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SPLEEN - Roberto de Mesquita

Ilha das Flores Imagem daqui

Dezembro, dia pluvioso. Vem
Deste céu de burel um spleen mortal
Onde as almas se atolam como alguém
Que caísse num vasto lodaçal.

Olho em torno de mim: as cousas mesmas
Têm um ar de desgosto sem remédio...
E as horas vão, morosas como lesmas,
Rastejando por sobre o nosso tédio.

O véu cinzento e denso que se espalha
Lá por fora, empanando as perspectivas.
Dir-se-á também que as almas amortalha
E afoga as suas vibrações mais vivas.

Almas Cativas e Poemas Dispersos
Lisboa, Edições Ática, 1973 (1ª ed.)

Roberto Augusto de Mesquita Henriques (n. Santa Cruz das Flores, 19 de Junho de 1871 — m. Santa Cruz das Flores, 31 de Dezembro de 1923)

Ler do mesmo autor neste blog:
Aves do Mar
Abandonadas
Universalidade II

On this day in History - Dec. 31

LOUCO (Hora de Delírio) - Junqueira Freire

Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre,
Aproxima-se mais à essência etérea.

Achou pequeno o cérebro que o tinha:
Suas idéias não cabiam nele;
Seu corpo é que lutou contra sua alma,
E nessa luta foi vencido aquele.

Foi uma repulsão de dois contrários;
Foi um duelo, na verdade insano:
Foi um choque de agentes poderosos:
Foi o divino a combater com o humano.

Agora está mais livre. Algum atilho
Soltou-se-lhe do nó da inteligência;
Quebrou-se o anel dessa prisão de carne,
Entrou agora em sua própria essência.

Agora é mais espírito que corpo:
Agora é mais um ente lá de cima;
É mais, é mais que um homem vão de barro:
É um anjo de Deus, que Deus anima.

Agora, sim - o espírito mais livre
Pode subir às regiões supernas:
Pode, ao descer, anunciar aos homens
As palavras de Deus, também eternas.

E vós, almas terrenas, que a matéria
Ou sufocou ou reduziu a pouco,
Não lhe entendeis, por isso, as frases santas,
E zombando o chamais, portanto: - um louco!

Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre,
aproxima-se mais à essência etérea.


Luís José Junqueira Freire (n. em Salvador, Bahia em 31 Dez 1832; m. na mesma cidade em 24 de Junho de 1855).

Ler do mesmo autor:
Sei Rir-me

2010-12-30

BRECHT - Heiner Müller

Em verdade, ele viveu em tempo de trevas
Os tempos ganharam em luz.
Os tempos ganharam em trevas.
Quando a luz diz: Eu sou as trevas,
Disse a verdade.
Quando as trevas dizem: Eu sou
A luz, não mentem


Trad. João Barrento

in Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro, Assírio Alvim

Heiner Müller (Eppendorf, 9 de janeiro de 1929 — Berlim, 30 de dezembro de 1995)

The Betrothed / A Prometida - Rudyard Kipling



"You must choose between me and your cigar."
- BREACH OF PROMISE CASE, CIRCA 1885.

Open the old cigar-box, get me a Cuba stout,
For things are running crossways, and Maggie and I are out.

We quarrelled about Havanas - we fought o'er a good cheroot,
And I knew she is exacting, and she says I am a brute.

Open the old cigar-box - let me consider a space;
In the soft blue veil of the vapour musing on Maggie's face.

Maggie is pretty to look at - Maggie's a loving lass,
But the prettiest cheeks must wrinkle, the truest of loves must pass.

There's peace in a Larranaga, there's calm in a Henry Clay;
But the best cigar in an hour is finished and thrown away -

Thrown away for another as perfect and ripe and brown -
But I could not throw away Maggie for fear o' the talk o' the town!

Maggie, my wife at fifty - grey and dour and old -
With never another Maggie to purchase for love or gold!

And the light of Days that have Been the dark of the Days that Are,
And Love's torch stinking and stale, like the butt of a dead cigar -

The butt of a dead cigar you are bound to keep in your pocket -
With never a new one to light tho' it's charred and black to the socket!

Open the old cigar-box - let me consider a while.
Here is a mild Manila - there is a wifely smile.

Which is the better portion - bondage bought with a ring,
Or a harem of dusky beauties, fifty tied in a string?

Counsellors cunning and silent - comforters true and tried,
And never a one of the fifty to sneer at a rival bride?

Thought in the early morning, solace in time of woes,
Peace in the hush of the twilight, balm ere my eyelids close,

This will the fifty give me, asking nought in return,
With only a Suttee's passion - to do their duty and burn.

This will the fifty give me. When they are spent and dead,
Five times other fifties shall be my servants instead.

The furrows of far-off Java, the isles of the Spanish Main,
When they hear my harem is empty will send me my brides again.

I will take no heed to their raiment, nor food for their mouths withal,
So long as the gulls are nesting, so long as the showers fall.

I will scent 'em with best vanilla, with tea will I temper their hides,
And the Moor and the Mormon shall envy who read of the tale of my brides.

For Maggie has written a letter to give me my choice between
The wee little whimpering Love and the great god Nick o' Teen.

And I have been servant of Love for barely a twelvemonth clear,
But I have been Priest of Cabanas a matter of seven year;

And the gloom of my bachelor days is flecked with the cheery light
Of stumps that I burned to Friendship and Pleasure and Work and Fight.

And I turn my eyes to the future that Maggie and I must prove,
But the only light on the marshes is the Will-o'-the-Wisp of Love.

Will it see me safe through my journey or leave me bogged in the mire?
Since a puff of tobacco can cloud it, shall I follow the fitful fire?

Open the old cigar-box - let me consider anew -
Old friends, and who is Maggie that I should abandon you?

A million surplus Maggies are willing to bear the yoke;
And a woman is only a woman, but a good Cigar is a Smoke.

Light me another Cuba - I hold to my first-sworn vows.
If Maggie will have no rival, I'll have no Maggie for Spouse!


Versão em Português


"Você terá que escolher entre mim e o charuto.”
CASO DE QUEBRA DE PROMESSA MATRIMONIAL, CIRCA 1885

Abram a velha charuteira, dêem-me um Cuba bem fornido;
complicaram-se as coisas, Maggie e eu nos temos desentendido.

Por causa do Havana brigamos, brigamos por um bom charuto,
e eu percebo que ela exagera, e ela então me chama de bruto.

Abram a velha charuteira; que por um instante eu sossegue,
vendo através do véu azul da fumaça o rosto de Maggie.

É bem bonita de se olhar – Maggie, uma amável jovenzinha;
mas belas faces logo murcham e até o mais puro amor definha.

Num Larranaga existe paz, num Henry Clay a calma mora;
mas o melhor charuto logo se acaba, e a gente o deita fora –

deita fora por outro, tão perfeito, e escuro, e bem curtido;
coisa que com Maggie não faço, por medo ao boato e ao alarido.

Maggie, minha esposa aos cinqüenta – grisalha, e velha, e aquele humor! –
e não poder adquirir outra nem por ouro, nem por amor!

Tornada na treva de agora a luz ardente do passado,
e como a guimba de um charuto o lume do Amor apagado –

a guimba extinta de um charuto que no bolso se há de meter,
sem que, fumado até o toco, se tenha outro para acender.

Abram a velha charuteira – deixem-me ao menos refletir.
Aqui um suave Manila, ali uma esposa a sorrir.

O que é melhor: a servidão comprada ao preço de um anel,
ou todo um harém de morenas, cinqüenta, presas a um cordel?

Hábeis e mudos conselheiros, confortadores experientes,
e nem uma só das cinqüenta para esnobar as concorrentes?

Pensamentos de manhã cedo, consolo em épocas de abrolhos,
paz no silêncio do crepúsculo, bálsamo antes que eu feche os olhos,

eis o que as cinqüenta hão de dar-me, sem nada em troca demandar,
com só esta paixão sati: cumprir seu dever e queimar.

Eis o que as cinqüenta hão de dar-me. E, quando extintas e acabadas,
cinco vezes outras cinqüenta novas servas me serão dadas.

Encostas da distante Java e ilhas hispânicas também –
hão de outra vez enviar-me noivas quando acabar o meu harém.

Não me preocupará vesti-las nem tê-las bem alimentadas,
nem quando as gaivotas aninham, nem no outono das chuvaradas.

Vou perfumá-las com baunilha, temperar com chá suas peles;
Mouro e Mórmon terão inveja ao ouvirem a história delas.

Pois Maggie escreveu numa carta que eu escolhesse meu destino
entre o pequeno Amor chorão e o grandioso deus Nico Tino.

E por menos de doze meses do Amor não fui mais que um servente,
mas Sacerdote de Cabanas fui por sete anos certamente.

Meus negros dias de solteiro são coloridos no fulgor
de troncos que queimei somente por Gozo, Amigos, Lida e Ardor.

Se me volto para o futuro que provaremos Maggie e eu,
a única luz que há sobre os pântanos é o duro Amor e o jugo seu.

Terei uma jornada livre, ou nesses pântanos me afogo?
Se o fumo de um charuto o embaça, devo seguir o incerto fogo?

Abram a velha charuteira – deixem-me pensar outra vez;
velhos amigos, quem é Maggie para que eu despreze vocês?

Um bom milhão de Maggies extras aí estão para levar o andor.
Uma mulher é uma mulher, mas um Charuto é puro Odor.

Acendam-me mais outro Cuba – que fiel aos meus votos serei.
Se Maggie não vai ter rivais, nenhuma Maggie esposarei.


(Tradução de Renato Suttana daqui)

Joseph Rudyard Kipling (Bombaim, India, 30 Dec. 1865 - London 18 Jan. 1936)

Ler do mesmo autor, neste blog: If / Se

On this day in History - Dec. 30