amigos'
 
Tomaz Xavier de Azevedo Cardoso de Figueiredo (nasceu em Braga, 6 de julho de 1902 — faleceu em Lisboa, 29 de abril de 1970).

Do mesmo autor:
Ó Portuguesa Língua. adeus te digo

2015-07-05

Destino - Mia Couto


à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?

In Raiz de Orvalho e Outros Poemas.

Mia Couto é o pseudónimo de António Emílio Leite Couto nascido a 5 de julho de 1950 na cidade da Beira, em Moçambique

Do mesmo autor ler:
Pergunta-me
A demora
Números

2015-07-04

Torre de Marfim - João Lúcio

Quando, em baixo, ruge, o temporal, sem fim,
Dessa miséria, oh pó, em que tu te esfacelas,
Eu subo à minha torre esguia, de marfim,
Onde me côa, o sonho, o filtro das estrelas.

Sai-me ao encontro a Musa. E o seu olhar pleno
De longínquo e mistério, enche-me o Pensamento;
A Musa, que eu guardo, entre o éter sereno,
Como um velho sultão, avaro e ciumento.

E ficamos, os dois, na torre em solidão,
Onde, a luz do luar, faz de tapeçaria,
Mineiros da Quimera, à busca do filão,
Que tem o diamante azul da Fantasia.

Da Fantasia, que é, em essência, somente
Um jacto de clarão, num nevoeiro escuro:
N’voeiro, que condensa a sombra do Presente,
E clarão, que nos traz já a luz do Futuro.

Foi sob esse clarão, nessa torre isolada,
Que fomos lapidando os versos fatigantes,
Mineiros, que tortura a raiva desolada,
De não ter encontrado o filão dos diamantes.


João Lúcio Pousão Pereira (n. Olhão, 4 de Julho de 1880 - m. 26 de Outubro de 1918)

Ler do mesmo autor, neste blog:
Deixa-me Beber-te  a Formosura
Sensações Desconhecidas
Tarde de Leite e Rosas Ouvindo Floresta

2015-07-03

Caminhada - Fernando Semana

Não esperes compreensão pelo defeito
Mesmo que bom trabalho antes tenhas feito.
As coisas são fátuas e os homens fúteis,
As vitórias voam e as derrotas são inúteis.

Cada novo dia é uma provocação:
Uma oportunidade, tantas ameaças.
Faz tanto, mas por mais que faças
Não te iludas, faltará a conclusão:

Estás sempre a meio do caminho!
Prossegue e bebe um copo de vinho.
Busca não estar contra os outros

Mas vive, em especial, de bem contigo.
Se a métrica nem a rima consigo
Sejam os versos livres mas não neutros.


Além Ainda... - Luís Murat

Caminheiro que vais ao fim do dia
Demandando o crepúsculo das dores,
Não te percas na lágrima sombria
Da tormenta de anseios e amargores!

Além da sepultura principia
O caminho dos sonhos redentores,
Na alvorada perene da harmonia,
Aureolada de eternos resplendores.

Desolado viajor, ergue teus olhos!
Não te prendas somente ao chão tristonho,
Guarda a esperança carinhosa e linda!

Vence a longa jornada dos abrolhos,
Que o país luminoso do teu sonho
Fica ao alto... distante... além ainda...


Luís Morton Barreto Murat (n. em Resende, RJ, em 4 de Maio de 1861; m. no Rio de Janeiro, RJ, em 3 de Julho de 1920)

Ler do mesmo autor neste blog:
Penas Perdidas
O Poder das Lágrimas;
Travessia das Lágrimas
Ironia do Coração;
Em Meio do Caminho

2015-07-02

POSSIBILIDADES - Wislawa Szymborska

Prefiro cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos nas margens do Warta.
Prefiro Dickens a Doistoievski.
Prefiro-me gostando dos homens
em vez de estar amando a humanidade.
Prefiro ter uma agulha preparada com a linha.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não afirmar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as excepções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar com os médicos sobre outra coisa.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrever.
No amor prefiro os aniversários não redondos
para serem comemorados cada dia.
Prefiro os moralistas,
que não prometem nada.
Prefiro a bondade esperta à bondade ingénua demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos países conquistadores.
Prefiro ter abjecções.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro contos de fada de Grimm às manchetes de jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães com o rabo não cortado.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que aqui não disse,
e outras tantas não mencionadas aqui.
Prefiro os zeros à solta
a tê-los numa fila junto ao algarismo.
Prefiro o tempo do insecto ao tempo das estrelas.
Prefiro isolar.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro levar em consideração até a possibilidade
do ser ter a sua razão.


Trad. Alexander Jovanovic e Henry Siewierski

in "Rosa do Mundo 20021 Poemas para o Futuro" (assírio & alvim, 2001)

Wisława Szymborska (Kórnik, Polónia, 2 de julho de 1923 — Cracóvia, 1 de fevereiro de 2012), foi Nobel da Literatura em 1996.

2015-07-01

O Melhor Jogador do Europeu Sub 21 ...

Portugal era a melhor equipa do Europeu. Apenas a Itália - que foi afastada das meias finais porque Portugal concedeu o empate frente à Suécia "escolhendo" esta como parceira - se lhe aproximava.

José Sá, Paulo Oliveira, William Carvalho e Bernardo Silva fizeram excelentes exibições. Se fosse eu escolheria Bernardo Silva como o melhor jogador da prova.

Mas sabem quem ganhou? William Carvalho, esse mesmo que ao falhar o penalty deu o título aos suecos!!! E esta... heim?!

Chave - Carlos de Oliveira

Arte do vidro daqui

Se uma película de vidro
adere à pele da pedra; se algum
Vento vier.

Afere-lhe o esplendor; martela,
fere: um som de ferro
no exterior; por dentro
outra textura mais espessa. Poisa
como um verniz depois o ar
suave a sua
laca no esmalte fracturado

E levanta-se então.
Minuciosamente. Ergueu-se
o halo
das colinas; a lenta beleza
levitada em cada grão
de pedra. Irradiando as lanças
que o brilho do vento
restituiu à luz, no aro
mais espesso do ar.

Rodar a chave do poema
e fecharmo-nos no seu fulgor
por sobre o vale glaciar. Reler
o frio recordado.

in Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim

Carlos Alberto Serra de Oliveira (n. em Belém do Pará, a 10 de Agosto de 1921 e morreu em Lisboa a 1 de Julho de 1981)