Na efeméride do nascimento do poeta há precisamente 100 anos, aqui se divulga mais um poema de António Gedeão:
Somos confusos como as florestas.
Tu, e eu (e todos nós),
temos enredos na voz,
armaduras e espessuras
que nos enconbrem de nós.
Anda.
Percorre-me sem desvios,
inteira, plena despida,
infância desprevenida
sem roupas nem atavios.
Anda.
Rasga esta verde espessura
com teus gestos afiados.
Insinua-te, procura,
derrama a tua brancura
nos trilhos enviesados.
Progride e canta. Penetra
neste matagal bravio,
desembrulhada e erecta
como a vela dum navio.
Singra, desliza suave
como gota que escorresses,
como luar que batesses,
penugem que esvoaçasses.
Entra e serve-te. Verás
ou caídos ou suspensos,
frutos de aromas intensos
que em silêncio morderás.
Teus dentes lhes darão sumo,
teus lábios lhe darão gosto
e o veludo que presumo
macio como o teu rosto.
Tuas mãos os farão belos
e alegres como facetas,
verdes, azuis, amarelos,
vermelhos e violetas.
De um arrepio, na espessura,
toda a floresta estremece.
Eu dou-te a minha loucura.
Dá-me o canto que a adormece.
in Poesia Completa de António Gedeão
Edições João Sá da Costa, Lda.
António Gedeão (Rómulo Vasco da Gama de Carvalho) (n. na Sé em LIsboa, a 24 Nov 1906; m. 19 Fev 1997).
Ler do mesmo autor, neste blog:
Minha aldeia
Poema da auto-estrada
Rosa branca ao peito
Pedra filosofal
Lágrima de preta
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