Olhar o rio feito de tempo e água,
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
e que passam os rostos como a água.
Descobrir que a vigília é outro sonho
que sonha não sonhar; sentir que a morte
que teme nossa carne é essa morte
de cada noite, que se chama sonho.
No breve dia ou no ano ver um símbolo
dos dias do homem e também seus anos,
e o longo ultraje converter dos anos
num rumor, numa música e num símbolo:
ver o sonho na morte, ver no ocaso
um ouro triste – tal é a poesia,
que é imortal e pobre. A poesia
retorna como a aurora ou como o ocaso.
Às vezes, pelas tardes, uma cara
nos mira desde o fundo de um espelho:
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela nossa própria cara.
Contam que Ulisses, farto de prodígios,
chorou de amor ao divisar sua Ítaca
humilde e verde. A arte é essa Ítaca,
de verde eternidade, e não prodígios.
Também é como um rio interminável
que passa e fica, e é o cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável.
(Tradução de Renato Suttana)
Jorge Luís Borges Acevedo (n. Buenos Aires, 24 de Agosto de 1899 — m. Genebra, 14 de Junho de 1986)
Sem comentários:
Enviar um comentário