A fome, um dia, arrastou-me
Para as grades da prisão:
Sou o bastardo sem nome,
O deserdado sem pão!
Meu ar é dúbio, suspeito:
Vinte prisões conto já,
Vinte facadas no peito,
Na alma quantas não há!
Ninguém me quer, sou da vasa;
N as minhas carnes espúrias
Marcaram, a ferro em brasa,
Tatuagens rubras de injúrias!
Quando eu canto, o povo em massa
Chora ouvindo a minha voz;
Novo Camões da desgraça,
Canto a dor de todos nós!
Nas lajes do corredor
Ressoam passos... Quem vem?
Ferrolhos, chaves, rumor...
Encarceraram alguém!
Ferros de El-rei! Que ironia!
Soubesse El-rei da traição,
E caridoso viria
Dar-nos lágrimas e pão!
Aqui, em torpe igualdade,
Anicham-se os pais e os filhos;
Cabeças fora da grade,
Famintos e maltrapilhos!
A sombra, espertando o instinto,
Espessa de ardis, oprime;
Abismam-se as almas ... Sinto
Correr-me a larva do crime!
Noites de febre e miasmas,
De delírios e cruezas ...
Perpassam brancos fantasmas,
Brandões, fogueiras acesas!
Aos areais da desgraça
Lançou-me torva maré ...
Vejo toda a minha raça
Ardendo em autos-de-fé!
Adeus, a noite vai alta!
Por entre névoas, mui cedo,
Vou de súcia com a malta,
Na leva para o degredo!
Que importa morrer de todo
Nos ermos de água sem fim?
Eu já morri de algum modo:
Sou a lembrança de mim!
Saudades, brumas, acenam ...
Eu, no escuro, a murmurar:
«- Os crimes dos que condenam
Nem o inferno os quer julgar!»
Çala a tua alta Epopeia,
O povo de Pedro Sem!
Maré cheia, maré cheia,
Já se não salva ninguém!
Extraído de Antologia de Poemas Portugueses Modernos por António Pessoa e António Botto, Ática Poesia
Mário Pires Gomes Beirão (n. em Beja a 1 Mai 1890; m. em Lisboa a 19 Fev. 1965)
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Cintra
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