Páginas

2018-10-31

Amar - Carlos Drummond de Andrade


Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e
uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.

Carlos Drummond de Andrade (n. Itabira, Minas Gerais, Brasil, 31 de outubro de 1902 — m. Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1987)

2018-10-27

Desaparecido - Carlos Queiroz

Sempre que leio nos jornais:
"De casa de seus pais desapar'ceu..."
Embora sejam outros os sinais,
Suponho sempre que sou eu.

Eu, verdadeiramente jovem,
Que por caminhos meus e naturais,
Do meu veleiro, que ora os outros movem,
Pudesse ser o próprio arrais.

Eu, que tentasse errado norte;
Vencido, embora, por contrário vento,
Mas desprezasse, consciente e forte,
O porto de arrependimento.

Eu, que pudesse, enfim, ser eu!
- Livre o instinto, em vez de coagido.
"De casa de seus pais desapar'ceu..."
Eu, o feliz desapar'cido!

in Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro - 3ª Edição
Porto 2001 Capital Europeia da Cultura - Assírio & Alvim

Carlos Queiroz(n. Lisboa, 5 de abril de 1907, m. Paris, 27 de outubro de 1949)

2018-10-26

O RETRATO - José Bonifácio (O Moço)

Incline o rosto um pouco... assim... ainda;
arqueie o braço, a mão sobre a cintura;
deixe fugir-lhe um riso à boca pura
e a covinha animar da face linda.

Erga a ponta do pé... que graça infinda!
Quero nos olhos ver-lhe a formosura,
feitiço azul de orvalho que fulgura,
froco de luz suave, que não finda!

Há pouca luz... eu vejo-a... está sentada.
Passou-lhe a sombra de um cuidado agora,
na ruguinha da fronte jambeada.

Enfadou-se? Meu Deus, ei-la que chora!
Pois caiu-me o pincel. Que mão ousada!
Pintar de noite o levantar da aurora!


José Bonifácio de Andrada e Silva, o Moço, poeta, professor, orador e político, nasceu em Bordéus, França, em 8 de novembro de 1827 e faleceu em São Paulo, SP, em 26 de outubro de 1886

2018-10-11

AMAR OU ODIAR - Fausto Guedes Teixeira


Amar ou odiar: ou tudo ou nada!
O meio termo é que não pode ser
A alma tem d’estar sobressaltada
P’ra o nosso barro se sentir viver.

Não é uma cruz a que não for pesada,
Metade dum prazer não é um prazer;
E quem quiser a alma sossegada
Fuja do mundo e deixe-se morrer.

Vive-se tanto mais quanto se sente;
Todo o valor está no que sofremos…
Que nenhum homem seja indiferente!

Amemos muito, como odiamos já:
A verdade está sempre nos extremos,
Porque é no sentimento que ela está.

Fausto Guedes Teixeira (nasceu na freguesia de Almacave, em Lamego, em 11 de outubro de 1871, faleceu em Lamego a 13 de Julho de 1940).