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2017-11-29

For Jessica, My Daughter - Mark Strand



Tonight I walked,
lost in my own meditation,
and was afraid,
not of the labyrinth
that I have made of love and self
but of the dark and faraway.
I walked, hearing the wind in the trees,
feeling the cold against my skin,
but what I dwelled on
were the stars blazing
in the immense arc of sky.

Jessica, it is so much easier
to think of our lives,
as we move under the brief luster of leaves,
loving what we have,
than to think of how it is
such small beings as we
travel in the dark
with no visible way
or end in sight.

Yet there were times I remember
under the same sky
when the body's bones became light
and the wound of the skull
opened to receive
the cold rays of the cosmos,
and were, for an instant,
themselves the cosmos,
there were times when I could believe
we were the children of stars
and our words were made of the same
dust that flames in space,
times when I could feel in the lightness of breath
the weight of a whole day
come to rest.

But tonight
it is different.
Afraid of the dark
in which we drift or vanish altogether,
I imagine a light
that would not let us stray too far apart,
a secret moon or mirror,
a sheet of paper,
something you could carry
in the dark
when I am away.

Mark Strand (Summerside, Canadá, april 11, 1934 — november 29, 2014)

2017-11-28

Momento Lírico - Campos de Figueiredo



Dá-me as tuas mãos, e vamos
Calados pela estrada
Sob a benção dos ramos
E as flores da madrugada.

Onde houver uma fonte,
Paremos a beber
As águas de outra fonte
Ainda por nascer.

Onde houver um jardim,
Entremos, de mãos juntas,
Mas às rosas e aos lírios,
Não façamos perguntas.

Ouçamos os perfumes,
No zumbir das abelhas,
E colhamos apenas
Duas rosas vermelhas.

E guardemos as rosas,
Só para desfolhar
Nas mãos da madrugada
Que o céu poisa no mar.


Mini-Antologia, 1965

José de Figueiredo Júnior de nome literário José Campos de Figueiredo nasceu em Cernache, 6 de maio de 1899; faleceu em Coimbra a 28 de novembro de 1965)

2017-11-27

O Noivado do Sepulcro - Soares de Passos

Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.

Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida,
"E que na tumba não cessei d'amar,
"Por que atraiçoas, desleal, mentida,
"O amor eterno que te ouvi jurar?

"Amor! engano que na campa finda,
"Que a morte despe da ilusão falaz:
"Quem d'entre os vivos se lembrara ainda
"Do pobre morto que na terra jaz?

"Abandonado neste chão repousa
"Há já três dias, e não vens aqui...
"Ai, quão pesada me tem sido a lousa
"Sobre este peito que bateu por ti!

"Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.

"Talvez que rindo dos protestos nossos,
"Gozes com outro d'infernal prazer;
"E o olvido cobrirá meus ossos
"Na fria terra sem vingança ter!

– "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda
Responde um eco suspirando além...
– "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela c'roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

"Não, não perdeste meu amor jurado:
"Vês este peito? reina a morte aqui...
"É já sem forças, ai de mim, gelado,
"Mas inda pulsa com amor por ti.

"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
"Da sepultura, sucumbindo à dor:
"Deixei a vida... que importava o mundo,
"O mundo em trevas sem a luz do amor?

"Saudosa ao longe vês no céu a lua?
– "Oh vejo sim... recordação fatal!
– "Foi à luz dela que jurei ser tua
"Durante a vida, e na mansão final.

"Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
"Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
"Quero o repouso de teu frio leito,
"Quero-te unido para sempre a mim!"

E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrada, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.


António Augusto Soares de Passos (Porto, 27 de novembro de 1826 – Porto, 8 de fevereiro de 1860)

2017-11-23

Saudades - Francisco Manuel de Melo


Serei eu alguma hora tão ditoso,
Que os cabelos, que amor laços fazia,
Por prémio de o esperar, veja algum dia
Soltos ao brando vento buliçoso?

Verei os olhos, donde o sol formoso
As portas da manhã mais cedo abria,
Mas, em chegando a vê-los, se partia
Ou cego, ou lisonjeiro, ou temeroso?

Verei a limpa testa, a quem a Aurora
Graça sempre pediu? E os brancos dentes,
por quem trocara as pérolas que chora?

Mas que espero de ver dias contentes,
Se para se pagar de gosto uma hora,
Não bastam mil idades diferentes?

In Poemas de Amor, Antologia de poesia portuguesa, Org. de Inês Pedrosa
Lisboa, Dom Quixote, 2001

D. FRANCISCO MANUEL DE MELO nasceu em Lisboa a 23 de novembro de 1608 e morreu em Alcântara, Lisboa a 13 de outubro de 1666

2017-11-22

Morte Sucessiva - Mauro Mota


Não tenhas medo.
Tudo já aconteceu. Agora
será menos do que a cena final.
Apenas o cair das cortinas,
os dedos fechando as pálpebras antepostas
à derradeira paisagem
longe, cada vez mais longe, diluída quase na incolor distância.
Sentes na boca
o sangue dos princípios e esse gosto
de fim nunca sentido antes.
Não tenhas medo,
tudo já aconteceu. Agora
será somente a conclusão.
Esquece as gravuras do catecismo da infância
nos claros domingos de sinos paroquiais.
O diabo de espeto furando os olhos dos pecadores,
e eles caindo nas caldeiras infernais.
Partiste suave
que nem sentiste quase, mais suave
ainda será daqui a pouco.
Não tenhas medo da viagem sem volta e sem saber para onde
pois várias vezes já habitas lá.
Talvez tenhas perdido a memória
da casa de alpendres da cidadezinha,
o menino debaixo dos cajueiros.
Foi ele quem te deu a primeira
noção de saída do mundo, o primeiro
conhecimento da morte sucessiva e múltipla.
O piano do sobrado de azulejo
e a moça tocando a valsa do mês de maio,
a mãe, a mulher, as rosas
na jarra azul abrindo,
os ponteiros
como uma pinça
extraindo
as horas felizes do relógio da sala,
não se foram sós, foram levando a tua vida fugitiva.
Não tenhas medo
do instante derradeiro,
e que de ti encontrará bem pouco,
criatura dispersa tantas vezes
e tantas vezes morta.
Perdeste a integridade primitiva,
sombra do corpo ausente e do espírito distante,
não tenhas medo,
tudo já aconteceu.

Mauro Ramos da Mota e Albuquerque (nasceu em 16 de agosto de 1911 em Nazaré da Mata, Pernambuco, Brasil; m. Recife, em 22 de novembro de 1984)

2017-11-21

Crepuscular - Raul de Leoni



Poente no meu jardim... O olhar profundo
Alongo sobre as árvores vazias,
Essas em cujo espírito infecundo
Soluçam silenciosas agonias.

Assim estéreis, mansas e sombrias,
Sugerem à emoção em que as circundo
Todas as dolorosas utopias
De todos os filósofos do mundo.

Sugerem... Seus destinos são vizinhos:
Ambas, não dando frutos, abrem ninhos
Ao viandante exânime que as olhe.

Ninhos, onde vencida de fadiga,
A alma ingênua dos pássaros se abriga
E a tristeza dos homens se recolhe...

RAUL DE LEÔNI Ramos nasceu a 30 de outubro de 1895 em Petrópolis (RJ) e faleceu a 21 de novembro de 1926 em Itaipava (RJ).

2017-11-20

Aqui onde me trouxe o duro fado - Abade de Jazente


Aqui onde me trouxe o duro fado
A passar o melhor da minha idade,
Não tenho mais que a bruta sociedade
De algum tosco vilão que tange o gado.

Tudo o mais é deserto inabitado,
Despenhos, precipícios, soledade,
Que só pode oferecer comodidade
Para algum infeliz desesperado.

Aqui sobre uma penha esmorecido
Fico um dia talvez, e em tal segredo,
Que até nem de mim mesmo sou sentido.

E, então, estupefactos mudo, e quedo
Assi’estou de males aturdido;
Qual junto de um penedo, outro penedo.

in Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI; Selecção, organização, introdução e notas Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Porto Editora

Abade de Jazente (Paulino António Cabral de Vasconcelos), nasceu em Reguengo, Amarante a 6 de Maio de 1719 e morreu em Amarante a 20 de Novembro de 1789.

2017-11-17

Para Ser Lido Mais Tarde - Mário Dionísio

Auto-retrato de Mário Dionísio 1945



Um dia
quando já não vieres dizer-me Vem
jantar.

quando já não tiveres dificuldade
em chegar ao puxador
da porta quando

já não vieres dizer-me Pai
vem ver os meus deveres

quando esta luz que trazes nos cabelos
já não escorrer nos papéis em que trabalho

para ti será o começo de tudo

Uma outra vida haverá talvez para os teus sonhos
um outro mundo acolherá talvez enfim a tua oferenda

Hás-de ter alguma impaciência enquanto falo
Ouvirás com encanto alguém que não conheço
nem talvez ainda exista neste instante

Mas para mim será já tão frio e já tão tarde

E nem mesmo uma lembrança amarga
ou doce ficará
desta hora redonda
em que ninguém repara


1953
in O Silêncio Voluntário, 1966

Extraído de Poemas Portugueses - Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, Selecção, organização, introdução e notas Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Porto Editora

Mário Dionísio (Lisboa, 16 de julho de 1916 - Lisboa, 17 de novembro de 1993)

2017-11-16

Cinco Sentidos - Alberto de Oliveira


Cinco sentidos são os cinco dedos
Com que o homem tacteia a escuridão,
Rodeado de sombras e segredos
De que busca, e não acha, a solução.

Mas decerto haverá mundos mais ledos
Onde outros seres, de maior visão,
Rompendo brumas, dissipando medos,
A treva finalmente vencerão.

E sendo sete as cores, e outros tantos
Os sons da escala, mas com mil matizes
Que prolongam seu eco e seus encantos,

Talvez nos seja um dia transmitido,
Por esses mundos fortes e felizes,
Um novo sexto e sétimo sentido!

Alberto de Oliveira (nasceu no Porto a 16 de novembro de 1873 e faleceu a 23 de abril de 1940, em S. Mamede de Infesta)

2017-11-15

Distribuição da Poesia - Jorge de Lima


Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Escutai, meus irmãos: poesia tirei de tudo
para oferecer ao Senhor.
Não tirei ouro da terra
nem sangue de meus irmãos.
Estalajadeiros e banqueiros
Sei fabricar distâncias
para vos recuar.
A vida está malograda,
creio nas mágicas de Deus.
Os galos não cantam,
a manhã não raiou.
Vi os navios irem e voltarem.
Vi os infelizes irem e voltarem.
Vi homens obesos dentro do fogo.
Vi ziguezagues na escuridão.
Capitão-mor, onde é o Congo?
Onde é a ilha de São Brandão?
Capitão-mor, que noite escura!
Uivam molossos na escuridão.
Ó indesejáveis, qual o país,
qual o país que desejais?
Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Só tenho poesia para vos dar.
Abancai-vos, meus irmãos.

in Poesia Brasileira do Século XX Dos Modernistas à Actualidade, selecção, introdução e notas de Jorge Henrique Bastos, Edições Antigona

Jorge Matheus de Lima (n. em União de Palmares, Alagoas a 23 de abril de 1893, m. no Rio de Janeiro a 15 de novembro de 1953)

2017-11-14

Incompreensível - Alberto Bramão



Não compreendo este martírio obscuro
Que nos liga a um tempo e nos separa;
Comigo então dá-se uma coisa rara:
Quero fugir-te e sempre te procuro.

Impulso misterioso, indecifrável,
Impele para ti meu pensamento...
E, apesar de saber que és um tormento,
Quero sentir-te e acho-te adorável!

Tenho momentos tais que, com certeza,
Se te visse a meus pés sofrendo, ria...
Mas outros há que até nem quereria
Ver-te no olhar as sombras da tristeza

Umas vezes converso a sós comigo
E abençoo-te pálido e tremente...
Outras vezes talvez mais consciente,
Odeio-te vê lá - não te bendigo!

Não sei se és boa ou má, e não conheço
Donde nasceu este profundo anseio...
Newm sei mesmo se te amo ou se te odeio...
Só sei que de te ver nunca me esqueço.

Se és má e só desditas me desejas,
Que eu mais não veja a tua luz maldita!
Mas se sofres e és boa... Deus permita
Que sejas bem feliz, que sempre o sejas!

in Phantasias, Lisboa, Antiga Casa Bertrand - José Bastos, 1895
(ortografia adaptada para o português atual)

Alberto Allen Pereira de Sequeira Bramão (n. Almada, novembro de 1865; m. Lisboa, em 14 de novembro de 1944).

2017-11-13

Love - What Is Love? - Robert Louis Stevenson



LOVE - what is love? A great and aching heart;
Wrung hands; and silence; and a long despair.
Life - what is life? Upon a moorland bare
To see love coming and see love depart.

Robert Louis Stevenson was born in Edinburgh, Scotland, on Nov. 13, 1850; d. Dec. 3, 1894, Apia, Samoa)

2017-11-11

Tornou-me o pôr-do-sol um nobre entre os rapazes - Sosígenes Costa



Queima sândalo e incenso o poente amarelo
perfumando a vereda, encantando o caminho.
Anda a tristeza ao longe a tocar violoncelo.
A saudade no ocaso é uma rosa de espinho.

Tudo é doce e esplendente e mais triste e mais belo
e tem ares de sonho e cercou-se de arminho.
Encanto! E eis que já sou o dono de um castelo
de coral com portões de pedra cor de vinho.

Entre os tanques dos reis, o meu tanque é profundo.
Entre os ases da flora, os meus lírios lilases.
Meus pavões cor-de-rosa, os únicos do mundo.

E assim sou castelão e a vida fez-se oásis
pelo simples poder, ó pôr-do-sol fecundo,
pelo simples poder das sugestões que trazes.

Sosígenes Costa (n. em Belmonte BA, 11 de novembro de 1901 - m. no Rio de Janeiro RJ, em 5 de novembro de 1968).

2017-11-10

O louro chá no bule fumegando - Correia Garção



O louro chá no bule fumegando
De Mandarins e Brâmanes cercado;
Brilhante açúcar em torrões cortado;
O leite na caneca branquejando;

Vermelhas brasas alvo pão tostando;
Ruiva manteiga em prato mui lavado;
O gado feminino rebanhado,
E o pisco Ganimedes apalpando:

A ponto a mesa está de enxaropar-nos.
Só falta que tu queiras, meu Sarmento,
Com teus discretos ditos alegrar-nos.

Se vens, ou caia chuva, ou brame o vento,
Não pode a longa noite enfastiar-nos,
Antes tudo será contentamento.


in Poemas Portugueses, Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, selecção, organização, introdução e notas de Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Prefácio de Vasco da Graça Moura, Porto Editora

Pedro António Correia Garção (Lisboa, 13 de junho 1724 — Lisboa, 10 de novembro 1772)

2017-11-09

Impressão... - Pereira da Silva



Era tal meu desgosto nesse dia
Que o próprio coração desfalecia...
E então vi vindo a Morte a passo lento,
Vago, sutil, quase sem movimento.

Era uma virgem de cabelo louro
E manto azul, cheio de estrelas de ouro
E claridade fria e compungente
Como a luz do crepúsculo do Poente.

Vi-a chegar de olhar alheio a tudo,
Mas imóvel no meu, lívido e mudo.

E ou porque se enganasse no lugar
Ou me quisesse apenas avisar
Que a Vida é como um gozo de entremez,
Sorriu-se do meu susto e se desfez...

Pereira da Silva (Antônio Joaquim P. da S.), jornalista e poeta, nasceu em Araruna, Serra da Borborema, PB, em 9 de novembro de 1876, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 11 de janeiro de 1944.

2017-11-08

Elegia do Amor - Teixeira de Pascoaes

Lembras-te, meu amor,
Das tardes outonais,
Em que íamos os dois,
Sozinhos, passear,
Para fora do povo
Alegre e dos casais,
Onde só Deus pudesse
Ouvir-nos conversar?
Tu levavas, na mão,
Um lírio enamorado,
E davas-me o teu braço;
E eu, triste, meditava
Na vida, em Deus, em ti…
E, além, o sol doirado
Morria, conhecendo
A noite que deixava.
Harmonias astrais
Beijavam teus ouvidos;
Um crepúsculo terno
E doce diluía,
Na sombra, o teu perfil
E os montes doloridos…
Erravam, pelo Azul,
Canções do fim do dia.
Canções que, de tão longe,
O vento vagabundo
Trazia, na memória…
Assim o que partiu
Em frágil caravela,
E andou por todo o mundo,
Traz, no seu coração,
A imagem do que viu.

Olhavas para mim,
Às vezes, distraída,
Como quem olha o mar,
À tarde, dos rochedos…
E eu ficava a sonhar,
Qual névoa adormecida,
Quando o vento também
Dorme nos arvoredos.
Olhavas para mim…
Meu corpo rude e bruto
Vibrava, como a onda
A alar-se em nevoeiro.
Olhavas, descuidada
E triste… Ainda hoje escuto
A música ideal
Do teu olhar primeiro!
Ouço bem tua voz,
Vejo melhor teu rosto
No silêncio sem fim,
Na escuridão completa!
Ouço-te em minha dor.
Ouço-te em meu desgosto
E na minha esperança
Eterna de poeta!
O sol morria, ao longe;
E a sombra da tristeza
Velava, com amor,
Nossas doridas frontes.
Hora em que a flor medita
E a pedra chora e reza,
E desmaiam de mágoa
As cristalinas fontes.
Hora santa e perfeita,
Em que íamos, sozinhos,
Felizes, através
Da aldeia muda e calma,

Mãos dadas, a sonhar,
Ao longo dos caminhos…
Tudo, em volta de nós,
Tinha um aspecto de alma.
Tudo era sentimento,
Amor e piedade.
A folha que tombava
Era alma que subia…
E, sob os nossos pés,
A terra era saudade,
A pedra comoção
E o pó melancolia.
Falavas duma estrela
E deste bosque em flor;
Dos ceguinhos sem pão,
Dos pobres sem um manto.
Em cada tua palavra,
Havia etérea dor;
Por isso, a tua voz
Me impressionava tanto!
E punha-me a cismar
Que eras tão boa e pura,
Que, muito em breve — sim!
Te chamaria o céu!
E soluçava, ao ver-te
Alguma sombra escura,
Na fronte, que o luar
Cobria, como um véu.
A tua palidez
Que medo me causava!
Teu corpo era tão fino
E leve (oh meu desgosto!)
Que eu tremia, ao sentir
O vento que passava!
Caía-me, na alma,
A neve do teu rosto.

Como eu ficava mudo
E triste, sobre a terra!
E uma vez, quando a noite
amortalhava a aldeia,
Tu gritaste, de susto,
Olhando para a serra:
— Que incêndio! — E eu, a rir,
Disse-te — É a lua cheia!…
E sorriste também
Do teu engano. A lua
Ergueu a branca fronte,
Acima dos pinhais,
Tão ébria de esplendor,
Tão casta e irmã da tua,
Que eu beijei sem querer,
Seus raios virginais.
E a lua, para nós,
Os braços estendeu.
Uniu-nos num abraço,
Espiritual, profundo,
E levou-nos assim,
Com ela, até ao céu
Mas, ai, tu não voltaste
E eu regressei ao mundo.

in Prosa e Poesia

Teixeira de Pascoaes ou seja Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, nasceu em 8 de novembro de 1877(*) em Amarante; m. em Amarante a 14 de dezembro de 1952).

(*) Conforme assento oficial de nascimento; de algumas fontes biográficas consta a data de 2 de novembro

2017-11-07

Eu sonhei que ia provando ...- Fernando Caldeira

Camélia daqui

Eu sonhei que ia provando
pela tua boca mel, ia
a beijar uma camélia
e ao mesmo tempo sonhando

Era a que tinhas no meio
do decote do vestido...
Se eu te não amasse, ah! creio
não a tinha talvez tido

Ingrata! a ver-me sem fala
ansioso e tu bem sabias...
ias contudo esfolhá-la
ali mesmo. Quem sabe? ias!

Depois, da mão descuidosa
lendo em minh'alma se leste
entre um sorriso celeste
deixaste cair a rosa

Caiu-te aos pés... N'um momento
era minha. Oh! faze ideia
quiz lhe dar a vida e dei-a
n'um longo beijo sedento

Mas trás um feltro consigo!
Trouxe-o talvez do teu seio!
Faz sonhar, mas não consigo
sonhar, que sonhas; eu sei-o

que, se o meu sonho só mente
não mente a flor, que em teu peito
murchava achando sómente
a neve de que ele é feito



Fernando Afonso Geraldes Caldeira (n. em Águeda a 7 de novembro de 1841; m. em Lisboa a 2 de abril 1894).

2017-11-06

Para Atravessar Contigo o Deserto do Mundo - Sophia de Mello Breyner Andresen




Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

in Livro Sexto, 1962

Sophia de Mello Breyner Andresen (nasceu no Porto a 6 de novembro de 1919; m. Lisboa, 2 de julho de 2004)

2017-11-03

NÃO ME DEIXES - Gonçalves Dias

Purple flower riverFlores perto dum regato

Debruçada nas águas dum regato, A flor dizia em vão À corrente, onde bela se mirava… "Ai, não me deixes, não!" "Comigo fica, ou leva-me contigo Dos mares à amplidão: Límpido ou turvo, te amarei constante; Mas não me deixes, não!" E a corrente passava; novas águas Após as outra vão; E a flor sempre a dizer, curva na fonte: "Ai, não me deixes, não!" E das águas que fogem incessantes À eterna sucessão, Dizia sempre a flor, e sempre embalde: "Ai, não me deixes, não!" Por fim desfalecida e a cor murchada, Quase a lamber o chão, Buscava inda a corrente por dizer-lhe Que a não deixasse, não. A corrente impiedosa a flor enleia, Leva-a do seu torrão; A afundar-se dizia a pobrezinha: "Não me deixaste, não!"


in Cinco Séculos de Poesia, Antologia da Poesia Clássica Brasileira; Selecção e Introdução de Frederico Barbosa, Landy Editores.

Antônio Gonçalves Dias (nasceu no dia 10 de agosto de 1823, nos arredores de Caxias, no Maranhão. Faleceu ao regressar de uma viagem à Europa, no naufrágio do "Ville de Boulogne", já próximo do Maranhão, a 3 de novembro de 1864).

2017-11-02

Como Queiras, Amor... - Jorge de Sena


Como queiras, Amor, como tu queiras.
Entregue a ti, a tudo me abandono,
seguro e certo, num terror tranquilo.
A tudo quanto espero e quanto temo,
entregue a ti, Amor, eu me dedico.

Nada há que eu não conheça, que eu não saiba,
e nada, não, ainda há por que eu não espere
como de quem ser vida é ter destino.

As pequeninas coisas da maldade, a fria
tão tenebrosa divisão do medo
em que os homens se mordem com rosnidos
de malcontente crueldade imunda,
eu sei quanto me aguarda, me deseja,
e sei até quanto ela a mim me atrai.

Como queiras, Amor, como tu queiras.
De frágil que és, não poderás salvar-me.
Tua nobreza, essa ternura tépida
quais olhos marejados, carne entreaberta,
será só escárneo, ou, pior, um vão sorriso
em lábios que se fecham como olhares de raiva.
Não poderás salvar-me, nem salvar-te.
Apenas como queiras ficaremos vivos.

Será mais duro que morrer, talvez.
Entregue a ti, porém, eu me dedico
àquele amor por qual fui homem, posse
e uma tão extrema sujeição de tudo.

Como tu queiras, meu Amor, como tu queiras.

Jorge Cândido de Sena (n. em Lisboa a 2 de novembro de 1919; m. em Santa Bárbara, Califórnia, Estados Unidos da América, a 4 de junho de 1978)