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2011-07-08

O hospital - Gonçalo M. Tavares


imagem daqui; autor: Maria Rita

Faz bem, de quando em quando, contactares com
o sofrimento dos outros.
Aprendes assim que, para além do sol,
há outros astros. A noite, instrumentos exactos e fundos.
Um enfermeiro passa de calças brancas
transportando na maca um moribundo ou um morto.
As calças são quase transparentes e por baixo são visíveis
as cuecas do enfermeiro,
com tiras verticais. Um pormenor.
Enfermeiro simpático, que sorri para quem se encontra
sentado a ver passar o moribundo ou o morto.
E ainda mais. Uma negra segurando
o filho de 20 anos que mal consegue andar.
O velho com tiques nas sobrancelhas, a barba branca,
assimétrica, feia; e uma rapariga que atravessa
o corredor com uma saia curta e dois seios grandes
à frente. Apesar de tudo, disse um amigo
em conversa, mesmo num hospital o número de
pessoas excitadas deve ultrapassar o número de mortos.
E se isto não salva, em definitivo, a humanidade,
pelo menos ajuda-a temporariamente.
É um corredor de hospital, o que não pressupõe,
logo à partida, nada de maravilhoso,
mas a vontade dos vivos é ainda quem manda.
E tudo isto é também sinal de que não estamos em guerra,
morremos não por bombas, mas por tropeçar
desastradamente nos hábitos ou na vida;
facto que, como toda a gente
sabe, não é raro em nenhuma profissão.


Extraído de 1, Relógio D'Água, 2ª. Edição, Março de 2011.

Gonçalo M. Tavares nasceu em Angola em Agosto de 1970

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