Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará
Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua
É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solitário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente
Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.
in Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea, Um Panorama; organização de Alberto da Costa e Silva e Alexei Bueno
RUY de Moura Ribeiro BELO nasceu em Rio Maior (Ribatejo) a 27 de Fevereiro de 1933 e faleceu em Queluz a 8 de Agosto de 1978. Matriculou-se em Direito em Coimbra, mas concluiu a formatura em Lisboa (1956). Doutorou-se em Direito Canónico na universidade gregoriana de Roma (1958). Regressado a Lisboa, tirou o curso de Filologia Românica (1961/67). Em 1971, foi leitor de Português na universidade de Madrid. À data da morte, leccionava nos cursos nocturnos da escola técnica do Cacém, como professor provisório. Chegara a advogar e foi também tradutor e ensaísta: «Na Senda da Poeira» (1969). A sua poesia oferece-nos um discurso caudaloso de índole auto-reflexiva e experimentação formal. É uma complexa procura existencial, mais ontológica que religiosa, que conjuga uma ironia superior com a maestria linguística. O autor abandonara a Opus Dei e assumira uma posição política.
Ler do mesmo autor: E tudo era possível; Mas que sei eu...; Nomeei-te no meio dos meus sonhos; To Helena; Orla Marítima; Ficção
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