Amor, morte, poesia, política, actualidade, futebol, efemérides, solidão, paz, humor, musica...tudo e nada; Here we talk about life, love, death,
On this day in History, poetry, politics, football (soccer), solitude, peace, humour, music ... nothing and all.
Páginas
2017-06-30
Que de nós dois - Reinaldo Ferreira
Que de nós dois
O mais sensato sou eu,
- É uma forma delicada
De dizeres que sou mais velho.
Ora é verdade
Ser eu quem tem mais idade.
Mas daí a ter juízo
Vai um abismo tão grande
Que é preciso,
Com certeza,
Que o digas com ironia
E nenhuma simpatia
Pelo engano em que vivo.
O engano de ter rugas
E nunca fitar um espelho...
Vê lá tu que eu não sabia
Que sou dos dois o mais velho.
Reinaldo Edgar de Azevedo e Silva Ferreira (n. em Barcelona, a 20 de março de 1922; m. em Moçambique a 30 de junho de 1959).
2017-06-29
ATARDECER - Dionisio Ridruejo
Regreso al corazón cuando estoy solo
y está la luz morada sobre el campo y el sueño.
Regreso al corazón. ¿Por qué, en la tarde,
esta alegría indócil de porvenir tan fresco?
Languidecen las cosas,
los montes van al cielo,
la serranía es toda
niebla, congoja y miedo,
y el corazón se obstina desvelado
en su mañana de radiante fuego
mientras es la memoria retirada
como un lecho de rosas en misterio.
Dionisio Ridruejo Jiménez (Burgo de Osma, Soria, 12 de outubro de 1912 - Madrid, 29 de junho de 1975)
2017-06-28
PRECISA-SE - Arita Damasceno Pettená
Precisa-se de uma senhora
Sem hora…
Sem… ora – digamos…
Plena de vida,
Cheia de vida,
Para ocupar
Um espaço a dois.
Paga-se bem!
- Bem pra lá…
Bem pra cá.
E que ame tão bem.
E seja também tão amada!
Que um dia,
Ainda que longe,
Possamos dizer
Cheios de saudade:
Nunca estivemos sós!
Precisa-se de uma senhora
Sem hora…
Sem… ora – digamos…
Plena de vida
Para encher de vida
Alguém sedento de amor!
Arita Damasceno Pettená nasceu em Florianópolis, Santa Catarina, em 28 de junho de 1932
2017-06-27
A Queda - Bruno Tolentino
fuga no mato, jogo de menino,
pousei a mão no fogo feminino
e acabou-se de vez todo brinquedo,
tudo virou fogueira. Tive medo.
Tive a visão que ofusca o peregrino,
tive a rosa no alvor do seu segredo
e um terror indiscreto e repentino
como o dobre do Ângelus no ar.
Mas um anjo caído é um moribundo,
mal se convence que caiu, vai dar
no ponto mais estranho deste mundo,
no avesso do jardim perdido: ao fundo
o roseiral que arde sem queimar.
Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino (nasceu no Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1940 — m. em São Paulo, 27 de junho de 2007)
2017-06-26
Recordações - Francisco Otaviano
Oh! se te amei! Toda a manhã da vida
Gastei-a em sonhos que de ti falavam!
Nas estrelas do céu via teu rosto,
Ouvia-te nas brisas que passavam:
Oh! se te amei! Do fundo de minh’alma
Imenso, eterno amor te consagrei...
Era um viver em cisma de futuro!
Mulher! oh! se te amei!
Quando um sorriso os lábios te roçava,
Meu Deus! que entusiasmo que sentia!
Láurea coroa de virente rama
Inglório bardo, a fronte me cingia;
À estrela alva, às nuvens do Ocidente,
Em meiga voz teu nome confiei.
Estrela e nuvens bem no seio o guardam;
Mulher! oh! se te amei!
Oh! se te amei! As lágrimas vertidas,
Alta noite por ti; atroz tortura
Do desespero d’alma, e além, no tempo,
Uma vida sumir-se na loucura...
Nem aragem, nem sol, nem céu, nem flores,
Nem a sombra das glórias que sonhei...
Tudo desfez-se em sonhos e quimeras...
Mulher! oh! se te amei!
Francisco Otaviano de Almeida Rosa (n. no Rio de Janeiro a 26 de junho de 1825; m. no Rio de Janeiro a 28 de junho de 1889)
2017-06-23
Soneto [Antes de conhecer-te, eu já te amava] - Martins Fontes
Antes de conhecer-te, eu já te amava.
Porque sempre te amei a vida inteira:
Eras a irmã, a noiva, a companheira,
A alma gêmea da minha que eu sonhava.
Com o coração, à noite, ardendo em lava
Em meus versos vivias, de maneira
Que te contemplo a imagem verdadeira
E acho a mesma que outrora contemplava.
Amo-te. Sabes que me tens cativo.
Retribuis a afeição que em mim fulgura,
Transfigurada nos anseios da Arte.
Mas, se te quero assim, por que motivo
Tardaste tanto em vir, que hoje é loucura,
Mais que loucura, um crime desejar-te?
José Martins Fontes nasceu em Santos (SP) a 23 de junho de 1884 e morreu a 25 de junho de 1937.
2017-06-22
FLORES NO QUARTO - Paulino de Oliveira
Tenho a cabeça, enfebrecida, a arder.
O sono hoje não desce, a apaziguar-me.
Pelo silêncio, a espaços, dando alarme,
Anda um confuso som, de entontecer.
Procuro companhia com que esqueça
Esta vida de só, de abandonado.
Sonho um corpo florido, crepitante,
De carne moça e viva de bacante,
Sem túnica, num sonho depravado...
Penso que me abre a porta, lentamente,
Impondo-me, em silêncio, amplos assombros,
E que, nervosa, se dirige ao leito
- Como um ramo gentil todo desfeito
Os seus cabelos soltos pelos ombros.
E chega todo trémulo, radioso,
Numa graça aromática e ligeira.
Toda a alcôva estremeça e se perfuma
De olôr que embriaga... e me envenena em suma
Como um bouquet bizarro à travesseira.
Mas tarda... Oh sonhos vãos!... Porém, teimando,
O sonho não me larga, a enfebrecer;
O corpo que eu criei e me apetece
Grita no escuro, o aroma me enlouquece
Vermelho ramalhete, ao fundo a arder...
Francisco Paulino Gomes de Oliveira, nasceu em Setúbal a 22 de junho de 1864, faleceu em 13 de março de 1914*, em São Paulo, no Brasil).
Raramente se encontra divulgada a data de falecimento do poeta. A de 13 de março de 1914 é referida neste estudo feito mais a propósito da sua mulher Ana de Castro Osório
2017-06-21
Relíquia Íntima - Machado de Assis
Saberás que, por um motivo urgente,
Na quinta-feira, nove do corrente,
Preciso muito de falar contigo.
E aproveitando o portador te digo,
Que nessa ocasião terás presente,
A esperada gravura de patente
Em que o Dante regressa do Inimigo.
Manda-me pois dizer pelo bombeiro
Se às três e meia te acharás postado
Junto à porta do Garnier livreiro:
Senão, escolhe outro lugar azado;
Mas dá logo a resposta ao mensageiro,
E continua a crer no teu Machado.
Joaquim Maria MACHADO DE ASSIS (nasceu no Rio de Janeiro a 21 de junho de 1839 e aí faleceu a 29 de Setembro de 1908)
2017-06-20
Sonho Desfeito - António Feijó (na passagem do centenário do seu desaparecimento
A Alfredo Guimarães
Quando o Sonho, batendo as asas doidamente,
Voa como falena errante, no infinito,
Cuido que ao pé de mim, voluptuosamente,
Cravas no meu olhar o teu olhar bendito.
E no delírio em que eu nervosamente fito
A curva do teu seio elástico e tremente,
Atrevo-me a poisar, nostálgico proscrito,
Meus lábios sem pudor sobre o teu colo ardente.
Mas como o vento espalha as húmidas neblinas,
Diluídas no vapor das névoas matutinas
A quimera, a ilusão de estranho visionário,
Vejo que o teu sorriso, ó casta Margarida!
Apenas me envolveu, luar da minha vida,
No tépido clarão dum beijo imaginário! …
In Poesias Completas – Caixotim Edições
António Feijó (n. 1 de junho de 1859 em Ponte de Lima, m. 20 de junho 1917, em Upsala, Suécia)
2017-06-19
Idílio - IV - Roberto de Mesquita
Eu fitava no céu pupilas sonhadoras.
No profundo silêncio um clamoroso sino
Com solene vagar bateu então dez horas.
Depois de acompanhar-te ao ninho onde tu moras,
Erguido num jardim virente e pequenino,
Fiquei a relembrar o teu corpo airoso e fino
E esses olhos de moura, escuros como amoras.
Por longo tempo ainda eu divaguei absorto
Entre prédios sem luz, dum ar soturno e morto,
Ouvindo ao longe o mar num salmo sonolento.
E ao mórbido luar, que ao sono nos impulsa,
A minh’alma bebia essa saudade avulsa
Que dimana da noite assim como o relento…
Augusto de Mesquita Henriques (n. em Santa Cruz das Flores, Ilha das Flores, Açores a 19 de junho de 1871; m. em Santa Cruz das Flores em 31 de dezembro de 1923)
2017-06-16
Noturno - Ariano Suassuna (lembrando o autor no dia em que celebraria o 90º aniversário)
as Noites perigosas e queimadas,
quando a Lua aparece mais vermelha
São turvos sonhos, Mágoas proibidas,
são Ouropéis antigos e fantasmas
que, nesse Mundo vivo e mais ardente
consumam tudo o que desejo Aqui.
Será que mais Alguém vê e escuta?
Sinto o roçar das asas Amarelas
e escuto essas Canções encantatórias
que tento, em vão, de mim desapossar.
Diluídos na velha Luz da lua,
a Quem dirigem seus terríveis cantos?
Pressinto um murmuroso esvoejar:
passaram-me por cima da cabeça
e, como um Halo escuso, te envolveram.
Eis-te no fogo, como um Fruto ardente,
a ventania me agitando em torno
esse cheiro que sai de teus cabelos.
Que vale a natureza sem teus Olhos,
ó Aquela por quem meu Sangue pulsa?
Da terra sai um cheiro bom de vida
e nossos pés a Ela estão ligados.
Deixa que teu cabelo, solto ao vento,
abrase fundamente as minhas mão...
Mas, não: a luz Escura inda te envolve,
o vento encrespa as Águas dos dois rios
e continua a ronda, o Som do fogo.
Ó meu amor, por que te ligo à Morte?
Ariano Vilar Suassuna (João Pessoa, Paraíba, 16 de junho de 1927 — Recife, Pernambuco, 23 de julho de 2014
2017-06-14
Catorze de Junho - José Saramago
Devagar, devagar, as roupas caiam
Como de si mesmos se despiam deuses,
E nós o somos, por tão humanos sermos.
É quanto nos foi dado: nada.
Não digamos palavras, suspiremos apenas
Porque o tempo nos olha.
Alguém terá criado antes de ti o sol,
E a lua, e o cometa, o negro espaço,
As estrelas infinitas.
Se juntos, que faremos? O mundo seja,
Como um barco no mar, ou pão na mesa,
Ou rumoroso leito.
Não se afastou o tempo. Assiste e quer.
É já pergunta o seu olhar agudo
À primeira palavra que dizemos:
Tudo.
Extraído de José Saramago, Poesía Completa, Aleaguara
2017-06-13
Tabacaria - Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa)
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.
Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de junho de 1888 – Lisboa, 30 de novembro de 1935)
2017-06-12
Se passa uma beleza... - Sandro Penna
não te ensombra a alma não tê-la estreitado.
Voltas o rosto para o verde ocaso.
Numa bicicleta passou a Beleza.
Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti
ORIGINAL
Se passa una bellezza che va in fretta
non hai l'anima nera, per non averla stretta.
Tu guardi al cielo verde nella prima
sera. Passata è la Bellezza in bicicletta.
de Croce e delizia (1958)
Sandro Penna (Perúgia, Itália, 12 de junho de 1906 — Roma, 21 de janeiro de 1977)
2017-06-09
Vivam Apenas - José Gomes Ferreira
Vivam, apenas
Sejam bons como o sol.
Livres como o vento.
Naturais como as fontes.
Imitem as árvores dos caminhos
que dão flores e frutos
sem complicações.
Mas não queiram convencer os cardos
e transformar os espinhos
em rosas e canções.
E principalmente não pensem na morte.
Não sofram por causa dos cadáveres
que só são belos
quando se desenham na terra em flores.
Vivam, apenas.
A morte é para os mortos!
José Gomes Ferreira (n. no Porto a 9 de junho de 1900, m. em Lisboa, 8 de fevereiro de 1985)
2017-06-08
Um Pouco Mais de Nós - José Jorge Letria
Podes dar uma centelha de lua,
um colar de pétalas breves
ou um farrapo de nuvem;
podes dar mais uma asa
a quem tem sede de voar
ou apenas o tesouro sem preço
do teu tempo em qualquer lugar;
podes dar o que és e o que sentes
sem que te perguntem
nome, sexo ou endereço;
podes dar em suma, com emoção,
tudo aquilo que, em silêncio,
te segreda o coração;
podes dar a rima sem rima
de uma música só tua
a quem sofre a miséria dos dias
na noite sem tecto de uma rua;
podes juntar o diamante da dádiva
ao húmus de uma crença forte e antiga,
sob a forma de poema ou de cantiga;
podes ser o livro, o sonho, o ponteiro
do relógio da vida sem atraso,
e sendo tudo isso serás ainda mais,
anónimo, pleno e livre,
nau sempre aparelhada para deixar o cais,
porque o que conta, vendo bem,
é dar sempre um pouco mais,
sem factura, sem fama, sem horário,
que a máxima recompensa de quem dá
é o júbilo de um gesto voluntário.
E, afinal, tudo isso quanto vale?
Vale o nada que é tudo
sempre que damos de nós
o que, sendo acto amor, ganha voz
e se torna eterno por ser único e total.
José Jorge Alves Letria (n. Cascais, 8 de junho de 1951)
2017-06-07
O BEIJA-FLOR - Tobias Barreto
Bela visão matutina
Daquelas que é raro ver,
Corpo esbelto, colo erguido,
Molhando o branco vestido
No orvalho do amanhecer.
Vede-a lá: tímida, esquiva...
Que boca! é a flor mais viva,
Que agora está no jardim;
Mordendo a polpa dos lábios
Como quem suga o ressábio
Dos beijos de um querubim!
Nem viu que as auras gemeram,
E os ramos estremeceram
Quando um pouco ali se ergueu...
Nos alvos dentes, viçosa,
Parte o talo de uma rosa,
Que docemente colheu.
E a fresca rosa orvalhada,
Que contrasta descorada,
Do seu rosto a nívea tez,
Beijando as mãozinhas suas,
Parece que diz: nós duas!...
E a brisa emenda: nós três!...
Vai nesse andar descuidoso,
Quando um beija-flor teimoso
Brincar entre os galhos vem,
Sente o aroma da donzela,
Peneira na face dela,
E quer-lhe os lábios também
Treme a virgem de surpresa,
Leva do braço em defesa,
Vai com o braço a flor da mão;
Nas asas d’ave mimosa
Quebra-se a flor melindrosa,
Que rola esparsa no chão.
Não sei o que a virgem fala,
Que abre o peito e mais trescala
Do trescalar de uma flor:
Voa em cima o passarinho...
Vai já tocando o biquinho
Nos beiços de rubra cor.
A moça, que se envergonha
De correr, meio risonha
Procura se desviar;
Neste empenho os seios ambos
Deixa ver; inconhos jambos
De algum celeste pomar!...
Forte luta, luta incrível
Por um beijo! É impossível
Dizer tudo o que se deu.
Tanta coisa, que se esquece
Na vida! Mas me parece
Que o passarinho venceu!...
Conheço a moça franzina
Que a fronte cândida inclina
Ao sopro de casto amor:
Seu rosto fica mais lindo,
Quando ela conta sorrindo
A história do beija-flor.
Tobias Barreto de Meneses (n. Vila de Campos do Rio Real,atual cidade de Tobias Barreto, Sergipe, Brasil, 7 de junho de 1839 — m. em Recife, Pernambuco, 26 de junho de 1889)
2017-06-06
A Lady - Gomes Leal
Aquela que me tem, agora, presa
Minha alma, meus sentidos, meus cuidados...
E me faz sonhar sonhos desmanchados,
É uma altiva e olímpica inglesa.
Nunca tipo ideal de mais pureza
Vi nos góticos quadros mais prezados.
Seus doces olhos castos e velados
Têm um ar, infinito, de tristeza.
Tem uns gestos de deusa que caminha
Fonte grega, e um ar grande de Rainha,
E umas mãos como as ladies de Van Dyck...
Segue-a sempre um lacaio, e tristemente,
É por ela que eu morro, lentamente...
E ponho no bigode cosmétique.
Transcrito de "Cem Sonetos Portugueses", selecção, organização e introdução de José Fanha e José Jorge Letria, Terramar.
António Duarte Gomes Leal (n. em Lisboa a 6 de junho de 1848; m. 29 de janeiro de 1921)
2017-06-02
ESTE LIVRO - Ana Cristina Cesar
Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do
coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two
total, tilintar de verdade que você seduz,
charmeur volante, pela pista, a toda. Enfie a
carapuça.
E cante.
Puro açúcar branco e blue.
in A Teus Pés
Ana Cristina Cruz Cesar (Niterói, Tio de Janeiro, 2 de junho de 1952 — Rio de Janeiro, 29 de outubro de 1983)
2017-06-01
Areias de ouro - Armando Silva Carvalho
Que estranha visão terá de ti
o rio que passa
e ao qual os poetas inutilmente oferecem
areias de ouro e de Byron?
Umas vezes oblíqua aos olhos de quem ama
a liquidez das cúpulas sonoras
onde ondulam as casas
na sua pulsação
nervosa e feminina.
Outras vezes erecta e pombalina
talhada para letras
de câmbio
velha receptora
e hoje só senhora
dum tempo fixo e mudo
indiferente à pedra.
Mas mais das vezes crespa
nas ondas ruidosas
erguidas da terra ébria
vasto espelho de bar
para novas aventuras.
E na boca do fim
à beira de um mar de quem não teve infância
só os monumentos
eventos
– ventos da distância.
in Lisboas, Quetzal Editores, 1999
Armando da Silva Carvalho (Olho Marinho, Óbidos, 28 de março de 1938 – Caldas da Rainha, 1 de junho de 2017)