Não sei se era uma esplêndida loucura.
Porém a noite escura, àquela hora,
Veio pôr-me nos olhos
Uma super-visão de Raios X.
Tudo transparente e sombrio!:
Nas caves os criados trintanários,
Sonolentos, senis, alquebrados,
Como em pêgo profundo, no fundo dum rio,
Deitados.
E em sobrados nos altos das casas
As pessoas suspensas e presas
Nas invisíveis asas.
O clarão dos escuros e silêncios
Apunhalava as coisas indefesas
E era o meu guia.
E eu via, via tudo, entretinha-me a ver,
Aplaudindo em meus olhos
A tragédia funérea de ser.
A mulher que eu amava dormia.
E lá estava perdendo a magia
Das formas,
O mistério das coisas opacas.
Ai, eu via os seus orgãos medonhos, eu via,
Comprimidos boiando em fluidos
De estranha alquimia.
As donzelas! as puras donzelas!
- Como eram iguais seus esqueletos
E gesto de guardar a virgindade
Num halo,
Fechadas nas casas, sonhando!
E aqui, ali, além, de quando em quando
As cenas abismais,
Infiltrações letais – promiscuidade!:
Em ângulos mornos de alcovas solenes,
Dormiam, jaziam casados,
Ventrudos, coitados, casais de burgueses!:
Um respirava o ar que o outro expira,
Cantado, resfolgado,
Como o vapor em máquinas cansadas
Ou moléstias em papos de reses;
E na parede, sobre a mesa de pau-santo,
O cuco do relógio veniando
Quatro vezes.
E ó ruas, ó ruas viscosas,
Dormindo venenosas, como cobras
Digerindo!
Ó casas leprosas,
Envenenando o ar amigo meu e deles!
- O ar já gás emagrecido, manso mas cansado,
Azul e quente,
Pairando sobre as camas a gemer,
Piedosamente!
Ó gente, ...................
E lá vinha, e lá vinha a elevar-se do rio,
Um calmo doentio nevoeiro grosso!
Tão velho rio!
Cantado pelos bárbaros poetas...
Tão límpido!
Mostrando-me as enguias nas buracas
E os cadáveres inchados
De afogados,
Espetados nas estacas.
E o silêncio!
Eu e uma cidade!
Apenas o rumor de traças infernais,
A roerem humanos, ocultas, danadas,
Como caruncho em madeiras
De casas abandonadas.
Eu e uma cidade...
Que a lava da noite veio sepultar
Dentro de mim...
Esta Pompeia que me entrou plos olhos,
Com suas mil estátuas e cenas do fim...
Este burgo dos ídolos partidos e painéis
Cruéis, sumidos,
Que a minha alma ansiosa anda a escavar,
E que o loiro dinheiro dos Lords
Não pode comprar.
Políbio Gomes dos Santos (n. Ansião, 7 de agosto de 1911 — m. Ansião, 3 de agosto de 1939)
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