Um homem passa com um pão ao ombro
- Vou escrever, depois, sobre o meu duplo?
Outro senta-se, coça-se, tira um piolho do sovaco, mata-o
- Com que desplante falar da Psicanálise?
Outro entrou em meu peito com um pau na mão
- Falar, em seguida, de Sócrates ao médico?
Um coxo passa dando o braço a um menino
- Vou, depois, ler André Breton?
Outro treme de frio, tosse, cospe sangue
- Convirá não aludir jamais ao Eu profundo?
Outro busca no lodo ossos e cascas
- Como escrever, depois, sobre o infinito?
Um pereiro cai de um telhado, morre, já não almoça
- Inovar, em seguida, a metáfora, o tropo?
Um comerciante rouba um grama no peso a um freguês
- Falar, depois, da quarta dimensão?
Um banqueiro falsifica o seu balanço
- Com que cara chorar no teatro?
Um pária dorme com um pé às costas
- Falar, depois, a ninguém de Picasso?
Alguém vai num enterro a soluçar
- Como em seguida ingressar na Academia?
Alguém limpa uma espingarda na cozinha
- Com que desplante falar do mais além?
Alguém passa a contar pelos dedos
- Como falar do não-eu sem dar um grito?
Trad. de José Bento, in Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim
César Abraham Vallejo Mendoza (n. Santiago de Chuco, La Libertad, Perú, em 16 Mar. 1892 – m. 15 Abr. 1938 em Paris)
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