Páginas

2015-10-30

SUAVE É A ESPERA - A. Estebanez


Deixa tua alma numa rosa
e um sonho no amanhecer
para ver minha esperança
que hoje espera te rever...

Tu não precisas do tempo
quando o amor acontecer.
O amor te chega na brisa
quando o sonho alvorecer.

Deixa o coração na porta
e um arco-íris no jardim...
A esperança se comporta
como flor dentro de mim.

Que suave é toda espera
para quem quer renascer
num sonho de primavera
que renasce sem morrer...

Afonso Estebanez Stael nasceu em 30 de outubro de 1943, em Cantagalo, Rio de Janeiro

2015-10-29

DA MITOLOGIA - Zbigniew Herbert

Primeiro era um deus da noite e da tempestade, ídolo negro e sem olhos, diante do qual saltavam nus e lambuzados de sangue. Mais tarde, nos tempos da república, eram imensos os deuses,com mulheres, filhos, camas desconjuntadas e raios que explodiam inofensivos. Por fim só os neuróticos supersticiosos carregavam nos bolsos pequenas estátuas de sal, representando o deus da ironia. À época nao havia maior deus.
Vieram então os bárbaros. Também eles tinham em alta estima o pequeno deus da ironia. Esmagavam-no sob os calcanhares, adicionando-o depois aos seus manjares.

Tradução de Rui Knopfli

Zbigniew Herbert (n. Lviv, Polónia (hoje Ucrânia) , 29 de outubro de 1924 - m. em Varsóvia, Polónia, 28 de julho de 1998)

2015-10-28

Surge et Ambula - Rui de Noronha


Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.
Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo...
O progresso caminha ao alro de um hemisfério
E tu dormes no outro sono o sono do teu infindo...

A selva faz de ti sinistro eremitério,
onde sozinha, à noite, a fera anda rugindo...
Lança-te o Tempo ao rosto estranho vitupério
E tu, ao Tempo alheia, ó África, dormindo...

Desperta. Já no alto adejam corvos
Ansiosos de cair e de beber aos sorvos
Teu sangue ainda quente, em carne sonâmbula...

Desperta! O teu dormir já foi mais que terreno...
Ouve a Voz do Progresso, este outro Nazareno
Que a mão te estende e diz: - África, surge et ambula!



António Ruy de Noronha (n. Lourenço Marques, actual Maputo, Moçambique a 28 de outubro de 1909; m. Moçambique em 25 dezembro 1943).

Ler, neste blog, do mesmo autor:
Por Amar-te Tanto
Grito de Alma
Mulher

2015-10-27

Decisão / Resolve - Sylvia Plath

Dia nublado: dia cinzento

fico
de mãos bobas
esperando o leiteiro

o gato de uma orelha
lambe a pata cinza

e ardem brasas em chamas

lá fora, vão ficando amarelinhas
as folhas da trepadeira
uma fina fita de leite
embaça garrafas vazias na janela

nenhuma glória provém

duas gotas se equilibram
numa verde envergada
haste da roseira na casa ao lado

ó se arca de espinhos

o gato afia as garras
o mundo gira

hoje
hoje não irei
desiludir meus doze engalanados examinadores
nem cerrarei meu punho
na ironia do vento.

Trad. Elson Fróes


ORIGINAL VERSION

RESOLVE


Day of mist: day of tarnish

with hands
unserviceable, I wait
for the milk van

the one-eared cat
laps its gray paw

and the coal fire burns

outside, the little hedge leaves are
become quite yellow
a milk-film blurs
the empty bottles on the windowsill

no glory descends

two water drops poise
on the arched green
stem of my neighbor's rose bush

o bent bow of thorns

the cat unsheathes its claws
the world turns

today
today I will not
disenchant my twelve black-gowned examiners
or bunch my fist
in the wind's sneer.

Sylvia Plath (n. Boston, Massachusetts, 27 de outubro de 1932; m. Londres 11 de fevereiro de 1963)

2015-10-26

Apelo à Poesia - Carlos Queirós


Porque vieste? - Não chamei por ti!
Era tão natural o que eu pensava,
(Nem triste, nem alegre, de maneira
Que pudesse sentir a tua falta...)
E tu vieste,
Como se fosses necessária!

Poesia! nunca mais venhas assim:
Pé ante pé, cobardemente oculta
Nas ideias mais simples,
Nos mais ingénuos sentimentos:
Um sorriso, um olhar, uma lembrança...
– Não sejas como o Amor!

É verdade que vens, como se fosses
uma parte de mim que vive longe,
Presa ao meu coração
Por um elo invisível;
Mas não regresses mais sem que eu te chame,
– Não sejas como a Saudade!

De súbito, arrebatas-me, através
De zonas espectrais, de ignotos climas;
E, quando desço à vida, já não sei
Onde era o meu lugar...
Poesia! nunca mais venhas assim
– Não sejas como a Loucura!

Embora a dor me fira, de tal modo
Que só as tuas mãos saibam curar-me,
Ou ninguém, se não tu, possa entender
O meu contentamento...
Não venhas nunca mais sem que eu te chame,
– Não sejas como a Morte!

José Carlos Queiroz Nunes Ribeiro (n. Lisboa em 5 de abril de 1907, m. Paris, 27 de outubro de 1949)

2015-10-24

SINAL - Emanuel Félix



Ergo nas mãos em concha
uma lembrança de água
oh presença subtil no deserto de um livro
a que uma folha dura

E que frágeis os trincos da memória
do que era teu e meu
a invisível tesoura
com que cortar os sonhos pela cintura

Emanuel Félix Borges da Silva nasceu em Angra do Heroísmo a 24 de Outubro de 1936 e faleceu no dia 14 de Fevereiro de 2004

2015-10-23

PROA - Edival Perrini


O sonho é meu pastor, nada me faltará.
Que venham as tormentas, que venha o que vier,
tenho o sonho comigo, o sonho é meu pastor.

O mundo da aparência não me engolirá.
Conheço bem suas manhas, meu ofício é interior:
girassol que é girassol tem proa pro amanhecer.

O sonho é meu pastor, nada me faltará.
Com ele eu teço o mundo, reinvento a via-láctea.
Mistérios são bem-vindos, o sonho é meu pastor.

Ou eu busco a verdade ou ela não me achará.
Minha verdade, o sonho, é pomar e é brasão.
Seu universo, os versos, fio do sim e do não.

O sonho é meu pastor, nada me faltará.
Encontro nele a luz, meu alimento e cor.
Que escorra a ampulheta, o sonho é meu pastor.

in Armazém de ecos e achados

Edival Antonio Lessnau Perrini (n. em Curitiba, Paraná, em 23 outubro de 1948).

Do mesmo autor: Sombra

2015-10-22

Impressões de Teatro - Artur de Azevedo

A Guimarães Passos


Que dramalhão! Um intrigante ousado,
Vendo chegar da Palestina o conde,
Diz-lhe que a pobre da condessa esconde
No seio o fruto de um amor culpado.

Naturalmente o conde fica irado
— "O pai quem é?" pergunta - "Eu", lhe responde
Um pagem que entra. — "Um duelo!" — "Sim! Quando? Onde?"
No encontro morre o amante desgraçado..

Folga o intrigante... Porém surge um mano,
E vendo morto o irmão, perde a cabeça:
Crava o punhal no peito do tirano!

É preso o mano, mata-se a condessa,
Endoidece o marido,... e cai o pano,
Antes que outra catástrofe aconteça.

Artur Nabantino Belo Gonçalves de Azevedo nasceu em São Luís (MA) a 7 de julho de 1855 e faleceu no Rio de Janeiro a 22 de outubro de 1908.

Ler, neste blog, do mesmo autor:
Arrufos
Por Decoro
Eterna Dor 
Velha Anedota

2015-10-21

A Casa que a Fome Mora - Antônio Francisco (Literatura de cordel)

Eu de tanto ouvir falar
Dos danos que a fome faz,
Um dia eu sai atrás
Da casa que ela mora.
Passei mais de uma hora
Rodando numa favela
Por gueto, beco e viela,
Mas voltei desanimado,
Aborrecido e cansado.
Sem ter visto o rosto dela.

Vi a cara da miséria
Zombando da humildade,
Vi a mão da caridade
Num gesto de um mendigo
Que dividiu o abrigo,
A cama e o travesseiro,
Com um velho companheiro
Que estava desempregado,
Vi da fome o resultado,
Mas dela nem o roteiro.

Vi o orgulho ferido
Nos braços da ilusão
Vi pedaços de perdão
Pelos iníquos quebrados,
Vi sonhos despedaçados
Partidos antes da hora,
Vi o amor indo embora,
Vi o tridente da dor,
Mas nem de longe via a cor
Da casa que a fome mora.

Vi num barraco de lona
Um fio de esperança,
Nos olhos de uma criança,
De um pai abandonado,
Primo carnal do pecado,
Irmão dos raios da lua,
Com as costas seminuas
Tatuadas de caliça,
Pedindo um pão de justiça
Do outro lado da rua.

Vi a gula pendurada
No peito da precisão,
Vi a preguiça no chão
Sem ter força de vontade,
Vi o caldo da verdade
Fervendo numa panela
Dizendo: aqui ninguém come!
Ouvi os gritos da fome,
Mas não vi a boca dela.

Passei a noite acordado
Sem saber o que fazer,
Louco, louco pra saber
Onde a fome residia
E por que naquele dia
Ela não foi na favela
E qual o segredo dela,
Quando queria pisava,
Amolecia e Matava
E ninguém matava ela?

No outro dia eu saio
De novo a procura dela,
Mas não naquela favela,
Fui procurar num sobrado
Que tinha do outro lado
Onde morava um sultão.
Quando eu pulei o portão
Eu vi a fome deitada
Em uma rede estirada
No alpendre da mansão.

Eu pensava que a fome
Fosse magricela e feia,
Mas era uma sereia
De corpo espetacular
E quem iria culpar
Aquela linda princesa
De tirar o pão da mesa
Dos subúrbios da cidade
Ou pisar sem piedade
Numa criança indefesa?

Engoli três vezes nada
E perguntei o seu nome
Respondeu-me: sou a fome
Que assola a humanidade,
Ataco vila e cidade,
Deixo o campo moribundo,
Eu não descanso um segundo
Atrofiando e matando,
Me escondendo e zombando
Dos governantes do mundo.

Me alimento das obras
Que são superfaturadas,
Das verbas que são guiadas
Pro bolsos dos marajás
E me escondo por trás
Da fumaça do canhão,
Dos supérfluos da mansão,
Da soma dos desperdícios,
Da queima dos artifícios
Que cega a população

Tenho pavor da justiça
E medo da igualdade,
Me banho na vaidade
Da modelo desnutrida
Da renda mal dividida
Na mão do cheque sem fundo,
Sou pesadelo profundo
Do sonho do bóia fria
E almoço todo dia
Nos cinco estrelas do mundo.

Se vocês continuarem
Me caçando nas favelas,
Nos lamaçais das vielas,
Nunca vão me encontar,
Eu vou continuar
Usando o terno Xadrez,
Metendo a bola da vez,
Atrofiando e matando,
Me escondendo e zombando
Da Burrice de vocês.

Antônio Francisco Teixeira de Melo nasceu em Mossoró, Rio Grande do Norte, Brasil, a 21 de outubro de 1949

Pode ainda ouvir "Os Animais Têm Razão"


2015-10-20

Estranho Azul - Paulo Themudo


Parti...
Lentamente a minha alma se foi repartindo
De segredos e imaginação.
Leves e serenos olhares me cercam
No infinito que se esconde.
Fabricamos histórias sem sentido
Porque nos mentimos bem
E a realidade é...
Inútil...
Dos grandes Poetas
Resta a fama. a vã gloria,
Deitada agora num lugar qualquer.
Parti...
Conhecer esse paraíso de que todos falavam
E que foi sempre fruto dos sonhos
Rumor dos encantos.
Mas mesmo assim... Decidi,
Que a morte padecia sobre a vida
E que da vida pouco resta
Senão o tingir dos dias,
Que nos alegram, desiludem, enriquecem.
E cada dia é uma despedida
Ao mundo.
Fabricamos histórias
Para conseguir alguma luz,
Preencher com cor
O que se perdeu.
Aqui...
Já não sou quem era,
Não me engano
E esta foi a vida que eu escolhi.
Parti... Daqui.

PAULO THEMUDO nasceu a 20 de outubro de 1968 em Matosinhos,

Do mesmo autor:
Enquanto Durmo

2015-10-19

Ternura - Vinicius de Moraes


Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem
sem fatalidade o olhar extático da aurora.


Vinicius de Moraes, nascido Marcus Vinicius de Moraes, (Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1913 — Rio de Janeiro, 9 de julho de 1980)

Ler neste blog do/sobre o autor:
A Ausente
Sonata do Amor Perdido
Se o amor quiser voltar
Saudades do Brasil em Portugal
Soneto do Amor Total
Poética I
Mar
Poema de Todas as Mulheres
Soneto de Fidelidade
Pela luz dos olhos teus
Dialectica
Aquarela
Amigos

2015-10-18

Mocidade - Casimiro de Abreu

Doce filha da lânguida tristeza
Ergue a fronte pendida - o sol fulgura!
Quando a terra sorri-se e o mar suspira
Por que te banha o rosto essa amargura?!

Por que chorar quando a natura é risos,
Quando no prado a primavera é flores?
- Não foge a rosa quando o sol a busca
Antes se abrasa nos gentis fulgores.

Não! - Viver é amar, é ter um dia
Um amigo, uma mão que nos afague;
Uma voz que nos diga os seus queixumes,
Que as nossas mágoas com amor apague.

A vida é um deserto aborrecido
Sem sombra doce, ou viração calmante;
- Amor - é a fonte que nasceu nas pedras
E mata a sede à caravana errante.

Amai-vos! disse Deus criando o mundo,
Amemos! - disse Adão no paraíso,
Amor! - murmura o mar nos seus queixumes,
Amor! - repete a terra num sorriso!

Doce filha da lânguida tristeza
Tua alma a suspirar de amor definha...
- Abre os olhos gentis à luz da vida,
Vem ouvir no silêncio a voz da minha!

Amemos! Este mundo é tão tristonho!
A vida, como um sonho - brilha e passa;
Porque não havemos p'ra acalmar as dores
Chegar aos lábios o licor da taça?

O mundo! o mundo! - E que te importa o mundo?
- Velho invejoso, a resmungar baixinho!
Nada perturba a paz serena e doce
Que as rolas gozam no seu casto ninho.

Amemos! - tudo vive e tudo canta...
Cantemos! seja a vida - hinos e flores;
De azul se veste o céu... vistamos ambos
O manto perfumado dos amores.

Doce filha da lânguida tristeza
Ergue a fronte pendida - o sol fulgura!
- Como a flor indolente da campina
Abre ao sol da paixão tua alma pura!


Setembro - 1858.

Casimiro José Marques de Abreu (nasceu no dia 4 de Janeiro de 1839, em Barra de São João, no Estado do Rio, e morreu no dia 18 de outubro de 1860, em Nova Friburgo).

Ler do mesmo autor, neste blog:
A Valsa
Canção do Exílio
O Que é Simpatia
Meus oito anos
Quando ?!...
Clara
Amor e Medo
Minh'alma é triste I
Minh'alma é triste III
Canto de Amor IV

2015-10-16

Cantar de Emigração - Adriano Correia de Oliveira

Este parte, aquele parte
e todos, todos se vão.
Galiza ficas sem homens
que possam cortar teu pão.

Tens em troca órfãos e órfãs
Tens campos de solidão.
Tens mães que não têm filhos
Filhos que não têm pai.

Coração que tens e sofre
Longas ausências mortais.
Viúvas de vivos mortos
Que ninguém consolará.

Este parte, aquele parte
E todos, todos se vão.
Galiza ficas sem homens
Que possam cortar teu pão.

Letra de Rosalia de Castro, Música de José Niza, voz de Adriano Correia de Oliveira



Adriano Maria Correia Gomes de Oliveira (Porto, 9 de abril de 1942 — Avintes, V. N. de Gaia, 16 de outubro de 1982)

2015-10-15

O Meu Grito - Manuel Alves



Nobre e altivo Portugal,
Foste outrora o mais valente
Hoje tão pobre e doente,
Império feito hospital
Saquearam-te o metal,
Altos senhores de cartola
Partiu a doirada mola
À chave do teu dinheiro,
À porta do estrangeiro
Bates, pedindo esmola.

Tu foste crente e sadio
Nessas épocas passadas,
Hoje em manhãs de geadas,
Trémulo de fome e frio...
Esse governo vadio,
Essa vil raça mesquinha,
Vendeu-te à raça vizinha
Como inútil para a vida!
Tens a existência perdida,
Tu, já das nações rainha.

Foi um governo devasso
Que te deu a pobre enxerga;
Pôs-te um cestinho de verga
Dependurado no braço.
Pedes de pão um pedaço,
O teu leito é pobre palha;
Roubaram-te essa medalha
Da honra, da valentia...
Era um rei que então havia,
Chefe de toda a canalha.

Eu sei que o réu não és tu;
Mas os teus, no esquecimento,
Deixaram que o parlamento
Te expusesse quase nu,
Com calças de pano cru,
Sapatos velhos, já rotos,
Sem esperanças de teres outros
Sem honra, sem disciplina...
Ai do que escuta a doutrina
Dessa corja de marotos!

Foram eles que te obrigaram
A assinar uma escritura...
Esses da magistratura
Todos juntos te cercaram,
Todos a uma só voz bradaram:
“Se não quiseres assinar,
Os teu filhos de além-mar
Vão para venda ser punidos!”
Para não veres filhos vendidos,
Tiveste que te curvar!

Ó filhos de Portugal,
Gritai todos a uma voz:
“Abaixo o governo atroz!
Abaixo a hoste real!”
Limpemos a lodaçal,
O foco da epidemia,
Que de dia para dia
Nos vai cavando o abismo;
Guerra crua ao despotismo!
Guerra crua à monarquia!

Ao pobre falta-lhe o pão
Com que se alimentar,
E há-de por força pagar
A sua contribuição!
Para pior condição
Vem o senhor da fazenda
Pedir-lhe do amanho a renda,
O suor dum ano inteiro!...
O pobre não tem dinheiro,
Tem que expor tudo à venda.

Depois o imposto do selo
Cada vez mais aumentado...
Um governo debochado
Leva-nos coiro e cabelo...
O pobre não tem apelo,
Requer não é obtido;
De hidrófobo cão mordido,
São inúteis suas queixas;
Vem dos mandões as fateixas,
Lá fica o pobre despido.

Não temos tropa de linha,
Não temos cavalaria,
Não temos artilharia,
Nem sequer temos marinha!
A pátria, pobre e mesquinha,
Sem, crédito, sem dinheiro,
Dum governo traiçoeiro
De caloteira insultada,
Assim anda apregoada
Nos jornais do Estrangeiro!

Pagam-se quinze por cento,
Direitos de transmissão;
Tudo vai cair a mão
Duns homens sem sentimento.
É este o procedimento
Da vossa alta energia!
Nas bambochatas, na orgia,
Assim esgotais os cofres...
Vê Portugal, quanto sofres...
Com a santa monarquia!

Manuel Alves (o "poeta cavador") nasceu em 15 de outubro de 1843 na freguesia da Moita, concelho de Anadia, e morreu em 24 de julho de 1901

2015-10-14

Soneto: Não será sempre assim... Quando não for; / It may not always be so; and I say - E. E. Cummings

Não será sempre assim... Quando não for;
Quando teus lábios forem de outro; quando
No rosto de outro o teu suspiro brando
Soprar; quando em silêncio, ou no maior

Delírio de palavras desvairando,
Ao teu peito o estreitares com fervor;
Quando, um dia, em frieza e desamor
Tua afeição por mim se for trocando:

Se tal acontecer; fala-me. Irei
Procurá-lo, dizer-lhe num sorriso:
«Goza a ventura de que já gozei.»

Depois, desviando os olhos, de improviso,
Longe, ah tão longe, um pássaro ouvirei
Cantar no meu perdido paraíso.

(Tradução de Manuel Bandeira)

em Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim

ORIGINAL

it may not always be so; and i say
that if your lips, which i have loved, should touch
another's, and your dear strong fingers clutch
his heart, as mine in time not far away;
if on another's face your sweet hair lay
in such a silence as i know, or such
great writhing words as, uttering overmuch,
stand helplessly before the spirit at bay;

if this should be, i say if this should be-
you of my heart, send me a little word;
that i may go unto him, and take his hands,
saying, Accept all happiness from me.
Then shall i turn my face, and hear one bird
sing terribly afar in the lost lands.

Edward Estlin Cummings (b. on 14 Oct. 1894 in Cambridge, Massachusetts; d. on 3 Sep. 1962 in North Conway, New Hampshire)

2015-10-13

O anel de vidro - Manuel Bandeira

Aquele pequenino anel que tu me deste,
– Ai de mim – era vidro e logo se quebrou…
Assim também o eterno amor que prometeste,
- Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.

Frágil penhor que foi do amor que me tiveste,
Símbolo da afeição que o tempo aniquilou, –
Aquele pequenino anel que tu me deste,
– Ai de mim – era vidro e logo se quebrou…

Não me turbou, porém, o despeito que investe
Gritando maldições contra aquilo que amou.
De ti conservo no peito a saudade celeste…
Como também guardei o pó que me ficou
Daquele pequenino anel que tu me deste…


Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (n. Recife, 19 de abril 1886 — m. Rio de Janeiro, a 13 de outubro de 1968).

Ler do mesmo autor, neste blog:
O Último Poema
Tema e Variações
Momento num café
Hiato
Desencanto
A Onda
Antologia
Maçã

2015-10-12

Poema simples - Fernando Semana

Amo-te!
Este é o poema mais simples que posso dizer
E o mais difícil de explicar.

Cala-te!
Não o estragues com mais palavras.
Beija-me e. (ponto)

2015-10-10

Viagem fantástica - Florival de Passos (na passagem do centenário do nascimento)



Nasci, e corri o mundo
Levado pelo Ideal.
Procurando sempre o céu,
E sempre encontrando o mal.

Fui como o fiozinho de água
Que perfura na raiz.
Perfurei também a vida
Que me deu a cicatriz.

Fiz labareda vermelha
Pra aquecer a humanidade.
E só formei um incêndio,
Que se fez eternidade.

Quis ser a terra bendita
Que protege e mata a fome.
E só fui seco deserto,
Cheio de febre e sem nome.

Quis ser o ar muito brando,
Refrescando a terra dura.
E fui horrível ciclone
Trazendo toda a amargura.

E segui minha viagem
Levado pelo Ideal.
Queria o céu atingir,
Mas só atingi o mal.

Passei por terras de lenda,
Terras de sonho e quimera,
Mas só conheci Invernos,
Não conheci Primaveras.

Passei oceanos de luz,
Passei barrancos escuros.
Senti sorrisos divinos,
E senti beijos impuros.

E passei rentinho ao sol,
Fiquei cego, deslumbrado.
Mas o sol deu uma volta,
E ficou no outro lado.

Florival Hermenegildo dos Passos, nasceu na freguesia da Sé, no Funchal a 10 de outubro de 1915 e faleceu a 10 de outubro de 1989

2015-10-09

A Virgem Inútil - Ismael Nery

Eu não lhe pertenci porque não quis
Não fui de ninguém e nem sou minha.
Nasci no dia 9 de julho de 1909
E não sei quando morrerei.
Fui criança que não brincou
E moça que não namorou.
Sou mulher que não tem desejos.
Serei velha sem passado.
Só gosto de estar deitada
Olhando não sei p’ra onde.
Passo horas sem pensar,
Passo dias sem comer,
Passo anos sem mexer
No quarto azul que me deram.
Nasci nele, vivo nele e nele talvez morrerei.
Se não aparecer aquele
Que sempre esperei sem cansaço
Que me fará levantar, andar e pensar,
Que me ensinará o nome de meus pais e das partes do meu corpo.
Eu espero alguém que talvez não venha
Mas sei que existe,
Porque sei que existo.


Ismael Nery nasceu no dia 9 de outubro de 1900 em Belém do Pará e faleceu em 6 de Abril de 1934 no Rio de Janeiro

Do mesmo autor:
Eu
A Noiva do Poeta

2015-10-08

Realidade - Alberto de Serpa

Há uma realidade aparente
perigosa. É necessário
saber o fundo e o fim
daquilo com que jogamos
na vida.

Ninguém se deixe levar
pelas ordens dos sentidos!
Eles são como os insectos
que uma luz chama e consome.

Vêde!
O mar deslumbra os nossos olhos
e nas suas ondas está a morte...

O amor é atracção contínua
e no fim do amor é o cansaço...


Alberto de Serpa Esteves de Oliveira (nasceu no Porto a 12 de Dezembro de 1906 - m. na mesma cidade a 8 de Outubro de 1992)

in «Varanda»

Ler do mesmo autor, neste blog:
Interferência
Amores Infelizes
Incerteza
Um Jovem Camarada
Poema III
Névoa

2015-10-07

Que cada palavra trema dizendo - Cristovam Pavia


Que cada palavra trema dizendo
O que não pode ser dito.
E seja a poesia um violino de silêncio
Infinito.

E tu, poeta: vagabundo e despido,
Desprende-te do resto e deixa-os declamar
As vãs frases humanas. Não as ouças,
Vagabundo que passas cantando.

Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho, que usou o pseudónimo literário de Cristovam Pavia, nasceu na freguesia de Alcântara, Lisboa a 7 de Outubro de 1933 e faleceu na mesma cidade a 13 de Outubro de 1968.

Do mesmo autor:
Pequeno Poema
O poema que hei-de escrever para ti
Não fugir. Suster o peso da hora
Requiem
Na noite da minha morte

2015-10-06

Com Que Voz - Amália Rodrigues (no 16º aniversário do seu desaparecimento)


FADO - UNESCO WORLD INTANGIBLE CULTURAL HERITAGE


...



Amália Rodrigues nasceu em Lisboa a 23 de julho de 1920*, m. a 6 de outubro de 1999 em Lisboa

 *Data que consta dos registos oficiais. Amália sempre defendeu que nascera em 1 de Julho de 1920.

Já ouvi centenas de vezes e sempre me comovo!...


Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura paixão me sepultou.
que mor não seja a dor que me deixou
o tempo, de meu bem desenganado.

Mas chorar não se estima neste estado
aonde suspirar nunca aproveitou.
triste quero viver, pois se mudou
em tisteza a alegria do passado.

Assim a vida passo descontente,
ao som nesta prisão do grilhão duro
que lastima ao pé que a sofre e sente.

De tanto mal, a causa é amor puro,
devido a quem de mim tenho ausente,
por quem a vida e bens dele aventuro.

Poema de Luís de Camões! Música de Alain Oulman

Confissão - Guilherme de Faria


Noite… Vejo, na sombra, os astros a fulgir…
— Alma da luz, imersa em funda escuridão,
Oh noite, vem ouvir
A minha confissão!

Tu és a treva eterna e misteriosa,
E eu sou a luz jamais amanhecida:
Sombra de horror, sonâmbula e saudosa
Da luz duma outra vida.

Pelas sombras do mundo me disperso,
Vejo em todas as sombras o meu ser,
E sinto, em cada grito, a dor dum universo,
E sinto, em minha dor, mil almas a sofrer!

Oh, triste confissão
De lágrimas e dor,
De gritos e de horror,
De humana contrição!

Oh sombra de alma, aurora anoitecida,
Acaso a tua luz, um dia, amanheceu?
E enquanto eu ando a errar, perdido pela vida,
Não serás, luz de amor, o sol dum novo céu?

Eu quis lutar, sofrer, sonhar a vida inteira!
E choro, sem viver, a mágoa de existir…
— És a irmã da minha alma, oh pobre, erma roseira
Que Deus soube criar, mas não deixou florir!

Sombra de amor, de sonho e desventura,
Oh noite, vem ouvir a minha confissão,
Que, para além da vida eternamente escura,
— Sonho eterno de luz — há gritos de ambição!

Quero viver, viver!
Oh fria luz do luar,
Rasga a treva noturna do meu ser,
E deixa-me sonhar…

— Quero ser a canção dos astros e dos céus,
E sentir, na minha alma, a luz de Deus!

E em sonhos de quimérica harmonia,
Ser a voz da humildade, a melodia
Das fontes, a cantar…
Ser lágrima de luz em pétalas de flor,
Ser nuvem, a sonhar, perdida no sol-pôr,
Ao longe, sobre o mar…

E sendo sombra, humana escuridão,
Quero ascender em frémitos de chama,
E ser vida de eterna redenção,
Ser a bênção de amor que o sol derrama!

Ser a névoa dum sonho, a errar, longe de tudo…
Ser a voz da oração, a ânsia dum voo…
— Mas eu quero viver, quero ser tudo,
Só não quero, Senhor!, ser o que sou!

Guilherme de Faria nasceu em Guimarães em 6 de outubro de 1907, e faleceu em Lisboa a 4 de janeiro de 1929

2015-10-05

Vem, oh Noite Sombria - Cruz e Silva


Vem, oh noite sombria, e revolvendo
O longo açoite, que à carreira acende
As fuscas Éguas, sobre a terra estende
De sombras carregado o manto horrendo:

Vem: e as brancas papoilas espremendo,
Em letárgico sono os mortais prende;
Que a minha bela Aglaia hoje me atende,
A meu amor mil glórias prometendo.

Se às minhas vozes dás benigno ouvido,
Encobrindo com teu escuro manto
Os suaves delírios de amor cego;

Imolar-te prometo agradecido
Um negro galo, que em contínuo canto
Se atreve a perturbar o teu sossego.

in 'Antologia Poética'

António Dinis da Cruz e Silva (n. em Lisboa a 4 julho 1731, m. no Rio de Janeiro a 5 outubro 1799)

Do mesmo autor:
É esta porventura a praia amena
Que aziago que foi, que dia infausto

2015-10-03

Balada dos Suplícios - Louis Aragon

- «Pudesse eu recomeçar
e este caminho seguia...»
Uma voz fala das grades
sobre a futura alegria.

Na sua cela, dois homens
por essa noite comprida,
murmuravam-lhe: «Confessa.
Ou estás cansado da vida?

Podes viver como nós,
viver, viver anos vastos...
Uma só palavra, és livre...
e podes viver de rastos...»

- «Pudesse eu recomeçar
e este caminho seguia...»
A voz que sobe das grades
canta a futura alegria.

«Apenas uma palavra,
abre-se a porta e tu sais:
já o carrasco se some,
já acabaram teus ais!

Apenas uma mentira
para mudares o destino...
sonha, sonha, sonha
o claro sol matutino!»

«Disse o que tinha a dizer
como o Rei Henrique falo:
uma missa por Paris...
p'lo meu reino, um cavalo...

Nada a fazer.» E partiram!
Cobre-o já seu sangue quente!
Era o seu único triunfo:
saber morrer inocente!

Pudesse ele recomeçar
ia esta sorte escolher?
Diz a voz que vem das grades:
- «Torná-lo-ia a fazer.

Eu morro e tu, França, ficas,
meu refúgio e minha fé.
Ó meus amigos, se morro,
vós sabeis pelo que é!»

Vieram para o prender,
falavam em alemão.
Disse-lhe um: - «Queres-te render?»
Respondeu com decisão:

- «Pudesse eu recomeçar
queria esta sorte seguir...»
A voz que sobe das grades
fala aos homens do porvir.

- «Pudesse eu recomeçar
queria esta sorte seguir.
Mesmo carregado de ferros,
que cante em mim o porvir!»

E cantava sob as balas:
«... sangrento se levantou...»
Até que nova rajada
veio por fim e o tombou.

Mas outra canção francesa
já dos seus lábios se evade
acabando a Marselhesa
para toda a Humanidade!

Trad. Carlos de Oliveira

Louis Aragon, de nascimento Louis Andrieux(n. Paris, 3 de outubro de 1897 — m. Paris, 4 de dezembro de 1982)

2015-10-01

O REGRESSO À CONDIÇÃO - António Alves Martins

Eu nunca sonhei tanto como agora!
E que ventura, para quem está preso,
Por momentos deitar isto ao desprezo;
dentro da noite imaginar a aurora!

Sonhar! Sonhar! A gente sonha - embora;
Das celas de prisão e grande o peso...
Pode abrandá-lo qualquer sonho aceso,
Mas sempre, n'alma, qualquer coisa chora!

Hoje, mal acordei, ouvi, distante,
Um gemido tão áspero e cortante
Que me parecia quasi não ter fim...

- Carro de bois! - pensei. E vi a serra,
E vi a Beira-Alta, a minha Terra,
Em Campolide - a soluçar por mim!


António Alves Martins (Viseu, 1 de outubro de 1894 — Viseu, 22 de fevereiro de 1929)

Da mesma autoria: Soneto V de Poemas do Cárcere